Em tempos de apocalipse político, tenho pensado muito em Eric Voegelin e no seu As Religiões Políticas, de 1938, trabalho que o levou para a lista negra dos nazistas. Portanto, na qualidade de vítima do nacional-socialismo – não como judeu, mas como crítico –, Voegelin empreendeu sua análise sobre os movimentos totalitários de massa a partir dessa experiência pessoal.
No início daquele mesmo ano de 1938, o então jovem filósofo havia conquistado o seu primeiro posto acadêmico em Viena, às vésperas do Anschluss. Mas, autor de obras críticas à ideologia nacional-socialista, ele logo perdeu seu emprego como professor de Ciência Política no Departamento de Direito. Segundo relata em suas Reflexões Autobiográficas, quando a Gestapo começou a bisbilhotar sua biblioteca particular em busca de literatura política suspeita, Voegelin sugeriu que confiscassem o Mein Kampf de Hitler junto com o Manifesto Comunista, sugestão evidentemente ignorada. Com o aumento da perseguição, sobretudo graças à publicação de As Religiões Políticas, Voegelin decidiu fugir para o exterior, primeiro para a Suíça, e em seguida para os Estados Unidos.
Na Áustria dos anos 1930, o erudito e discreto intelectual tornara-se um homem marcado. No ano mesmo da ascensão nazista ao poder, Voegelin já publicara dois livros demolindo os dogmas racistas caros ao nacional-socialismo: Raça e Estado e A Ideia de Raça na História das Ideias: de Ray a Carus. Mas foi mesmo com As Religiões Políticas que o filósofo desferiu o seu mais poderoso golpe contra as ideologias totalitárias. Ainda que, obviamente, os fiscais nazistas do pensamento não fossem plenamente capazes de apreender toda a profundidade da interpretação voegeliana, foram-no o suficiente para lhe pressentir o impacto. E isso porque Voegelin apontava não apenas o mal político representado pelo nacional-socialismo, mas, sobretudo, o seu mal espiritual. Nesse sentido, ficaram famosas as palavras do autor no prefácio de dezembro de 1938, redigido já em solo americano, em Cambridge (Massachusetts):
“O coletivismo político não é somente uma manifestação política e moral; é a sua componente religiosa que me parece muito mais importante. O combate literário como forma de contrapropaganda ética é importante, mas toma-se duvidoso se vier a ocultar o essencial. Mesmo duplamente duvidoso: porque desvia a atenção do fato de, por detrás das ações eticamente condenáveis, se esconder um mal mais grave e mais perigoso; e torna-se equívoco e inoperante se não encontrar um fundamento mais profundo do que um simples código moral. Não quero com isto dizer que o combate ao nacional-socialismo não deva ser conduzido também sobre o plano ético; mas justamente que ele não é suficientemente radical, segundo o meu ponto de vista, porque lhe falta um enraizamento na religiosidade. Uma consideração religiosa do nacional-socialismo deveria partir do pressuposto que possa existir Mal no mundo; e não o Mal como um modo deficiente do ser, como um negativo, mas como uma verdadeira substância e uma força efetiva no mundo. Face a uma tal substância, não apenas moralmente má, mas também religiosamente maléfica, satânica, a oposição não pode ser conduzida senão a partir de uma força igualmente poderosa, mas religiosamente boa. Não se pode combater uma força satânica somente com moralidade e sentimentos de humanidade”.
Voegelin apontava não apenas o mal político representado pelo nacional-socialismo, mas, sobretudo, o seu mal espiritual
O objetivo de Voegelin era mostrar que comunismo, fascismo e nacional-socialismo não eram mero produto da estupidez de intelectuais dos séculos 19 e 20, mas “o efeito cumulativo de problemas não resolvidos e tentativas superficiais de solução ao longo de um milênio de história ocidental”. Em sua tentativa inicial de resolver esses problemas, portanto, o autor adotou uma escala temporal e uma amplidão temática muito maiores que as adotadas usualmente pelos analistas dos fenômenos políticos contemporâneos. A fim de compreender a natureza espiritual dos totalitarismos, Voegelin propõe uma divisão fundamental entre “religiões transcendentes” e “religiões imanentes”, ou, em outras palavras, entre as religiões abertas ao mistério da origem divina da ordem do ser e as religiões que imanentizam essa origem e lhe atribuem a si próprias, com isso promovendo a autodivinização do homem. Trata-se, em suma, da diferença entre adorar Deus e adorar ídolos (quer seja a classe, a raça, a nação ou a ciência).
Em busca das origens das religiões políticas, Voegelin embarcou numa escavação arqueológica profunda, recuando mais de 3 mil anos até o Vale do Nilo, passando pelas heresias gnósticas medievais e pela Inglaterra puritana seiscentista, até chegar aos totalitarismos modernos. Para um tão vasto empreendimento intelectual, Voegelin teve primeiro de ampliar o conceito de “religião” para além do seu significado tradicional, de modo a estabelecer uma correlação entre “religião” e “Estado”:
“Para compreender convenientemente as religiões políticas devemos, portanto, alargar o conceito do religioso de maneira a poder explicar não somente as religiões redentoras, mas também as outras manifestações que percebemos como religiosas no desenvolvimento dos Estados; e, depois disso, deveremos examinar o conceito de Estado, a fim de saber se este não diz verdadeiramente respeito a mais nada senão às relações de organização mundanas e humanas, sem relação com o domínio do religioso.”
Essa compreensão ampliada da religião implicou na atribuição ao Estado de uma outra natureza, novos significados e objetivos. Voegelin parte de uma definição meramente escolar de Estado – uma união associativa de homens sedentários, dotada de um poder soberano originário – para demonstrar o quanto ela é insuficiente e imprecisa para abarcar o Estado moderno:
“‘Originário’ não pode significar senão o fato de o poder não ter outra fonte senão a do próprio Estado, que não pode derivar de nenhuma outra parte, que é absoluto. Um olhar sobre a realidade revela que tal afirmação é falsa. Um poder absoluto, originário, é um poder acima de todos os poderes; não há outro poder ao seu lado, nem acima dele e, abaixo dele, somente os poderes que lhe são devotos. Ora, apesar disso, o poder do soberano tem barreiras no seu interior, porque existem coisas que nenhum soberano pode fazer sem ser derrubado, e barreiras para o exterior, face aos outros poderes soberanos (...) O caráter originário do poder, a sua supremacia, tem um sentido superlativo, ou seja, a afirmação de que o poder em questão é o mais alto (...) A completa desarticulação da ordem da criação encontra-se, por assim dizer, decapitada por ela, a cabeça divina é abatida e, no lugar do deus transcendente, o Estado impõe-se no mundo como a condição última e a origem do seu próprio ser (...) A afirmação do ser originário afasta-se da via do pensamento analítico: desloca-se para além das regras do exame, submetido a raciocínio, das matérias conhecidas; recusa o discurso racional; o espírito que a pensa deixa de ser um parceiro da discussão para se tomar no facto de uma outra ordem, do qual deveremos retraçar as origens.”
Voegelin sugere que uma das origens desse Estado concebido como absoluto e autofundante é o pensamento de Hegel, fundador de uma verdadeira metafísica estatal.
“Agora já percebemos mais claramente o que está em jogo: não se trata da validade de uma definição, mas de uma questão de vida ou de morte; mesmo mais: trata-se de saber se o homem pode existir pessoalmente, ou se se deve diluir num Realissimum que o ultrapassa. O contato de homem para homem é interrompido, figuras espirituais desumanas defrontam-se e o homem é transformado numa simples peça da engrenagem, agindo mecanicamente, batendo-se e matando abstratamente para o exterior. O poder de o Estado ser originário ou absoluto deixa de ser um juízo de um sujeito conhecedor, tomando-se no dogma de um crente. A existência do homem perde uma parte da realidade na sua vivência própria, o Estado restitui-lhe e afirma-se como o único real verdadeiro, do qual emana um fluxo de realidade para os homens e os faz reviver de maneira englobante, como as partes de uma realidade sobre-humana. Penetrámos aqui no coração de uma experiência religiosa, e as nossas palavras descrevem um processo místico.”
As “religiões espirituais” tornam-se “religiões intramundanas”, e dos movimentos sectários medievais, renascentistas e iluministas surgem as modernas religiões políticas do comunismo e do nazismo
Segundo Voegelin, a primeira religião política ou “intramundana” surgiu no Egito, sob o faraó Amenotep (ou Amenófis) IV, que, em cerca de 1376 a.C., introduziu uma nova religião solar, declarando-se filho do deus-sol Aton e adotando o nome Akhenáton (“espírito de Aton” ou “aquele que serve a Aton”). Voegelin mostra como o faraó promoveu uma reforma religiosa profunda, enfraquecendo a estrutura politeísta anterior – com seus muitos deuses locais, cada qual com seu clero, que disputavam uns com os outros por poder e influência junto ao rei – e centralizando os poderes sacerdotais e políticos em torno de uma estrutura protomonoteísta erguida ao redor de si. Amenotep erige um novo templo ao deus-Sol, dando início a um conflito político entre o novo deus e o antigo clero, e que se salda não somente pelo afastamento dos antigos colégios de sacerdotes, mas também dos antigos deuses.
Saindo do Egito, Voegelin volta-se para a era moderna, na qual a base divina do poder político foi rejeitada, e a Igreja e o Estado gradualmente se separaram, mas que também testemunhou a sacralização de entidades coletivas como o “Estado”, a “raça”, a “classe” e a “nação”. Esse movimento rumo à sacralização política moderna tem início com as heresias cristãs e os milenarismos medievais, que rompem com a perspectiva agostiniana tradicional e imanentizam gradativamente a escatologia cristã, propondo uma transformação imediata do mundo, com a instauração intra-histórica (e não trans-histórica) do reino de Deus.
Para o filósofo, esse desenvolvimento é contínuo e relativamente linear. Enquanto as heresias medievais já haviam preparado o caminho para os movimentos de massa do século 20, completou o ciclo o Iluminismo, ao secularizar o simbolismo da escatologia imanentista. Com isso, as “religiões espirituais” tornam-se “religiões intramundanas”, e dos movimentos sectários medievais, renascentistas e iluministas surgem as modernas religiões políticas do comunismo e do nacional-socialismo. Pode-se dizer que a gnose medieval ressurgiu na modernidade sob a forma de filosofias da história. Graças à imanentização do escathon judaico-cristão, essas filosofias reeditaram uma visão providencialista da realidade que, como sugeriu o filósofo francês Jean Brun, fizeram nascer “novas religiões frequentemente apresentadas como o oposto de uma religião”.
O livro As Religiões Políticas termina onde começa, com o Akhenáton modernizado sob a forma do “Führer” iluminado pelo sol, rompendo as nuvens sobre a Grande Alemanha:
“‘O Führer é penetrado pela ideia; ela age através dele. Mas é igualmente ele quem pode dar a forma viva a esta ideia. É nele que se realiza o espírito do povo e se forma a vontade do povo; é nele que o povo, englobando todos os indivíduos, e por isso nunca completamente reunido concretamente na sua totalidade, adquire a sua forma visível. Ele é o representante do povo’, escreve um teórico alemão atual. O Führer é o lugar onde o Volksgeist penetra na realidade histórica; o Deus intramundano fala ao Führer como o Deus supramundano falava a Abraão, e o Führer transforma as palavras divinas em ordens aos seus partidários e ao povo. A relação com a simbólica do Leviatã é muito estreita, ao ponto de serem empregues as mesmas palavras para compreender a personificação mística da Ecclesia: o Führer é o ‘representante’, na teoria alemã, com o mesmo título que o soberano de Hobbes, que era o representante, o portador da personalidade da Commonwealth.”
Como se vê, tinha razão o poeta T. S. Eliot ao alertar em A Ideia de uma Sociedade Cristã que, “se não quisermos Deus (e ele é um Deus ciumento), acabaremos reverenciando Hitler ou Stalin”. Quem sabe quais novos bezerros de ouro político ainda serão adorados na esteira da “morte” de Deus no Ocidente?
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