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No fim deste segundo ano de regime lulopetista, a uma parcela considerável da sociedade já não parece haver dúvidas de que o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência resultou de um movimento revolucionário de tomada de poder, e não de um processo regular, isonômico e democrático de disputa eleitoral. À luz dos acontecimentos subsequentes, nota-se que a famosa previsão feita por José Dirceu no jornal El País não era mesmo uma reles bravata: “Aí nós vamos tomar o poder, que é diferente de ganhar uma eleição”.
Sim, o golpe de Estado anunciado por Dirceu ocorreu de fato, e o processo político desenrolado no ano de 2022 foi algo muito além de uma simples vitória eleitoral do lulopetismo. Como tenho argumentado, contudo, o estereótipo tradicional associado ao conceito de “golpe de Estado” – usualmente ligado ao emprego de força militar – dificulta a compreensão dessa nossa realidade recente. No imaginário histórico brasileiro em particular, a ideia de golpe de Estado remete ao 31 de março de 1964 e às cenas de tanques nas ruas e soldados marchando. Mas os totalitarismos do século 20 inauguraram estilos variados de golpe de Estado, muitos deles baseados na captura e no parasitismo das instituições democráticas.
Apesar de herdeiro de uma cultura política revolucionária tradicional, oriunda do jacobinismo e do marxismo-leninismo, o método revolucionário de governo implementado pelo lulopetismo assemelha-se mais ao do nazismo
Numa das minhas colunas, por exemplo, eu fiz alusão àquilo que alguns teóricos do direito chamam especificamente de golpe de Estado jurídico ou judicial. Como explica Alec Stone Sweet, professor de Direito da Universidade de Yale, o conceito de golpe de Estado judicial implica uma transformação radical nas fundações normativas de um sistema legal, operada mediante ativismo judicial por parte dos membros de uma corte constitucional, que passam a agir como legisladores e executores. Em primeiro lugar, essa “transformação radical” ocorre quando a lei constitucional derivada do ativismo não corresponde ao espírito e aos propósitos do poder constituinte originário. E, em segundo lugar, quando altera fundamentalmente (de modo também não previsto e não desejado pelos constituintes) a maneira habitual de funcionamento do sistema legal. Essa transformação fará com que seja impossível a um observador deduzir o novo sistema legal (ou paralegal) a partir do arcabouço institucional prévio, acarretando a quebra na ortodoxia montesquiana da separação de poderes vigente no contexto pré-golpe e o desmantelamento do sistema de freios e contrapesos. Como escrevi então:
“A pulsão legiferante de magistrados engajados político-partidariamente produz na Carta Magna mudanças não delimitadas pelo texto constitucional, conquanto operadas em seu nome. Diferentemente do golpe de Estado estereotípico – cujos atos são explicitamente não autorizados por aquilo que Hans Kelsen chamou celebremente de ‘norma fundamental’ preexistente (uma Constituição, por exemplo) –, o golpe de Estado jurídico procede via exercício de um poder originalmente adjudicado aos magistrados pela norma fundamental, mas em seguida usurpado por eles e utilizado para a mera imposição de vontades políticas, obviamente fantasiadas de legalismo. Daí que o golpe de Estado jurídico seja muito mais insidioso e difícil de reverter, uma vez que, menos espalhafatosos que golpistas revolucionários ortodoxos, seus agentes impõem uma nova ordem recorrendo aos símbolos e ao prestígio da ordem antiga, não hesitando, por exemplo, em julgar em favor da censura no ato mesmo de condená-la verbalmente por inconstitucional. O sintoma do golpe de Estado jurídico é a presença quase obsessiva da palavra ‘democracia’ justo na boca dos que subvertem todos os seus institutos tradicionais, a começar pela liberdade de expressão, a isonomia e o devido processo legal.”
Pelo fato de o lulopetismo haver adotado esse modus operandi – ou “técnica de golpe de Estado”, para falar como Curzio Malaparte –, tenho-o comparado, sob esse aspecto (nesse e nesse artigo, por exemplo), ao nazismo, enfatizando a “lógica defensiva” adotada por um e outro regime político, ambos baseados na necessidade de uma espécie de estado de exceção perpétuo que justifique a suspensão (temporária, claro está) de garantias constitucionais. De fato, apesar de herdeiro de uma cultura política revolucionária tradicional, oriunda do jacobinismo e do marxismo-leninismo, o método revolucionário de governo implementado pelo lulopetismo assemelha-se mais ao do nazismo, que também priorizou a construção de uma hegemonia política com base no golpe de Estado judicial.
Uma leitura recente apenas reforçou essa minha impressão. Foi lançado há pouco, pela primeira vez no Brasil, o estudo clássico de Rainer Zitelmann sobre o nazismo: Hitler – anticapitalista e revolucionário. Com tradução, prefácio e notas de João F. D. Eigen (possivelmente hoje o maior especialista brasileiro em fascismo e nazismo), o livro de Zitelmann afirma, sob outras perspectivas, e amparado em uma maior quantidade de fontes primárias, o caráter eminentemente revolucionário do nazismo, uma afirmação que, apesar de não ser inédita, nunca deixou de gerar controvérsias, e jamais foi demonstrada com o embasamento de Zitelmann.
Em Hitler – anticapitalista e revolucionário, Zitelmann observa que as controvérsias sobre a natureza revolucionária do movimento de Hitler residem no fato de o nazismo diferir das tradicionais e prototípicas Revolução Francesa de julho de 1789 e Revolução Russa de outubro de 1917, ambas caracterizadas por eventos violentos marcantes, como a tomada da Bastilha e a do Palácio de Inverno. Nas palavras do autor:
“Hitler não chegou ao poder como resultado de lutas nas barricadas, mas foi legalmente nomeado Chanceler pelo presidente do Reich, Hindenburg, conforme os artigos da Constituição de Weimar. Até 1945, a Constituição de Weimar nunca foi formalmente revogada, e a maioria dos membros do gabinete de Hitler era, sem dúvida, tudo menos revolucionária.”
A nazificação total da sociedade e do Estado alemães ocorreu de modo parasitário, sem a necessidade de uma nova Constituinte ou de uma abolição formal das instituições. Em certo sentido, essa também é a concepção lulopetista de tomada do poder
Ainda assim, argumenta Zitelmann, Hitler procedeu a uma “revolução legal” inédita, caracterizada pela subversão da ordem jurídica na Alemanha, com início no famigerado decreto pós-incêndio do Reichstag. Diz Zitelmann:
“A ‘revolução legal’, que começou apenas em 30 de janeiro de 1933 e que, por meio de um processo de Gleichschaltung [‘sincronização’], eliminou sistematicamente o sistema político da democracia de Weimar, foi, em sua natureza, sem precedentes na história. Até então, revoluções estavam associadas à ideia de uma cruenta e violenta derrubada dos antigos governantes; entretanto, a tomada de poder nacional-socialista não se encaixava nos padrões históricos do que uma revolução era ou deveria ser.”
A Gleichschaltung consistiu na nazificação total da sociedade e do Estado alemães, mas operada de modo parasitário, sem a necessidade de uma nova Constituinte ou de uma abolição formal de todas as instituições prévias. Em certo sentido, essa também é a concepção lulopetista de tomada do poder, baseada no conceito gramsciano de “Estado ampliado”, designando não apenas a sociedade política (Estado no sentido weberiano tradicional, monopolista do uso da força), mas também a sociedade civil. O Estado ampliado gramsciano – versão lulopetista da Gleichschaltung nazista – encerra um poder virtualmente inabalável, dado que o exercício da coerção por parte da classe dominante estará ancorado numa hegemonia cultural prévia. Aí, o Estado já não é apenas ente de força, mas também educador. Além de (mal) administrar a coisa pública, ele busca fomentar (ou editar) toda uma nova moral coletiva. Eis aí a essência do totalitarismo sob o qual o Brasil jaz hoje...