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“E em apoio desta declaração, plenos de firme confiança na proteção da Divina Providência, empenhamos mutuamente nossas vidas, nossas fortunas e nossa sagrada honra.” (Declaração de Independência dos EUA, 1776)
Simulações gráficas veiculadas nas redes sociais mostram o quão perto Donald Trump esteve de morrer, numa cena que, transmitida ao vivo, em alta qualidade e por todos os ângulos, decerto teria sido uma das mais impactantes da história. Uma fugidia, milimétrica e coincidente inclinação da cabeça tirou sua têmpora do caminho do projétil, o qual, acertando apenas de raspão a sua orelha direita, provocou ferimentos sem gravidade. Diante desse evento, as pessoas de mentalidade secularista concluíram inevitavelmente ter sido um incrível golpe de sorte do ex-presidente e atual candidato republicano. Já as pessoas de fé não tiveram como deixar de atribuir a sobrevivência de Trump a um milagre divino.
No dia seguinte ao atentado, Donald Trump foi à sua rede Truth Social para agradecer aos que rezaram por sua vida e defender a tese do milagre: “Agradeço a todos pelos pensamentos e orações de ontem, pois foi somente Deus quem impediu que o impensável acontecesse”. Ou seja, Trump, o cristão, interpretou o ocorrido como tantos outros compatriotas e companheiros de credo religioso – como uma intervenção divina. Mas, longe de ser uma mera expressão individual de fé, sua postagem também refletiu uma dimensão cultural profunda, inserindo-se na longa tradição americana de interpretar a história do país como sendo inerentemente marcada pela Providência.
A linguagem do judaísmo se tornou a linguagem central da metafísica americana, o pano de fundo implícito para uma visão americana especial da natureza, da história e do destino da humanidade
Essa interpretação foi muito bem examinada pelo filósofo Michael Novak no livro On Two Wings: Humble Faith and Common Sense at the American Founding, sobre o qual já comentei aqui na coluna. Novak descreve a autocompreensão dos Pais Fundadores dos EUA como sendo uma “metafísica da Bíblia hebraica”, que lhes infundiu a certeza da necessidade de instituírem uma nação independente e autogovernada, submetida única e exclusivamente à vontade de Deus. De fato, era comum entre os colonos americanos considerar a América como sendo uma “Nova Israel”, e interpretar os eventos políticos e históricos da época – sobretudo a Guerra de Independência – à luz da história de salvação do povo hebreu. Para se ter uma ideia, num artigo intitulado “The relative Influence of European writers on late eighteenth-century American political thought”, publicado em 1984 na American Political Science Review, o historiador americano Donald Lutz elencou 3.154 citações nos escritos dos Pais Fundadores. Dentre essas, 1,1 mil (34%) eram da Bíblia, enquanto apenas cerca de 300 eram de Montesquieu e Blackstone, e um número ainda menor de Locke, Hume e Plutarco (frequentemente tidos como os maiores inspiradores da República americana).
Como mostra Novak, praticamente todos os cristãos americanos basearam seus principais argumentos sobre a política nos materiais do Antigo Testamento. A linguagem do judaísmo se tornou a linguagem central da metafísica americana, o pano de fundo implícito para uma visão americana especial da natureza, da história e do destino da humanidade. “A Bíblia era o único livro que os americanos letrados nos séculos 17, 18 e 19 seguramente conheciam bem”, escreveu Robert Bellah. “A imagética bíblica forneceu a estrutura básica para o pensamento imaginativo na América”. E foi assim até mesmo para os mais secularistas entre os fundadores, a exemplo de Thomas Jefferson.
Como um design para o Selo dos Estados Unidos, por exemplo, Jefferson sugeriu “uma representação dos filhos de Israel no deserto, guiados por uma nuvem de dia e uma coluna de fogo de noite”. Mais tarde, ele fecharia o seu segundo discurso inaugural com essa mesma imagem: “Eu precisarei (...) do favor daquele Ser em cujas mãos estamos, que guiou nossos pais, como o Israel de antigamente, de sua terra natal e os plantou em um país fluindo com todas as necessidades e confortos da vida”. Essa imagem de “Israel Americana de Deus” tem fornecido uma perspectiva bastante sólida para a autocompreensão americana de sua história e posição no mundo, baseada numa sequência de premissas relacionadas, a saber: 1. que o tempo teve um início e seu progresso (ou declínio) é medido pelos padrões de Deus; 2. que tudo no mundo é inteligível, e que inquirir, inventar e descobrir é um impulso de fé tanto quanto de razão; 3. que o Criador nos dotou de liberdade e dignidade inviolável, enquanto o “Juiz Divino” demonstra preocupação pelos fracos e humildes; 4. que a vida é um tempo de dever e prova; 5. que a história deve ser compreendida como o drama da liberdade humana. Todas essas concepções formam o pano de fundo que dá sentido à própria Declaração de Independência.
Sem esse pano de fundo metafísico, argumenta Novak, a geração fundadora de americanos dificilmente teria tido a disposição necessária para a Guerra de Independência. Na qualidade de homens ordeiros, teriam poucas razões para acreditar que a sua rebelião ilegal cumpria a vontade de Deus e correspondia às leis naturais por Ele promulgadas. Considere-se o perigo em que a rebelião os colocou: quando assinaram a Declaração, estavam cometendo traição aos olhos do rei da Inglaterra. Se seus frágeis esforços falhassem, sua flagrante traição aos solenes juramentos de lealdade que haviam feito ao rei os condenaria a uma execução pública. Diante das futuras gerações, os seus filhos seriam desonrados. Para acalmar os seus temores, tudo o que puderam fazer foi apresentar o seu caso perante um Juiz maior e totalmente infalível, “apelando ao Supremo Juiz do mundo pela Retidão de nossas Intenções” – como se lê na Declaração.
Muitos dos eventos concernentes ao processo de independência americana revelam o poder dessa concepção religiosa e dessa crença na intervenção da Providência divina na história. Citarei apenas um dos mais marcantes, referentes à atuação de George Washington à frente dos briosos soldados amadores que se tornariam o Exército Continental. Logo que assumiu o comando, o general Washington começou a preparar e fortalecer os seus homens para as adversidades que estavam por vir. Porque uma coisa era se manter em pé, com peitos inflados em linha reta, sob bandeiras esvoaçantes, ao som do pífaro e dos tambores, e outra coisa era manter a posição quando as balas de mosquete britânicas rugissem aos seus ouvidos e a visão e o som da carne dilacerada dos companheiros aterrorizassem os espíritos. Washington sabia que haveria invernos rigorosos e verões quentes, falta de salário e pouca comida, que alguns permaneceriam em seus postos e outros deserdariam. Sabia que as vitórias seriam escassas, que o combate frontal deveria ser tão raro quanto possível, e que os homens teriam de se acostumar a recuar e se evadir, manobras difíceis para o moral masculino.
No fim das contas, Washington sabia que sua única esperança estava em instigar nos seus homens uma profunda convicção de agiam em honra de Deus e sob a proteção de Deus. Sua única esperança estava em moldar um corpo piedoso, cuja fé não estava em sinais imediatos de encorajamento no campo de batalha, mas na total confiança de que seu Criador desejava a vindicação final dos direitos com os quais Ele os havia dotado.
Muitos dos eventos concernentes ao processo de independência americana revelam o poder da concepção religiosa e da crença na intervenção da Providência divina na história
Com isso em mente, Washington deu ordens para que todos os dias da guerra começassem com uma oração formal, a ser conduzida pelos oficiais de cada unidade. Decretou também que toda profanidade fosse banida, bem como toda conduta que pudesse ofender os cidadãos, dos quais dependiam totalmente para seu apoio. Washington prometeu punição severa a qualquer um que proferisse juramentos que ofendessem a Deus ou ao homem. Os homens do Exército Continental deviam garantir a bênção de Deus em seus esforços todos os dias, por todos os meios ao seu alcance. Nada mais poderia garantir o sucesso. Não havia outra esperança.
Assim, em 9 de julho de 1776, Washington emitiu uma ordem que dizia: “Os coronéis ou oficiais comandantes de cada regimento são instruídos a contratar capelães de acordo com o decreto do Congresso Continental, pessoas de bom caráter e vidas exemplares – para garantir que todos os oficiais subalternos e soldados lhes deem o devido respeito e participem atentamente das atividades religiosas”.
Creia-se ou não no caráter sobrenatural dessa disciplina religiosa, o fato é que ela serviu de base para a interpretação de um evento de guerra tido por miraculoso, e que muitos na época chamaram mesmo de “o milagre de Long Island”. Ao fim da temporada de combates, em agosto de 1776, George Washington reunira um corpo principal de cerca de 12 mil milicianos locais do Exército Continental em Long Island. Resta que, com manobras navais súbitas, os generais britânicos Howe, Clinton, Cornwallis e Percy, junto com o major-general alemão Von Heister, desembarcaram um destacamento real duas vezes maior na retaguarda do Exército Continental. Os britânicos tomaram posições para marchar rapidamente em direção ao East River para prender todo o exército de Washington e pôr um fim repentino à insurreição. Quando a noite caiu, vendo a grande força que haviam reunido e seu alto moral, os britânicos estavam confiantes na vitória no dia seguinte. Os americanos, no entanto, sabiam que poderiam perder tudo. Washington, desesperado, convocou todos os barcos disponíveis e começou a transportar suas tropas sob a cobertura da noite de volta para Manhattan.
Durante toda a noite, os homens procuraram barcos, marcharam em silêncio e remaram, mas, ao amanhecer, apenas uma fração do exército havia conseguido escapar. Apesar de trabalharem de maneira rápida e frenética, Washington e seus homens prepararam-se para o pior. Eis que, como que em resposta às suas orações, uma neblina densa se formou e durou até o meio-dia. Empregando cada minuto dessas horas extras, Washington viu o último de seus homens desembarcar. Todo o seu exército havia escapado. Muitos agradecimentos a Deus foram feitos aos céus.
Para muitos homens, o assim chamado “milagre de Long Island” foi um desses “sinais de intervenção” da Providência Divina, mencionadas tanto por Washington quanto por James Madison no 37.º Federalist Paper. Apesar de tantas razões para a desunião – os delegados vieram de estados escravistas e livres, de pequenos estados e grandes, de estados ricos e pobres –, “Públio” (o pseudônimo usado por Madison e Hamilton para escrever os Federalist Papers) maravilhou-se com a unanimidade improvável alcançada na Convenção Constitucional: “É impossível para o homem de reflexão piedosa não perceber nisso o dedo da mão do Todo-Poderoso, que foi estendido de maneira tão frequente e significativa para nosso alívio nas fases críticas da revolução”.
Assim, do nevoeiro de Washington à orelha de Trump, a história americana segue sendo interpretada por seus protagonistas como um episódio da grande história da salvação humana e como realização da vontade de Deus na Terra.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos