“Não há nada mais permanente que um programa temporário de governo”, costumava dizer o economista liberal Milton Friedman. A frase serve não apenas para programas governamentais, mas para decisões do Estado em geral, sobretudo quando esse Estado envereda pelo totalitarismo, como é o caso presente do Estado brasileiro. Por aqui, não há nada mais permanente, por exemplo, do que a censura temporária.
Com efeito, desde ao menos o dia 20 de outubro de 2022, quando a ministra Cármen Lúcia acompanhou a maioria de seus colegas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e censurou o documentário do Brasil Paralelo sobre a facada em Jair Bolsonaro, o país trocou oficialmente o assim chamado Estado Democrático de Direito pelo Estado Excepcionalíssimo de Direito. Na ocasião, com semblante grave, Cármen Lúcia afirmou que “não se pode permitir a volta de censura sob qualquer argumento no Brasil”. Ato contínuo, foi lá e fez justamente o que dissera não se poder fazer: permitiu a volta da censura no Brasil – segundo ela, apenas naquela situação “excepcionalíssima”, pré-eleitoral, de modo a impedir “o comprometimento da lisura, da higidez, da segurança do processo eleitoral e dos direitos do eleitor”. Ou, traduzindo: para impedir que o material pudesse prejudicar o sucesso do candidato Luiz Inácio Lula da Silva, o preferido das autoridades eleitorais. Diante dessa missão excepcional, que mal haveria em mandar às favas o §2.º do artigo 220 da Constituição Federal, não é mesmo?
Missão dada, missão cumprida. Mas, obviamente, a cada momento surgem novos desafios excepcionais, que exigem flexibilidade hermenêutica dos intérpretes da Constituição e próceres do Estado Excepcionalíssimo de Direito. Foi seguindo essa mesma linha, então, que Alexandre de Moraes determinou a censura de todas as redes sociais de Monark, apelido do influenciador digital Bruno Monteiro Aiub, acusado de “subversão da ordem”. Sim, Moraes usou essa expressão típica da ditadura militar. Escreveu o censor em sua decisão inconstitucional: “Em face das circunstâncias apontadas, imprescindível a realização de diligências, inclusive com o afastamento excepcional de garantias individuais que não podem ser utilizadas como um verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas, tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito”.
Desde ao menos o dia 20 de outubro de 2022, o país trocou oficialmente o assim chamado Estado Democrático de Direito pelo Estado Excepcionalíssimo de Direito
Diante do caráter escancaradamente antidemocrático e inconstitucional da decisão contra Monark, até mesmo alguns veículos do assim chamado “consórcio” midiático resolveram ensaiar uma saída do estado de narcolepsia ao qual se haviam entregado nos últimos anos. Nesse sentido, foram esboçadas algumas tímidas críticas ao STF e a Alexandre de Moraes, de resto ainda visto quase que unanimemente como guardião da democracia contra os planos golpistas de Bolsonaro e correligionários.
Uma dessas críticas partiu de Lygia Maria, colunista da Folha de S.Paulo. No artigo “Quando a exceção vira norma”, a autora denuncia o perigo de se usar o medo coletivo (de futuros “ataques à democracia”, por exemplo) para justificar medidas excepcionais, à margem da Constituição, como têm procedido ministros do STF e do TSE desde, ao menos, o período eleitoral, e notadamente no caso da censura a Monark por conta de suas opiniões. “Não estamos numa ditadura, por óbvio, mas infringir a liberdade de expressão a partir do medo de uma abstração não é uma ferramenta democrática”, diz Maria. E conclui: “O medo gera a excepcionalidade, e sempre há o risco de o excepcional virar a norma”.
Confesso não ter entendido o porquê de a colunista enxergar como tão óbvia a afirmação de que não estamos numa ditadura, tendo em vista que a infração da liberdade de expressão a partir do medo é uma das características essenciais de toda ditadura, caracterizada justamente como um estado de exceção. Ora, se a autora admite que, sob o pretexto de salvaguardar a democracia, magistrados das nossas altas cortes têm posto entre parênteses uma cláusula pétrea da nossa Constituição – tanto mais em época de eleição, quando a liberdade de expressão é ainda mais vital –, por que ainda falar em “risco”? Parece óbvio que, no Brasil contemporâneo, o excepcional já virou a norma, e só o comprova a frequência com que essa palavrinha tem aparecido em decisões que violam reiteradamente direitos individuais fundamentais.
Crítica semelhante apareceu recentemente no Estadão, agora sob forma de editorial. Intitulado “Não se defende a democracia com censura”, o texto afirma: “Tem sido frequente – e não apenas da parte do sr. Alexandre de Moraes – ignorar essas exigências constitucionais sob o pretexto de proteção do bem maior, condição de todos os outros, que é a democracia (...) O argumento segundo o qual, na proteção de um bem muito importante, não deveria haver limitações para a atuação estatal foi o que o regime militar sempre utilizou em suas violações dos direitos humanos e das garantias fundamentais. A Constituição instaurou uma lógica muito diferente, que é a do Estado Democrático de Direito (...) Quando a Constituição proíbe a censura, não é mera sugestão, a depender das circunstâncias. É norma que obriga a todos, sempre”.
À primeira vista, como já sugeri, tem-se a impressão de que a censura ao Monark despertou a consciência desses veículos sobre a importância da defesa desse pilar da democracia que é a liberdade de expressão. Mas confesso não estar convencido. E saiu no próprio Estadão um texto que atiçou a minha desconfiança. Trata-se da coluna de Pedro Doria, na qual, como que encarnando o verdadeiro espírito desses jornais, o articulista parece trair sua ambiguidade em face do tema. Vejamos.
Numa camada mais superficial do texto referido, Doria defende a liberdade de Monark para “falar bobagens”. Segue nisso o teor do editorial, para o qual o influenciador digital também diz bobagens, como quando afirma que o TSE tentou manipular as eleições por meio da censura ou que Moraes prendeu pessoas sem base legal. Curiosamente, assim como o ministro do STF se abstém da necessidade de demonstrar o crime de Monark, o colunista e o editorialista do Estadão se furtam a justificar seu juízo sobre o teor das opiniões do fundador do Flow Podcast. Cheios de condescendência, limitam-se a dizer que, apesar de serem “bobagens” (tidas por autoevidentes), Monark tem o direito de as manifestar.
Depois de muitos outros arbítrios cometidos por agentes do Estado, reivindico o direito de suspeitar desse súbito escândalo diante do Estado Excepcionalíssimo de Direito que jornais e jornalistas ajudaram a legitimar
Mas uma segunda camada do artigo de Pedro Doria revela mais sobre o que a grande imprensa em geral tem pensado acerca da liberdade de expressão e de outros direitos fundamentais. Doria afirma não haver mais sentido em calar Monark, porque, afinal, as eleições já passaram. Em outras palavras: embora termine o artigo sublinhando a vedação à censura no texto constitucional, o articulista concorda indubitavelmente com a suspensão excepcional da liberdade de expressão, nisso concordando com o argumento dos magistrados censores. Para Doria, não foi certo calar Monark agora, mas foi certo calar um monte de gente – sobretudo aqueles estigmatizados como “bolsonaristas” – durante o período eleitoral. Sua defesa da liberdade de expressão é puramente casuística.
Aliás, sua opinião não surpreende, pois o articulista é reincidente na defesa da censura excepcional àqueles que enxerga como adversários políticos. É preciso nunca esquecer que quando, em 2020, o Twitter e o Facebook decidiram censurar a matéria verdadeira do New York Post sobre o laptop de Hunter Biden, contendo revelações que poderiam prejudicar a corrida eleitoral de Joe Biden contra Donald Trump, Pedro Doria aplaudiu a decisão, qualificando-a como “corajosa”. Em artigo publicado no jornal O Globo em 15 de outubro de 2020, escreveu ele: “O que Facebook e Twitter fizeram quarta-feira, nos Estados Unidos, é histórico. Cercadas por críticas justas relacionadas a suas condutas em inúmeras eleições – incluindo as que levaram à presidência Donald Trump, em 2016 –, as duas plataformas agiram com incrível coragem numa decisão particularmente difícil (...) Do ponto de vista jornalístico, porém, uma decisão indubitavelmente correta. Uma decisão que também levanta o debate a respeito da fronteira entre imprensa e redes sociais”.
Fica claro que, para Pedro Doria e a maioria de seus colegas de “consórcio”, o excepcional já é a norma. O que, aliás, é perfeitamente justificável, quando se trata de impedir os terríveis efeitos colaterais da democracia, a exemplo da eleição de Trump ou de Bolsonaro. Eis por que os veículos que hoje afirmam ser preciso tolerar as “bobagens” de Monark, tenham calado ou aplaudido as medidas excepcionais que têm sido adotadas no país desde, ao menos, 2019, com a abertura do primeiro dos inquéritos “do fim do mundo”. Quando se trata de atingir os alvos certos, e na ocasião adequada, que mal há nisso?
Quando, por exemplo, a Polícia Federal entrou na casa do jornalista Allan dos Santos e apontou uma arma para sua mulher grávida, esses jornais calaram ou aplaudiram. Fizeram o mesmo quando da busca e apreensão na casa de empresários por conta de mensagens privadas em grupo de WhatsApp. Quando prenderam Daniel Silveira, Roberto Jefferson, o cacique Serere, o humorista Bismarck, do canal Hipócritas, e tantos outros. Quando censuraram centenas de pessoas de direita, incluindo muitos jornalistas. Quando censuraram a Jovem Pan. Quando bloquearam as contas bancárias e cassaram o passaporte de Rodrigo Constantino e Paulo Figueiredo. Quando aposentaram compulsoriamente a juíza Ludmilla Lins Grillo etc. Enfim, depois de tudo isso, e de muitos outros arbítrios cometidos por agentes do Estado, reivindico o direito de suspeitar desse súbito escândalo diante do Estado Excepcionalíssimo de Direito que esses jornais e jornalistas ajudaram a legitimar.