O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, em audiência na Comissão de Segurança Pública do Senado.| Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
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Na primeira metade do século 20, o jurista Ernst Fraenkel foi um dos únicos estudiosos do totalitarismo a abordá-lo desde a perspectiva do direito. Atuando como advogado antes e depois da ascensão nazista ao poder, esse judeu alemão detectou a transformação do Judiciário na Alemanha de Hitler em um monstro de duas cabeças, que adotava critérios distintos, ora conformes, ora inconformes às leis, de acordo com conveniências políticas e a identidade do sujeito ou coisa julgada. Dessa experiência pessoal surgiu o livro O Estado Dual, um clássico da literatura sobre o Terceiro Reich, dedicado particularmente à corrupção do direito alemão promovida pelos nazistas. Fraenkel chamou-o de “dual” pelo fato de o Estado nazista basear-se na coexistência de duas metades: uma “normativa”, que respeitava as leis, e outra “prerrogativa”, que desrespeitava essas mesmas leis em função das razões de Estado.

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Isso significa que, conquanto de jure o regime nazista atuasse dentro dos limites da Constituição de Weimar (que o regime não aboliu formalmente), a sua carta constitucional de facto foi o Decreto de Emergência de 28 de fevereiro de 1933, publicado um dia após o incêndio do Reichstag. O decreto fez com que a esfera política da vida pública alemã fosse removida da jurisdição da lei geral, e os tribunais administrativos e gerais ajudaram na instauração dessa condição. Desde então, o princípio básico orientador da administração política já não era mais a justiça, e a lei passava a ser interpretada segundo as “circunstâncias do caso individual”, visando a algum objetivo político determinado.

Na prática, inexistindo regras legais que limitassem a esfera política, essa passou a ser regida por “medidas arbitrárias” (Maßnahmen), nas quais os funcionários com poder exerciam discricionariamente as suas prerrogativas, donde a expressão “Estado prerrogativo” (Maßnahmenstaat). Em suma, no contexto nazista, como mostra Fraenkel, o poder político tornou-se o critério definidor da jurisdição, bem como da aplicação normal ou extraordinária da lei. Fraenkel elenca um sem-número de casos.

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A Constituição não é abolida, mas o juiz decide quando ela vale

Sempre que os donos do poder julgavam conveniente, os tribunais nazificados contornavam as restrições constitucionais ao poder político estabelecidas na Constituição de Weimar, especialmente no seu artigo 48 (referente aos direitos fundamentais inalienáveis), por meio de uma excêntrica hermenêutica. Por exemplo, embora o Reichsgericht (a Suprema Corte) tivesse aceitado a validade do artigo 137 (que assegurava o direito fundamental à liberdade de crença e de culto), não o interpretou como incluindo a liberdade irrestrita de associação religiosa, e decidiu autorizar a supressão de uma série de igrejas e denominações religiosas cristãs, sobretudo aquelas não alinhadas ao regime. “Concedida a validade do Artigo 137” – decidiu o tribunal –, “sua aplicação correta não impede a supressão de uma associação religiosa se as atividades dessa associação forem incompatíveis com a ordem pública”.

No regime nazista, a lei passou a ser interpretada segundo as “circunstâncias do caso individual”, visando a algum objetivo político determinado

Ou seja, a decisão do Reichsgericht colocava até mesmo esse direito humano fundamental à disposição do poder policial. Em outras palavras, a liberdade religiosa passava agora a se reduzir à categoria de direitos dependentes da avaliação discricionária das autoridades do Reich. As cortes nazistas decidiram que esse não era um direito “absoluto”, e que orações subversivas e contrárias aos interesses do Estado e do povo alemães não seriam toleradas.

Num outro caso mencionado pelo autor, tanto o Reichsgericht quanto o Oberverwaltungsgericht (o Tribunal Superior Administrativo da Prússia) resolveram simplesmente abolir na canetada o direito constitucional de o funcionário público examinar os seus registros oficiais. Foi decidido que:

“O Artigo 129, seção 3, sentença da Constituição de Weimar concede ao funcionário público o direito de examinar seu registro oficial. Esta disposição está em contradição com a concepção nacional-socialista da relação entre funcionário público e Estado, e, sem legislação especial, portanto, não está mais em vigor. O princípio de liderança não admite o questionamento e a crítica das decisões de seus superiores pelo funcionário público.”

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A partir do decreto de 28 de fevereiro de 1933, portanto, a polícia já não estava mais vinculada às disposições da Constituição nem a qualquer outra lei. Em maio de 1935, o Supremo Tribunal da Prússia (Kammergericht) deixou tudo bem claro, ao afirmar que “o Decreto Executivo Prussiano de 3 de março de 1933 não deixa dúvidas de que o Parágrafo 1 do Decreto de 28 de fevereiro de 1933 remove todas as restrições federais e estaduais sobre o poder da polícia, na extensão necessária para a execução dos objetivos promulgados no decreto. A questão da adequação e necessidade não está sujeita a recurso”.

Repressão total em nome do combate ao “perigo comunista indireto”

Esse tipo de jurisprudência abriu as portas àquilo que, em Hitler e os Alemães, Eric Voegelin chamou de “descida ao abismo legal”. Recorrendo à concepção da “autodefesa do Estado”, por exemplo, o Tribunal Superior do Trabalho (Reichsarbeitsgericht) rejeitou a ação de um funcionário da delegação comercial soviética, que havia sido demitido por um comissário nomeado pela polícia. Indeferindo a ação, o tribunal reconheceu o direito do comissário de demitir funcionários com a seguinte justificativa:

“É duvidoso se o poder da polícia em condições normais permite ao Ministro do Interior da Prússia conferir a um Comissário Estatal poderes tão amplos. No entanto, mesmo que a nomeação não pudesse ser mantida sob o Decreto de 28 de fevereiro de 1933, poderia ser justificada com referência às necessidades da autodefesa do Estado [...] No primeiro semestre do ano de 1933, a situação do Estado nacional-socialista não podia ser considerada segura. Enquanto a ameaça comunista durasse, o estado de insegurança continuava e necessitava da extensão dos poderes da polícia além de seus limites regulares.”

Também o caráter limitado do objeto contra o qual o Decreto havido sido concebido – o comunismo – começou a ser relativizado. Segundo Fraenkel:

“Hamel declara que essa interpretação do Decreto de 28 de fevereiro de 1933 é errônea. ‘Seria um erro’, escreve ele, ‘assumir que as autoridades estão livres das amarras liberais apenas na luta contra o comunismo. As restrições liberais não são apenas suspensas pelas leis para o combate ao comunismo; elas são abolidas sem reservas’.”

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Ao menos em termos de criatividade hermenêutica, cara-de-pau por parte dos intérpretes da norma e corrupção do direito, o Brasil caminha a passos largos para o totalitarismo

Para justificar sua aplicação a igrejas, seitas, movimentos antivacina, escoteiros etc., o Supremo Tribunal da Prússia criou a teoria do “perigo comunista indireto”. Uma decisão de 8 de dezembro de 1935, da divisão criminal do Supremo Tribunal da Prússia, por exemplo, reverteu uma decisão do Tribunal Municipal de Hagen que absolvera os membros de uma organização juvenil católica. Os réus haviam participado de excursões e concursos esportivos. A acusação alegava que, ao fazê-lo, eles haviam violado uma ordenança emitida pelo presidente do distrito, baseada no Decreto de 28 de fevereiro de 1933. A decisão declarou que o objetivo do nacional-socialismo era a concretização do ideal de “comunidade étnica” (Volksgemeinschaft) e a eliminação de todos os conflitos e tensões. Por essa razão, manifestações de diferenças religiosas, além das atividades eclesiásticas no sentido mais estrito, eram desaprovadas pelo regime. Segundo a decisão do Kammergericht: “Esse tipo de acentuação das clivagens existentes carrega em si o germe da desintegração do povo alemão. Tal desintegração só ajudará na disseminação dos objetivos comunistas”.

Ou seja, o fato de os réus se oporem diretamente ao ateísmo comunista não os livrou da condenação por “atividades comunistas indiretas”, porque, segundo o tribunal, “a expressão pública de uma opinião privada pode muito facilmente servir para encorajar pessoas que acreditam ou simpatizam com o comunismo ou que são politicamente indecisas. Esse encorajamento as levará a formar e difundir a opinião de que o Estado nacional-socialista não é apoiado pela totalidade do povo”.

Naquele contexto, todos os tribunais alemães passaram a recorrer às narrativas as mais esdrúxulas para tingir de direito e de normatividade o que não passava de arbítrio e decisionismo político. Em uma decisão de 9 de setembro de 1936, o Tribunal Administrativo de Württemberg, lidando com o Trabalho Missionário da Igreja Protestante, abandonou toda a pretensão de conexão entre as ações policiais (baseadas no Decreto do Incêndio do Reichstag) e a campanha anticomunista (uma conexão que ficava cada vez mais difícil de demonstrar), declarando de forma direta que “o decreto não foi destinado exclusivamente como proteção contra a ameaça do comunismo, mas contra qualquer perigo para a segurança pública e a ordem, independentemente de sua origem”. Essa decisão reforçou uma interpretação que já havia sido antecipada pelo Tribunal Distrital de Berlim quando, em 1.º de novembro de 1933, declarou que “todos os ataques à segurança pública e à ordem devem ser considerados como comunistas em um sentido mais amplo”. Seria apenas ridículo não fosse – considerado o contexto – terrível.

Da Alemanha para o Brasil

No Brasil de 2024, a última semana mostrou que, ao menos em termos de criatividade hermenêutica, cara-de-pau por parte dos intérpretes da norma e corrupção do direito, o Brasil caminha a passos largos para o totalitarismo. Todos viram quando, na última terça-feira, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, foi à Comissão de Segurança Pública do Senado tentar justificar o recente indiciamento dos deputados Marcel van Hattem (Novo-RS) e Cabo Gilberto Silva (PL-PB) por críticas dirigidas desde a tribuna da Câmara a um delegado da PF que tem atuado político-partidariamente. Segundo o ministro petista, a jurisprudência do Supremo havia caminhado no sentido de desconsiderar válida a imunidade parlamentar para o caso de crimes contra a honra – uma afirmação intrinsecamente ilógica, como bem observou o jurista André Marsiglia.

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Curiosamente, foi o mesmo Lewandowski (sempre petista, mas então na condição de ministro do STF) que, em 2021, havia justamente recorrido à imunidade parlamentar para rejeitar uma queixa-crime movida pelo empresário Luciano Hang contra o deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS), que o havia injuriado. Segundo Lewandowski, o deputado petista – mesmo não estando na tribuna, mas sim numa rede social – havia simplesmente dado vazão às suas convicções políticas, na medida justa do exercício do mandato, e que, portanto, sua fala estava protegida pela imunidade parlamentar.

Não poderia haver ilustração mais perfeita do monstro de duas cabeças descrito por Fraenkel. Em 2021, com a cabeça normativa, Lewandowski decidiu livrar um companheiro de ideologia recorrendo ao dispositivo legal da imunidade parlamentar. Três anos depois, com a cabeça prerrogativa, decidiu jogar no lixo essa mesma imunidade parlamentar a fim de chancelar o assédio policial a um adversário político. É o “Estado dual” à brasileira. Fraenkel horroriza-se no túmulo!

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]