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Flavio Gordon

Flavio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Esquerda e narcotráfico

A Epidemia Rosa (parte 3)

Matvei Zakharov, marechal e chefe do Estado-maior da União Soviética nos anos 60. (Foto: Ministério da Defesa da Federação Russa/Mil.ru)

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A estratégia soviética de usar o tráfico de drogas como arma de guerra começou a ser concebida em 1956 e foi encampada pela StB, o serviço secreto da Tchecoslováquia, responsável pelas assim chamadas “medidas ativas” – operações de espionagem, propaganda e desinformação – na América Latina (assim como a Securitate romena atuava no Oriente Médio). Naquele ano, a KGB e o Departamento Internacional do Comitê Central (CC) do Partido Comunista da URSS (PCUS) instruíram a StB a promover a infiltração de agentes em duas dezenas de organizações criminosas da Europa e da América Latina. Como mostra Joseph Douglass em Red Cocaine: The Drugging of America and the West, a operação foi muito bem-sucedida.

Antes que o tráfico de drogas pudesse ser politicamente controlado e expandido, uma série de medidas preliminares foram tomadas, que incluíam uma sutil propaganda das drogas – que contou com toda sorte de agentes de influência, formalmente contatados ou apenas idiotas úteis – e o treinamento das equipes de inteligência. Uma das tarefas mais importantes da inteligência soviética era avaliar o quão bem informados sobre o narcotráfico estavam os serviços secretos do Ocidente, particularmente sobre os mecanismos de produção e distribuição das drogas. O general tcheco Jan Sejna, principal informante de Douglass, obteve um resumo dessa avaliação diretamente do chefe do Estado-maior soviético, o marechal Matvei Vasilevich Zakharov, segundo quem a inteligência e a contrainteligência norte-americanas estavam muito mal informadas sobre a situação na América Latina, uma vez que, àquela altura, concentravam esforços nas rotas do narcotráfico na Tailândia e em Hong Kong. Essa relativa cegueira facilitou muito a operação soviética de expandir e controlar o narcotráfico no continente latino-americano.

Antes que o tráfico de drogas pudesse ser politicamente controlado e expandido, uma série de medidas preliminares foram tomadas, que incluíam uma sutil propaganda das drogas e o treinamento das equipes de inteligência

Outra medida preparatória relevante foi a criação e manutenção de inacreditáveis centros de treinamento para traficantes de drogas, iniciativa que, se não estivesse bem documentada nos arquivos soviéticos, soaria como obra de ficção científica. Os centros resultaram de uma operação conjunta tcheco-soviética, e incluíam locais de preparação de inteligência civil, comandados por oficiais da KGB e da StB, e militar, comandados pelo Departamento Central de Inteligência (GRU) e seu consorte tcheco. Segundo o general Sejna, esse plano foi elaborado por volta de 1959, e definitivamente aprovado pelo Conselho de Defesa Soviético no ano seguinte. O centro de treinamento de inteligência militar localizava-se numa base tcheca em Petrzalka, subúrbio de Bratislava, próximo à fronteira austríaca. O centro de treinamento de inteligência civil ficava em Liberec, na fronteira com a Alemanha.

O curso completo durava aproximadamente três meses, e consistia em treinamento intensivo. Embora constasse do protocolo curricular um tanto de doutrinamento em marxismo-leninismo – que servia como uma espécie de justificativa moral subjacente –, a ênfase era toda no narcotráfico. O treinamento incluía temas como: a natureza das drogas mais consumidas, seus tipos e qualidades; os meios de produção; a organização e a distribuição; os mercados das drogas e o perfil sociológico dos usuários; a segurança do negócio; a infiltração nas redes já existentes de produção e distribuição; a comunicação dentro dos grupos narcotraficantes; a transmissão de informações de inteligência; o recrutamento de agentes etc.

Nos centros de inteligência militar, foram treinados dois grupos distintos de agentes. O primeiro era formado pelos que viriam a atuar efetivamente como narcotraficantes. Seus integrantes não eram nem comunistas, nem, tampouco, motivados ideologicamente. Eram apenas arrivistas, niilistas e delinquentes em potencial, cujos antecedentes eram minuciosamente checados pela contrainteligência. Não raro, os recrutas eram parentes de poderosos, e os riscos potenciais associados ao seu recrutamento eram assunto recorrente nas discussões internas do Conselho de Defesa tcheco. Sua missão principal era a coleta de informações.

O segundo grupo era formado por indivíduos recomendados pelos primeiros-secretários de partidos comunistas estrangeiros. Nesse caso, sim, estamos falando de comunistas doutrinários, considerados leais à causa. Antes de serem admitidos no curso, também esses eram checados pelas equipes de contrainteligência. Seu treinamento era algo diferente ao do primeiro grupo, porque a sua atividade no narcotráfico já era concebida formalmente como útil a propósitos políticos específicos e circunstâncias locais. Eles se comunicavam e operavam por canais distintos, usualmente via partido. Seu treinamento era fortemente orientado no sentido de apoiar os primeiros-secretários dos partidos comunistas locais e, por exemplo, chantagear e comprometer opositores ao comunismo.

Na década de 1980, Fidel Castro começou um processo de aproximação com o Cartel de Medellín, inaugurando o estilo de narco-socialismo latino-americano que viria a se consagrar no continente

Além dos professores tchecos, para cada curso os soviéticos costumavam enviar também dois instrutores latinoamericanos com maior experiência prática no negócio das drogas. Cabia-lhes especificamente a tarefa de instruir os recrutas na operacionalização concreta do narcotráfico. Com duração média de três meses, os cursos formavam um total de quatro turmas de agentes por ano. Segundo recorda o general Sejna, a primeira turma formou-se em 1960, e era pequena, composta por sete futuros narcotraficantes: quatro latinoamericanos, dois alemães-ocidentais e um italiano. Em 1964, o grupo já tinha aumentara para 14 formados. E, ao fim da década de 1960, alcançou-se a capacidade máxima de 20 alunos por turma. Com isso, no ano de 1968 a produção anual de graduados chegou a 80 agentes políticos do narcotráfico.

Os centros de inteligência civil, a cargo da StB, eram de tamanho equivalente. Entre os anos de 1962 e 1963, centros de treinamento similares também foram estabelecidos na Bulgária, na Alemanha Oriental, na Coreia do Norte, no Vietnã do Norte e em Cuba. Na hipótese de que cada um desses centros tivesse o tamanho mínimo e operasse no limite máximo de sua capacidade, pode-se calcular o número de agentes narcotraficantes na casa das dezenas de milhares por volta da década de 1990, momento em que, como mostrei no artigo anterior, houve uma espécie de sindicalização do crime organizado internacional. O estabelecimento destes centros de treinamento completou as preparações para a estratégia bélica das drogas, que começaria de fato apenas na década de 1980. Foi nesse ano que, já plenamente informado e consciente da estratégia soviética, Fidel Castro começou um processo de aproximação com o Cartel de Medellín, inaugurando o estilo de narco-socialismo latino-americano que viria a se consagrar no continente, sobretudo com Hugo Chávez. Seguiremos daí na semana que vem.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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