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Flavio Gordon

Flavio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Da Vontade e da Graça

O filósofo Friedrich Nietzsche, em 1899. (Foto: Wikimedia Commons)

“O verdadeiro ópio do povo é a crença no nada após a morte – o grande consolo de pensar que não seremos julgados por nossas traições, ganância, covardia, assassinatos” (Czesław Miłosz, O Charme Discreto do Niilismo)

Entre os séculos 19 e 20, Dostoievski e Nietzsche foram, provavelmente, os dois homens que melhor perceberam o fato de que, uma vez abolida a transcendência da imaginação humana, tudo o que aí sobra é a “vontade de poder”.

O romancista russo via o fenômeno com apreensão. Sua visão está sintetizada na famosa passagem de Os Irmãos Karamázov: “É permitido a todo indivíduo que tenha consciência da verdade regularizar sua vida como bem entender, de acordo com os novos princípios. Neste sentido, tudo é permitido... Como Deus e a imortalidade não existem, é permitido ao homem novo tornar-se um homem-deus”.

Dostoievski descreve aí a mentalidade do tipo que batizou como “homem-ideia”, o ateu-socialista-niilista, que vive exclusivamente conforme as próprias regras, imaginando-se a medida última da virtude humana e, por isso, indiferente aos eventuais sofrimentos que as suas práticas possam causar a terceiros. Raskolnikóv, protagonista de Crime e Castigo, é um desses. Como também Nikolai Stavroguin, líder revolucionário de Os Demônios. E, claro, Ivan Fiódor Karamázov, que chega a enlouquecer de culpa após influenciar com suas ideias o assassino de seu pai.

Esse fato é importante: todos os homens-ideia de Dostoievski sofrem dramas de consciência terríveis e, não raro, enlouquecem. Nietzsche poderia muito bem ser um personagem dostoievskiano. Ao contrário do romancista, o filósofo via o fim da transcendência com júbilo e uma estranha euforia. Para ele, a morte de Deus significava o fim da moralidade judaico-cristã, uma “moral de escravos”. Nietzsche definia-se como um “imoralista”, ansioso pelos novos tempos em que a humanidade viveria para além do bem e do mal, e nos quais o velho código mosaico do “Não farás!” seria substituído pelo mandamento do “Eu quero”.

Nietzsche não sugeria apenas que Deus estava morto. Proclamava o homem como seu assassino, obtendo desse modo a liberdade de construir para si próprio uma moralidade exclusiva, na qual a vontade é elevada ao posto supremo: a “deificação das paixões”, a “animalidade esplêndida” a “vontade de poder”, todas são expressões da imoralidade nietzscheana.

Para aqueles que pretendem levar uma vida sem restrições morais, para quem toda existência é vontade de poder, o cenário onde os voluntaristas mais fortes sobrepujam os mais fracos, claro está que a hipótese de ser interpelado por Deus nalgum Juízo Final é um obstáculo demasiado incômodo. Nietzsche percebeu-o bem, e, não por outro motivo, teve muitos seguidores.

Com efeito, há ecos da imoralidade nietzscheana nas mais variadas críticas ao código moral judaico-cristão. O existencialismo de Sartre, por exemplo, utiliza Nietzsche como fundamentação de uma filosofia baseada na liberdade moral plena. Ateístas militantes como Christopher Hitchens e Richard Dawkins protestam contra a supervisão moral de Deus, a quem costumam qualificar de “tirano” e “possessivo”. No entanto, poucos críticos da moralidade tradicional admitiriam ir tão longe quanto o próprio Nietzsche. Sua revolta é normalmente mais tímida, mais contida, não passando muitas vezes de uma simples malcriação contra Deus. Como adolescentes que esperam escapar da autoridade paterna sem, todavia, abrir mão da mesada, os anticristãos querem livrar-se de Deus, mas mantendo, de algum modo, a moralidade.

Há ecos da imoralidade nietzscheana nas mais variadas críticas ao código moral judaico-cristão

Mesmo negando a ideia de uma alma imortal, muitos ateístas e agnósticos admitem ao menos a noção de que os seres humanos possuem uma espécie de “eu superior”. Esse “eu” não seria idêntico à alma, no sentido cristão, nem obedeceria aos ditames da moralidade tradicional e de algum código moral transcendente. Ao contrário, seria um “eu” que forja a moralidade por si próprio. Poderíamos chamar essa moralidade de secular ou progressista.

Como se sabe, a moralidade secular-progressista expandiu-se no Ocidente desde o século 18, sendo hoje preponderante na vida pública dos principais países do mundo. No meio acadêmico e intelectual, então, é hegemônica. Enquanto a moralidade tradicional finca raízes no passado, a moralidade secular apresenta-se como uma nova ética para o futuro. As “guerras culturais” contemporâneas, que giram em torno de temas como aborto, transgenderismo, liberação das drogas etc., podem ser compreendidas como expressões de um conflito profundo entre a moralidade tradicional e a moralidade secular.

A moralidade tradicional baseia-se no pressuposto da existência de uma ordem moral no universo, ordem que nos é exterior, e que, de algum modo, nos cobra. Em tempos antigos, acreditava-se que a própria natureza a manifestava, uma concepção muito bem descrita, entre outros, por Shakespeare.

Em Macbeth, por exemplo, na noite que antecede o assassinato de Duncan, os seus cavalos agitam-se selvagemente, “contra as ordens todas”, “como querendo guerrear a humanidade” (Ato II, Cena 4). A noite mesma do assassinato é perturbada por “muitos prantos, gritos de morte estranhos”. O céu permanece negro ainda quando o dia já deveria ter nascido, e “dizem que a própria terra teve febre e tremeu”. Do mesmo modo, em Júlio César, a noite anterior à morte do imperador é convulsionada por notícias de horrores pavorosos vindos da natureza. Calpúrnia, sua mulher, o alerta: “Uma leoa na rua teve o parto; abriram-se sepulcros, expulsando seus mortos; pelas nuvens incendiados guerreiros digladiavam em fileiras e esquadrões ordenados, como em guerra, tendo sangue manchado o Capitólio. Agitava-se no ar a gritaria da batalha; cavalos relinchavam; gemiam moribundos, e os fantasmas, dando gritos, as ruas percorriam” (Ato II, Cena 2). Em suma, no universo antigo, tão bem retratado pelo bardo, a própria ordem física parecia perturbar-se ante a iminência de algum terrível crime moral.

No desencanto do mundo contemporâneo, não estabelecemos ligação alguma entre a ordem natural e o domínio moral. Não vemos a ordem do cosmos como ligada à ordem da alma. Contudo, de algum modo, resiste a imagem de uma ordem moral eterna. Essa é ainda uma ideia poderosa na cultura do Ocidente, conformando o código moral predominante em grande parte do mundo.

A moralidade tradicional é uma moralidade objetiva ou absoluta. Baseia-se no pressuposto de que algumas coisas são certas e outras erradas, não importando para quem. Em várias religiões, essa moralidade está fixada em alguma espécie de código escrito, cujo melhor exemplo são os Dez Mandamentos. E Deus é considerado o seu fundamento último.

Isto é de suma importância: todos sabemos que boas pessoas às vezes padecem, enquanto pessoas más, não raro, prosperam. O papel de Deus na moralidade tradicional é garantir que, na vida futura, essas injustiças sejam corrigidas, recebendo cada qual “aquilo que merece” (Romanos 2,6).

A moralidade secular surge em resistência à outra. Nela, o juízo moral não provém de algum código exterior, mas do interior da consciência individual. A interioridade é tida por fonte moral autônoma. Como resume o filósofo Charles Taylor em A Ética da Autenticidade: “Eu sou livre quando decido por mim mesmo aquilo que me diz respeito, ao invés de ser moldado por influências externas. Nossa salvação moral surge quando recuperamos o contato moral com nós mesmos. A liberdade autodeterminadora requer que eu rompa os entraves das imposições externas e decida apenas por mim mesmo”.

A nova moralidade retém algo do Cristianismo, religião que, tradicionalmente, postulava duas maneiras de cumprir a vontade de Deus, sendo a primeira mediante os Seus mandamentos, e a segunda, pela atenção à Sua voz, recôndita no íntimo de cada homem. Em Lucas (17,21), Jesus diz claramente: “O reino de Deus está dentro de vocês”. Assim também, para Santo Agostinho, Deus era, ao mesmo tempo, a transcendência onipotente e a luz interior da alma humana.

O ponto fundamental da inovação secular é desvincular a interioridade da alma de toda fonte exterior de autoridade. A empreitada interior, aqui, já não serve como uma via de acesso ao Criador, mas como fundamento último da moral. Essa visão de mundo ancora-se em uma antropologia romântica, expressa, por exemplo, no pensamento de Jean-Jacques Rousseau.

A obra de Rousseau ressalta um aprofundamento da distância entre a moralidade tradicional e a secular. Na visão cristã, a natureza humana é corrompida pelo pecado original, que não se refere apenas ao destino de Adão e Eva. O conceito de “pecado original” expressa a ideia de que nossa natureza é, por princípio, corrompida. No entendimento cristão, o “eu” interior é falho. Por isso, o Cristianismo é uma religião de contrição e autoaprimoramento.

O pensamento de Rousseau, ao contrário, afirma que os seres humanos são originalmente bons, e a sociedade é quem os corrompe. Em última instância, os homens não são culpados por suas falhas, pois a sociedade os levou a cometê-las. Por consequência, para descobrir o que é bom e verdadeiro, temos de nos desvencilhar da pressão social externa e mergulhar profundamente dentro de nós mesmos, recuperando a bondade natural que há no íntimo da alma humana.

O problema, para Rousseau, é que a sociedade tornou inaudível a voz interior que habita os homens e, por meio de convenções, acabou por gerar desejos artificiais. Na ética secular rousseuaniana, não é Deus, mas nós mesmos, os portadores de nossa própria salvação. Isso tem uma consequência importante: a ideia de que a falibilidade e a maldade humanas são, de algum modo, solucionáveis por um simples ato de vontade. Para essa visão, uma reengenharia psicossocial bem planejada seria, por si só, capaz de construir um mundo melhor e mais justo.

Há, todavia, um sério problema na moralidade secular, que se baseia no pressuposto discutível de que o nosso “eu” interior é bom. Ocorre que, se levamos em conta apenas algumas das grandes obras de arte do Ocidente, a premissa afigura-se como absurda. Fiquemos com as já citadas peças de Shakespeare. Ou com a trilogia de Wagner, Os Anéis de Nibelungo. Esses e outros gênios das artes do Ocidente conduzem-nos para as profundezas da natureza humana, e o que encontramos lá, além de gentileza, ternura, compaixão, é também crueldade, brutalidade, luxúria, ódio e inveja.

Como podem então os adeptos da moralidade secular apostar todas as fichas na interioridade humana, quando essa interioridade é claramente sujeita às motivações mais inconstantes da vontade?

Os críticos da moralidade tradicional não têm uma boa resposta para isso. As tentativas de reformar a natureza humana e a sociedade têm sido desastrosas – as mais totalitárias delas tendo gerado os morticínios (supostamente redentores) do século 20. E isso porque a moralidade secular se sustenta sobre uma antropologia filosófica idealista, que teima em ignorar o potencial de crueldade inerente à natureza humana, característica que, justamente, foi objeto de reflexão por parte de todos os grandes sistemas morais da história, tendo o Judaísmo e o Cristianismo, em particular, conferido a ela uma atenção especial. E aí retornamos às soluções que Dostoievski e Nietzsche deram ao problema da vontade.

Como dissemos acima, os voluntaristas homens-ideia de Dostoievski, ao fim de sua trajetória, são acometidos por terríveis dramas de consciência, acessos de loucura e convulsões. Em Os Demônios, o jovem aristocrata Nikolai Stavroguin lidera um grupo revolucionário que conspira contra as autoridades e promove o caos social em sua província (a personagem de Stavroguin é inspirada no líder niilista Sergei Netchaiev, autor do célebre “O Catecismo Revolucionário”). Stavroguin não hesita em utilizar todo e qualquer meio para conquistar os seus objetivos, incluindo um incêndio criminoso para instigar trabalhadores à revolta, e o assassinato de um ex-companheiro do grupo. Stravoguin termina se suicidando, deixando uma impressionante carta de confissão.

Em Os Irmãos Karamázov, o irmão mais velho, Ivan, defendia a tese de que “se Deus não existe, tudo é permitido”. Ao saber que o assassino do pai, o seu irmão bastardo, tinha cometido o crime inspirado nas suas próprias ideias revolucionárias, Ivan é atingido por uma culpa lancinante, mergulhando numa febre nervosa na qual, em meio a convulsões, mantém curiosos diálogos com o demônio.

Finalmente, temos Raskolnikóv em Crime e Castigo. As teses desenvolvidas por essa personagem – que justificam, a seus olhos, o assassinato a golpes de machado de sua penhorante – guardam semelhança com a tese nietzscheana do Super-Homem.

Assim como Nietzsche, Raskolnikov admirava os grandes homens da história, a exemplo de Júlio César e Napoleão. Angustiado no minúsculo e sufocante cubículo em que vivia, o jovem estudante desenvolveu a sua doutrina do “direito ao crime”, segundo a qual todo aquele que se sente além das convenções tradicionais acerca do bem e do mal, e que se percebe mais potente que os demais homens, teria “direito a tudo”, inclusive de eliminar pessoas que se coloquem como obstáculo às suas vontades. Para Raskolnikóv, os homens extraordinários, obedientes unicamente às exigências do seu ideal, devem “ultrapassar certas barreiras tão longe quanto possível”.

Após levar às vias de fato a sua teoria, contudo, Raskolnikóv começa a sofrer por causa de sua própria fraqueza, sendo incapaz de se livrar da culpa: “Não foi uma criatura humana que matei, foi um princípio!” – pensou Raskolnikóv. “Efetivamente matei o princípio, mas não soube passar por cima do obstáculo, fiquei do lado de cá… Não soube senão matar… E ainda assim parece que não fui muito bem… Eu só tenho uma vida, não posso esperar a ‘felicidade universal’. Quero viver para mim mesmo, de outra maneira não vale a pena existir... Visto que só vivo uma vez, quero a minha parte de felicidade imediatamente… Ah, sou um piolho esteta, nada mais!”

Noutro trecho da obra, o narrador comenta sobre o assassino atormentado: “Napoleão o atraiu terrivelmente, isto é, o que propriamente o atraiu foi o fato de que muitos dos homens geniais não se detiveram diante de um crime único: passaram por cima dele sem hesitar. Parece que ele imaginou ser um desses homens geniais… ou melhor, ele acreditou nisso por um tempo. Sofreu muito, e continua sofrendo, por pensar que foi capaz de criar a teoria, mas não de passar sem hesitações por cima do obstáculo, e que, portanto, não é um homem genial. Para um moço com amor-próprio, isso é humilhante.”

Atormentado por uma culpa dilacerante, Raskolnikóv entrega-se à polícia e é condenado a oito anos de trabalhos forçados na Sibéria. Na prisão, recebe as fiéis visitas da prostituta Sonia, por quem se apaixonara. A moça abnegada muda-se para a Sibéria a fim de ficar mais próxima de seu amado e levar-lhe a palavra do Evangelho. A mensagem final da obra é a redenção do protagonista. Raskolnikóv não era imoral o suficiente para se tornar um homem extraordinário. E Dostoievski era esperançoso o bastante quanto à capacidade humana de se redimir pelo amor e pela fé.

Tampouco Nietzsche era um homem extraordinário. O processo de enlouquecimento por que passou ao fim da vida marca dramaticamente o limite do seu voluntarismo. Segundo consta, o filósofo foi internado depois de um estranho acidente em que se envolveu em Turim, em janeiro de 1889. Ao ver da sua janela um pobre cavalo ser brutalmente espancado pelo dono, interpôs-se entre o carroceiro e o animal, envolvendo-o com um abraço e beijando-lhe o focinho em lágrimas.

Todos hão de recordar que o ocorrido repete a cena descrita por Dostoievski num sonho de Raskolnikóv, quando este, ainda criança, enlaça e beija a carcaça ensanguentada de uma égua brutalizada por um bando de bêbados.

O fato é que o sofrimento alheio perturbou o espírito voluntarista de Raskolnikóv e Nietzsche. Quando falava do ressentimento do homem doente contra as pessoas saudáveis, Nietzsche parecia referir-se mais a si próprio, um paciente crônico, que a Sócrates ou a Jesus Cristo, o primeiro um velho e robusto soldado, o segundo, um andarilho resistente e contumaz.

É uma terrível ironia do destino, senão mesmo uma trágica lição, que o mais apaixonado dos apologistas do poder autossuficiente da vontade e da independência do espírito tenha terminado os seus dias num infeliz estado de debilidade física e mental, carecendo, até para as necessidades fisiológicas mais básicas, de ser conduzido pela mão como uma criança. Um triste fim para um Super-Homem neste mundo. Mas, graças à misericórdia divina, quem sabe um começo glorioso no outro? Afinal, “há tantas auroras que ainda não brilharam”...

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