“A literatura é um apocalipse humano, a revelação do homem a si mesmo” (Northrop Frye, A Imaginação Educada)
Em 1912, na qualidade de fundador e diretor da Nouvelle Revue Française (NRF), Andre Gide recusou o manuscrito de O Caminho de Swann, primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, a obra-prima de Marcel Proust. Tendo muitas vezes esbarrado com Proust nos salões parisienses, Gide desprezava-o por esnobe e fútil. Por causa dessa antipatia pessoal, acredita-se que o manuscrito nem sequer tenha sido aberto naquela ocasião.
Tempos depois, todavia, o escritor e jornalista Jean Schlumberger, co-fundador da NRF, insistiu com o colega para que lesse com carinho o volume impresso. Diante da persistência de Schlumberger, Gide acabou lendo-o de cabo a rabo. Finda a leitura, concluiu pesaroso: “Cometi o erro mais pungente da minha vida” – conforme admitiu posteriormente numa das cartas trocadas com Proust.
E foi somente depois de corrigir o erro e publicar pela NRF À sombra das raparigas em flor, segundo volume da epopeia proustiana, que Gide pôde, enfim, comentar sobre o genial desafeto: “Uma vez que os sentimentos mais diversos existem em cada homem em estado larval, o mais das vezes à sua revelia, que estão só à espera de um exemplo ou de uma designação, ia dizer: de uma denúncia, para poder se afirmar, imaginamos, graças a Proust, ter sentido nós mesmos esse detalhe, nós o reconhecemos, o adaptamos, e é nosso próprio passado que essa abundância vem enriquecer”.
Quem quer que reconheça o potencial da literatura não pode deixar de saudar o programa de incentivo à leitura em família recém-lançado pelo MEC
Nesse elogio tardio, não menos pungente que o erro original, resume-se o significado de uma expressão hoje muito repetida nos meios conservadores brasileiros, mas nem sempre bem compreendida: a noção burkeana de imaginação moral, que, grosso modo, poderia ser definida como a capacidade de conceber os mais variados e profundos dilemas morais enfrentados pelo homem sem a necessidade de os vivenciar em primeira pessoa.
Há muitas maneiras de alargar a nossa imaginação moral, mas nenhuma, talvez, tão eficaz e duradoura quanto a que Lionel Trilling chamou certa vez de “a experiência da literatura”. Carente de literatura, a imaginação encolhe, e nem a mais sólida erudição acadêmica, bem como o mais completo domínio de bibliografias especializadas, poderá compensar uma imaginação moral atrofiada.
Portanto, o que Gide diz de Proust vale para a grande literatura como um todo. Com a leitura dos clássicos, temos a chance de experimentar situações e dramas humanos que, de outro modo, jamais experimentaríamos. Por meio deles, expandimos o nosso horizonte de consciência, transcendendo provincianismos pessoais e culturais, tomando parte no grande diálogo da humanidade consigo mesma, e adquirindo aquele senso de eternidade sem o qual não passamos de primatas vestidos.
Num de seus trabalhos mais interessantes, o linguista búlgaro Tzvetan Todorov salientou essa função da literatura: “Mais densa e mais eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. Somos todos feitos do que os outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis, que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano”.
Em A Imaginação Educada, também o crítico canadense Northrop Frye faz uma ode à capacidade que tem a literatura de expandir a nossa imaginação moral, definida pelo autor como “o poder de construir modelos possíveis da experiência humana”. À semelhança de Gide e Todorov, Frye afirma que “nossas impressões sobre a vida humana vão acumulando-se uma a uma e, para a maioria de nós, permanecem vagas e desorganizadas. Na literatura, porém, muitas dessas impressões de repente ganham ordem e foco. Isto é parte do que Aristóteles quer dizer quando fala em evento humano típico ou universal... Enquanto leitor de literatura, eu existo somente na qualidade de representante da humanidade inteira. Não importa quanta experiência acumulemos ao longo dos anos, jamais alcançaremos em vida toda a dimensão da experiência proporcionada pela imaginação. Só conseguem alcançá-la as artes e as ciências, e, destas, só a literatura nos dá toda a amplitude e alcance da imaginação humana tal como ela se vê”.
Quem quer que reconheça esse potencial da literatura não pode deixar de saudar o programa de incentivo à leitura em família recém-lançado pelo Ministério da Educação (MEC). Intitulado Conta pra Mim: programa de promoção da literacia familiar, o projeto foi idealizado pelo secretário de Alfabetização, Carlos Nadalim, tendo como meta declarada o engajamento de pais e demais familiares no processo de desenvolvimento linguístico, cognitivo e imaginativo das crianças, e partindo do pressuposto (a meu ver, corretíssimo) de que o interesse pela leitura começa dentro de casa, e que, antes mesmo de entrar na escola, os filhos devem ter nos pais os primeiros e mais consistentes modelos de leitor.
O paradigma educacional lulopetista consiste, antes de tudo, numa visão antifamiliar da educação, compreendida como meio de superação dos “preconceitos” herdados do ambiente doméstico
O programa – que, graças à notória má vontade da imprensa para com o governo Bolsonaro, não tem tido a repercussão que merece – é valioso, entre outras coisas, por inverter radicalmente o paradigma adotado pelo MEC durante os anos de regime lulopetista, ao longo dos quais, dentre outras consequências danosas, os nossos estudantes foram conduzidos a uma situação de semianalfabetismo, como demonstram mais uma vez os resultados do último Pisa.
Em que consistia o paradigma educacional lulopetista, cujos pressupostos são ainda partilhados pelo grosso da nossa classe falante, esnobe e elitista como só? Antes de tudo, numa visão antifamiliar da educação, compreendida como meio de superação dos preconceitos (“burgueses”, “conservadores”, “reacionários” etc.) herdados do ambiente doméstico. Como corolário dessa opção ideológica, as escolas foram convertidas em nada menos que centrais de formação de ativistas políticos apartados da família e da comunidade – e, portanto, mais suscetíveis à influência dos intelectuais do partido.
Nesse quesito, o lulopetismo foi fiel a uma longa tradição revolucionária em que a educação é concebida, por assim dizer, contra os pais e a família. “Não se deve abandonar às luzes e preconceitos dos pais a educação de seus filhos, pois ela importa ao Estado mais que aos pais”, já escrevia Rousseau no século 18, ideia que, dois séculos depois, seria expressamente defendida por Lilina Zinoviev, precursora do ensino soviético: “Devemos fazer da geração jovem uma geração de comunistas. As crianças, como cera, são muito maleáveis e devem ser moldadas como bons comunistas. Devemos resgatar os infantes da influência nociva da vida familiar. Devemos racionalizá-los. Desde os primeiros dias de sua existência, os pequenos devem ser postos sob a ascendência de escolas comunistas para aprenderem o ABC do comunismo… Obrigar as mães a entregar seus filhos ao Estado soviético – eis nossa tarefa”.
Eis também a tarefa que, atualmente, tipos como a procuradora petista Deborah Duprat parecem ter assumido para si.
Nota-se que, de acordo com essa linhagem política, a educação não é vista como um bem transmitido às crianças de geração em geração, mas como meio de criação do homem novo. Foi o que admitiu ninguém menos que Che Guevara, que, em Socialismo e o Homem em Cuba, disse-o com todas as letras: “Na nossa sociedade, jogam um grande papel a juventude e o partido. A primeira é particularmente importante por ser a matéria maleável com a qual se pode construir o homem novo sem nenhuma das taras anteriores”.
Como explica o historiador Orlando Figes em Sussurros: A Vida Privada na Rússia de Stalin: “A família era o primeiro campo de batalha dos bolcheviques. Nos anos 1920, eles tinham por artigo de fé que a ‘família burguesa’ era socialmente danosa: autocentrada e conservadora, era vista como um reduto de religião, superstição, ignorância e preconceito; estimularia o egoísmo e o consumismo, oprimindo mulheres e crianças. Os bolcheviques esperavam que a família desaparecesse à medida que a Rússia soviética se tornasse um sistema socialista pleno, no qual o Estado assumiria a responsabilidade por todas as funções domésticas básicas, fornecendo berçários, lavanderias e refeitórios em centros públicos e conjuntos habitacionais. Liberadas do trabalho doméstico, as mulheres estariam livres para integrar a força de trabalho em pé de igualdade com os homens. O casamento patriarcal, com sua moral sexual submissa, deveria morrer e ser substituído – assim acreditavam os radicais – por ‘uniões de amor livre’... O ABC do Comunismo (1919) vislumbrava uma sociedade futura na qual os pais já não usariam o pronome ‘meu/minha’ para se referir aos filhos, que seriam criados de maneira comunitária”.
Refletindo sobre a crise educacional por ela já diagnosticada nos anos 1950, a filósofa Hannah Arendt pôs o dedo na ferida, destrinchando o processo pelo qual, desde o século 18, a educação veio sendo transformada em instrumento da política e, em especial, de projetos políticos totalitários. No ensaio “A Crise na Educação” (1957), publicado na revista americana Partisan Review, Arendt escreve: “O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas, desde a Antiguidade até os nossos dias, mostra bem como pode parecer natural querer começar um mundo novo com aqueles que são novos por nascimento e por natureza. No que diz respeito à política há aqui, obviamente, uma grave incompreensão: em vez de um indivíduo se juntar aos seus semelhantes assumindo o esforço de os persuadir e correndo o risco de falhar, opta por uma intervenção ditatorial, baseada na superioridade do adulto, procurando produzir o novo como um fait accompli, quer dizer, como se o novo já existisse… É por essa razão que, na Europa, a crença de que é necessário começar pelas crianças se se pretendem produzir novas condições tem sido monopólio principalmente dos movimentos revolucionários com tendências tirânicas, movimentos esses que, quando chegam ao poder, retiram os filhos aos pais e, muito simplesmente, tratam de os endoutrinar”.
É significativo que o projeto do MEC venha sendo ignorado ou desdenhado pelos nossos bem-pensantes, com destaque para os jornalistas
No mesmo texto, Arendt denuncia especificamente a perversidade dessa educação antifamiliar, que retira das crianças aquilo de que mais têm necessidade para desenvolver plenamente as suas capacidades cognitivas, emocionais e intelectuais, assim convertendo-as em autômatos sem alma, meros replicadores de slogans e palavras de ordem. Nas palavras da filósofa: “Porque a criança tem necessidade de ser protegida do mundo, seu lugar é no seio da família. É para lá que os adultos regressam a cada dia do mundo exterior e se unem na segurança da vida privada, ao abrigo de quatro muros. Esses quatro muros, ao abrigo dos quais se desenrola a vida íntima familiar, constituem uma proteção contra o mundo e, em particular, contra o aspecto público do mundo. Delimitam um lugar seguro sem o qual nenhuma vida pode prosperar. Isso é válido não somente para a vida da criança, mas também para a vida em geral – por todo lado em que esta é constantemente exposta ao mundo sem a proteção da intimidade e da segurança privadas, a sua qualidade vital é destruída”.
É esse “abrigo de quatro muros” e essa “proteção da intimidade” que o programa Conta pra mim parece querer valorizar, partindo do correto diagnóstico de que foi justamente esse domínio privado e inviolável do lar o principal alvo do ataque das políticas educacionais progressistas das últimas décadas, em especial a do lulopetismo. Se esta última pretendeu usar a escola para “libertar” os alunos daquilo que Che Guevara definiu como “taras anteriores” – ou seja, a influência da família –, a atual política educacional parece seguir o caminho inverso, valorizando o papel da família na formação intelectual da criança, e preparando-a, assim, para uma bem-sucedida educação escolar e universitária. Antes, a criança era meio; agora, ela é fim. Uma mudança e tanto...
Resta significativo, por último, que o projeto venha sendo ignorado ou desdenhado pelos nossos bem-pensantes, com destaque para os jornalistas, ao mesmo tempo produtos e agentes dessa educação revolucionária estupidificante, que, aniquilando o seu discernimento natural e a sua imaginação moral, infundiu-lhes a patológica ambição de mudar o mundo sem, todavia, fornecer-lhes os instrumentos básicos para compreendê-lo minimamente.