“Se o clero continua a ser proprietário, continuará a formar uma ordem dentro da nação.” (Le Chapelier, Assembleia Nacional, fevereiro de 1790)
“O confisco dos bens eclesiais, em particular dos mosteiros, abadias e igrejas mais ricos, deve ser conduzido com determinação implacável, sem interrupções e no tempo o mais breve possível. Quanto maior o número de representantes do clero reacionário e da burguesia reacionária conseguirmos executar, melhor. Devemos ensinar a essas pessoas uma lição imediata, para que não ousem sequer pensar em qualquer resistência nas décadas seguintes.” (Vladimir Lenin, 19 de março de 1922, em carta ao camarada Molotov e demais membros do Politburo)
No fim do artigo anterior, comentei sobre a objeção que me foi feita por um seguidor nas redes sociais diante da minha sugestão de que, seguindo um padrão histórico recorrente desde a Revolução Francesa, e a exemplo do que ocorre nos países vizinhos governados por partidos socialistas (notadamente a Nicarágua), o lulopetismo pode, sim, dar início a uma perseguição mais sistemática às igrejas cristãs. O contexto era uma postagem minha sobre esta chamada do portal UOL: “Bolsonaro repete mentira de Feliciano de que esquerda defende fechar igreja”.
No comentário à notícia, dizia eu não ser possível tachar de “mentira” uma tal especulação sobre o futuro, sobretudo quando deduzida da tradição pregressa de uma cultura política revolucionária que perseguiu o cristianismo por onde passou. “França 1789: fecharam igrejas. Rússia 1917: fecharam igrejas. China 1949: fecharam igrejas. Cuba 1959: fecharam igrejas. Venezuela 1999: fecharam igrejas. Nicarágua 2022: fecharam igrejas. É mentira imaginar que o consorte brasileiro desses regimes possa fazer o mesmo?” – perguntei na ocasião.
Com certa ironia, o sujeito pediu-me “evidências concretas” para a minha afirmação “categórica” (em suas palavras) de que o PT fosse fechar igrejas. Em seguida, apontou uma suposta contradição entre a hipótese da perseguição mais ostensiva e a ideia – que ele deve ter me visto sugerir alhures – de que, seguindo a estratégia gramsciana, o PT havia se infiltrado nas igrejas. “Vão fechar tudo ao mesmo tempo que estão infiltrados nela? A estratégia é dominar por dentro ou proibir?”, perguntou. Como a posição do rapaz é representativa de um certo ceticismo metido a prudente e sofisticado, para o qual todo alerta contra o risco de violência política é “teoria da conspiração”, creio ser interessante responder à crítica.
Em nenhum momento afirmei categoricamente que, caso voltem ao poder, os socialistas brasileiros irão fechar igrejas. O que fiz foi apontar a impertinência lógica de se catalogar essa hipótese como “mentira” ou “fake news”
Em primeiro lugar, noto que em nenhum momento afirmei categoricamente que, caso voltem ao poder, os socialistas brasileiros irão fechar igrejas. O que fiz, tendo em vista a matéria do UOL, foi apontar a impertinência lógica de se catalogar essa hipótese como “mentira” ou “fake news”. Sendo o meio inicial para o processo de busca da verdade, uma hipótese, por definição, não pode ser mentirosa ou verdadeira, mas apenas a eventual conclusão que enseje. No caso particular da hipótese em tela, ademais, há todo um contexto que lhe confere plausibilidade, uma vez que o lulopetismo é uma espécie do gênero “socialismo latino-americano”, que produz regimes nos quais igrejas são, de fato, atacadas e fechadas. O socialismo latino-americano, por sua vez, é espécie do gênero “socialismo”, que é espécie do gênero “revolução”, que, desde a França de 1789, tem a violência anticristã como parte inerente do seu horizonte de possibilidades. Como lembrei no meu comentário, é isso o que nos mostra a história dessa tradição política.
Em segundo lugar, não há qualquer oposição essencial entre o método da infiltração/cooptação e o da violência, entre o aparelhamento das igrejas e o seu fechamento. Revolucionários e socialistas – incluindo os sandinistas na Nicarágua, como mostrei antes – sempre lançaram mão das duas estratégias ao mesmo tempo, tomando por dentro as mais vulneráveis e atacando desde fora as mais resistentes. Além disso, o ataque externo pode ocorrer sob várias maneiras, não exclusivamente na base da destruição e do fechamento forçado. Aliás, a violência física propriamente dita – o fechamento, a depredação, o incêndio criminoso, a prisão, a tortura e a morte de sacerdotes e fiéis – costuma ser a última etapa num processo em que as fases anteriores são, normalmente, a violência simbólica (retórica) e, em seguida, o assédio administrativo, burocrático e judicial (cobrança de impostos, fiscalização abusiva, cassação de licenças de funcionamento, recusa de alvarás, exigências burocráticas draconianas etc.).
Os revolucionários franceses fecharam igrejas. Mas não começaram fechando-as. E, quando o fizeram, não fecharam todas. O que eles fizeram inicialmente foi tomar uma série de medidas políticas e administrativas destinadas a descaracterizar e submeter a Igreja. Uma dessas primeiras medidas foi decidida na Assembleia, em sessão de 28 de outubro de 1789, quando ficou decidida a suspensão temporária da profissão dos votos religiosos. Mas, como “nada é tão permanente quanto um programa temporário de governo” – como diria Milton Friedman –, um novo decreto, de 13 de fevereiro de 1790, proibia definitivamente todas as ordens monásticas e mendicantes, abolia a dízima (que compunha mais da metade dos rendimentos dos sacerdotes) e “nacionalizava” os bens eclesiásticos.
A chamada Constituição Civil do Clero – que retirava a autonomia administrativa da Igreja, submetendo-a ao Estado e transformando os sacerdotes em funcionários públicos – foi promulgada meses depois. O documento abria com uma série de medidas restritivas: destruía os benefícios não inerentes a cargos; destituía dezenas de bispos, permitindo apenas um em cada departamento; reduzia o número de arcebispos, que passavam a chamar-se “metropolitanos”; e não admitia mais que um único cura em cada vila de até 10 mil habitantes ou comuna rural com uma área de duas léguas quadradas. Determinava-se que bispos e curas deveriam ser escolhidos por sufrágio geral, via nomeação de conselhos locais. A instituição canônica passava a ser conferida aos bispos pelo metropolitano, e não pelo papa. Em caso de recusa, o tribunal civil designava outro prelado para o substituir. O papa era simplesmente informado das nomeações. Surgia uma igreja cismática.
O objetivo de todas essas iniciativas era pôr a Igreja na total dependência do Estado. Subjugava-se e secularizava-se o clero, obrigando-o a curvar-se à nova ordem, e colocando os valores seculares revolucionários acima dos de ordem espiritual, a lealdade à nação acima do amor a Deus. E o processo escalonava. Em novembro, a Assembleia resolveu obrigar todos os sacerdotes a prestar juramento de fidelidade à Constituição Civil, sob pena de demissão e outras sanções. O cisma passava a ser obrigatório. Os clérigos que, sem prestar o juramento, insistissem em oficiar os cultos e exercer suas prerrogativas sacerdotais eram perseguidos, condenados e punidos como subversivos. O mesmo valia para leigos que colaborassem com a contrarrevolução.
Essa foi a sucessão de etapas da perseguição religiosa na França revolucionária. Apenas um ano e meio após o início da Revolução, a Igreja já se encontrava inteiramente descaracterizada, subjugada e humilhada. Finalmente, o cenário estava montado para o início da violência anticristã oficial, voltada contra os clérigos e fiéis que se recusavam a adorar o Bezerro de Ouro da República francesa. Ou seja, de início a fé cristã foi tolerada, conquanto se mantivesse em privado. Em seguida, tornou-se cada vez mais guetificada, quase clandestina. Depois, foi progressivamente desnaturada, sendo os fiéis forçados a abdicar de elementos vitais de seu credo. E, finalmente, passou a ser perseguida pelo uso da força.
A violência física propriamente dita – o fechamento, a depredação, o incêndio criminoso, a prisão, a tortura e a morte de sacerdotes e fiéis – costuma ser a última etapa num processo em que as fases anteriores são, normalmente, a violência simbólica e, em seguida, o assédio administrativo, burocrático e judicial
Um processo similar ocorreu na Rússia tomada pelos comunistas. Em A Tragédia de um Povo: A Revolução Russa (1891-1924), o historiador Orlando Figes registra que, de 1917 a 1921, os ataques anticristãos começaram com uma intensa propaganda, pela qual as crenças dos camponeses eram ridicularizadas, os milagres eram tachados de mitos, os sepulcros contendo relíquias de santos eram abertos e profanados, e os membros do clero, retratados como parasitas. Os jornais locais denunciavam cotidianamente as atividades “reacionárias” dos padres da região. A literatura e a música tidas por religiosas eram proibidas, incluindo obras de Platão, Kant, Schopenhauer e Tolstoi, bem como cantatas e missas de Bach, o Réquiem de Mozart e as Vésperas de Rachmaninoff. Surgiu também uma arte iconoclasta, ostensivamente blasfema contra os símbolos cristãos.
Em 1918, um decreto bolchevique extinguiu o direito à propriedade dos sacerdotes, tornando-os dependentes dos soviéticos, os novos proprietários e locadores das terras paroquiais. Em seguida, Lenin determinou que a Igreja pusesse à venda o seu patrimônio sacro. Ciente de que o clero não acataria a ordem, o ditador bolchevique pretendia estigmatizá-lo como egoísta e insensível aos sofrimentos do povo. A partir de 1921, a cristofobia bolchevique começou a passar das palavras à ação. Em fevereiro, ordenou-se aos sovietes que confiscassem todos os valores encontrados nas igrejas, inclusive relíquias e objetos de culto. Bandos armados destruíram as paróquias, levando tudo o que achavam pela frente: ícones, cruzes, cálices, mitras etc. Os cristãos armavam-se como podiam para defender os seus templos, numa luta desigual. As turbas bolcheviques tinham metralhadores, e com elas massacravam velhos e mulheres portando terçados e rifles enferrujados. Somente entre os anos de 1922 e 1923, diz Figes, mais de 7 mil religiosos foram assassinados, sendo metade dessa cifra composta por freiras. Em comunicado sigiloso que só veio a se tornar público em 1990, Lenin ordenou o extermínio de todo o clero, maliciosamente associado à reação czarista: “Cheguei à conclusão inequívoca de que devemos travar a mais decisiva e impiedosa guerra contra os clérigos que apoiam os Cem Negros [bandos contrarrevolucionários criados pela polícia czarista], acabando com toda a resistência e usando toda a crueldade, de forma que dela não se esqueçam por décadas. Quanto aos demais sacerdotes e membros da burguesia reacionária, o melhor é fuzilá-los”.
Nota-se, portanto, que a violência anticristã característica dos movimentos revolucionários e socialistas nunca irrompe subitamente, de maneira imprevista. Ao contrário, ela se dá em etapas, cuja transição ocorre de maneira mais ou menos acelerada, a depender das circunstâncias. Não, nunca afirmei categoricamente que, num eventual retorno ao poder, o lulopetismo irá necessariamente recorrer à violência ostensiva contra as igrejas cristãs. Digo que, levando em conta a escalada da cristofobia nos países vizinhos governados por ditaduras socialistas historicamente aliadas ao PT (uma verdade que os censores do TSE tentarão em vão suprimir), essa é uma possibilidade plausível, contra a qual os cristãos brasileiros devem se precaver. Sobretudo porque uma das etapas daquele processo já parece estar em execução, uma vez que a retórica do candidato petista – que fala abertamente em dispensar padres e pastores – revela um claro propósito de submeter os cristãos e suas igrejas aos critérios de sua agenda político-partidária. Nesse contexto, as igrejas e os sacerdotes “companheiros” (mesmo que excomungados por adesão ao marxismo) serão legitimados e erguidos à condição de representantes exclusivos do cristianismo. Quanto aos “refratários”, não é absurdo imaginar que venham a ser alvo de campanhas difamatórias, perseguição administrativa, assédio judicial e, quiçá, violência. Escandalizar-se com essa hipótese e reputá-la como impossível só pode ter duas causas: ignorância histórica ou má intenção (desejo de acobertar a ação).