“Sendo ele chefe do partido proletário, e justificando em nível teórico e político as pautas revolucionárias deste último, Lenin podia ver mais longe, transcender os limites de classe do partido. Mais de uma vez, ele falou da prioridade dos interesses comuns a toda humanidade, para além dos interesses de classe. Somente hoje é que conseguimos alcançar toda a profundidade, toda a significação dessas ideias... A espinha dorsal do novo modo de pensamento é o reconhecimento da prioridade que se deve dar aos valores humanos, ou, para ser mais preciso, aos valores da sobrevivência humana” (Mikhail Gorbachev, Perestroika, 1987).
Quando, há cerca de um mês, o chanceler Ernesto Araújo publicou em seu blog artigo intitulado “Chegou o Comunavírus” – no qual se afirmava que o globalismo substituíra o socialismo como estágio preparatório do comunismo, e que os artífices do governo mundial viam na pandemia de coronavírus uma oportunidade de mudança de paradigma –, recebeu da imprensa brasileira o tratamento padrão dispensado a quem ouse trazer informações ignoradas pela triste província das redações: risinhos de deboche e afetação de escândalo, ambos mal disfarçados de notícia.
Araújo referia-se particularmente ao recém lançado Vírus, livreto do marxista esloveno Slavoj Zizek, no qual a pandemia é vista como uma chance de abolição definitiva do sistema de livre mercado e das soberanias nacionais (ver, sobre isso, este meu artigo de abril), por meio de uma resposta coordenada em escala global que – demonstrando nisso uma honestidade rara entre socialistas contemporâneos – o autor não se vexa em chamar pelo nome verdadeiro: Comunismo.
“Tudo isto acaso não mostra com clareza a necessidade urgente de uma reorganização da economia global que não esteja mais sujeita aos mecanismos do mercado?” – pergunta Zizek no livro, para em seguida ressalvar: “Aqui não estamos falando do comunismo de outrora, naturalmente, mas de algum tipo de organização global que possa controlar e regular a economia, como também limitar a soberania dos Estados nacionais quando seja necessário”.
Como modelo do tipo de organização global capaz de regular a economia em nível mundial e impor medidas que violem as soberanias nacionais, Zizek cita justamente a OMS: “Um primeiro e vago modelo de uma tal coordenação na escala global é representado pela Organização Mundial da Saúde (OMS)… Serão conferidos maiores poderes a outras organizações desse tipo”.
Quem conhece minimamente a história do comunismo sabe que Zizek não está falando nada de novo. Mas o grosso do jornalismo brasileiro, é claro, não conhece. O fato é que o apoio e participação de comunistas na criação de organizações internacionais data, pelo menos, desde o fim da Segunda Guerra, momento em que membros de partidos comunistas de várias partes do mundo desempenharam papel decisivo e formativo na criação da ONU. Basta lembrar, por exemplo, que o presidente da Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, que resultou na redação da Carta da ONU (1945) foi ninguém menos que o sr. Alger Hiss, alto-funcionário do Departamento de Estado americano na época do governo de Franklin Delano Roosevelt, e depois denunciado como espião soviético por um ex-companheiro de célula partidária, o jornalista Whittaker Chambers.
Mas, antes mesmo da Revolução Bolchevique, em 1915, Lenin já afirmava que o internacionalismo comunista deveria assumir a forma de um “Estados Unidos do Mundo”. Em 1936, lia-se no programa oficial da Internacional Comunista: “A ditadura só pode se estabelecer por meio de uma vitória do socialismo em diferentes países ou grupos de países, depois do que as repúblicas proletárias deverão se unir federativamente às que já existem, e esse sistema de uniões federativas vai se expandir até a formação de uma União Mundial de Repúblicas Socialistas Soviéticas”. E, pouco tempo depois da fundação da ONU, em declaração ao jornal Pravda (23 de março de 1946), o ditador genocida Josef Stalin saudava a organização nestes termos: “Atribuo grande importância à ONU, dado que é um importante instrumento para a preservação da paz e da segurança internacional”.
Mas a participação dos comunistas americanos no fomento às organizações internacionais, instrumentos do projeto globalista, foi particularmente significativa. Em seu livro Toward Soviet America (1932), William Z. Foster, presidente nacional do Partido Comunista dos EUA (CPUSA), escreveu: “O governo soviético americano irá se juntar a outros governos soviéticos numa União Soviética global… Não é o Cristianismo, mas o Comunismo que trará a paz mundial Um mundo comunista será um mundo unificado e organizado. O sistema econômico será de grande organização, baseado no princípio de planejamento central ora em vigência na URSS. O governo soviético americano será uma importante seção dessa organização mundial”.
Em 1942, em plena guerra, o secretário-geral do CPUSA, Earl Browder, explicava em seu livro Victory and After como os comunistas americanos haviam se empenhado no processo de idealização da organização que só viria a surgir três anos mais tarde: “Os comunistas americanos trabalharam enérgica e incansavelmente para lançar as fundações das Nações Unidas, de cuja existência futura estamos convictos”. E escreveu ainda: “Pode-se dizer, sem exagero, que relações ainda mais próximas entre o nosso país e a União Soviética são um requisito indispensável para as Nações Unidas enquanto coalizão mundial… A confiança mútua entre o nosso país e a União Soviética, e a colaboração com as lideranças das Nações Unidas, são absolutamente necessárias”.
Sobre a importância atribuída pelo Kremlin à criação da ONU, uma amostra pode ser encontrada na edição de abril de 1945 da principal publicação do PCUSA, a revista Political Affairs: “Depois que a Carta passar em São Francisco, terá de ser aprovada por dois terços do Senado, e essa ação estabelecerá um precedente de peso para outros tratados e acordos vindouros. Mas a vitória não poderá ser obtida apenas no Senado; ela deve emanar de um apoio nacional organizado e cada vez mais amplo, erguido ao redor das políticas do Presidente, tanto antes quanto depois da reunião em São Francisco… Um forte apoio popular e entusiasmo pelas políticas das Nações Unidas deve ser incentivado e organizado. Mas é preciso ir além. A oposição ao projeto deve ser mantida tão impotente a ponto de não conseguir reunir qualquer apoio significativo no Senado contra a Carta e os tratados vindouros”.
No preâmbulo da constituição do CPSUA, lia-se: “O Partido Comunista dos EUA luta incansavelmente contra todas as formas de chauvinismo. E afirma que o verdadeiro interesse nacional do nosso país e a causa da paz e do progresso requer o fortalecimento das Nações Unidas como instrumento universal da paz”.
Mas a participação dos comunistas americanos na criação da ONU não se restringiu à militância partidária. Hoje é amplamente reconhecido (não, é claro, por jornalistas brasileiros) que alguns dos principais artífices da organização foram altos funcionários do Departamento de Estado e do Departamento do Tesouro dos EUA, figuras que, mais tarde, foram descobertas como espiões soviéticos. Além do já mencionado Alger Hiss, refiro-me a personagens como Solomon Adler, Virginius Frank Coe, Lawrence Duggan, Noel Field, Harold Glasser, Irving Kaplan, Victor Perlo, Abraham G. Silverman, Nathan G. Silvermaster, William H. Taylor, William L. Ullman, John Carter Vincent, Henry Julian Wadleigh, David Weintraub e Harry Dexter White. Se tiver curiosidade, o leitor pode dar um “google” em cada um desses nomes.
Nessa época, contudo, o vocabulário usado pelos comunistas ainda estava muito preso ao cânon soviético, refém da terminologia oficial do Politburo. Foi somente no final dos anos 1980, com o processo de dissolução nominal do comunismo na URSS e no Leste Europeu, que os principais ideólogos e líderes comunistas começaram a sofisticar o linguajar, adaptando-o ao hocus pocus das organizações internacionais, e tornando-o mais abstrato e universalista. Toda referência à “ditadura do proletariado” foi abandonada em favor de discursos sobre o “bem comum” de “toda a humanidade”.
E é aí que entra a conhecida Perestroika, que, ao contrário do que imagina o nosso paroquial senso comum midiático, foi um processo longa e internamente planejado de implosão controlada, antes que uma vitória explosiva do Ocidente liberal contra o Comunismo. Como escreve Mikhail Gorbachev no livro que leva o nome do alegado processo de “liberalização” do comunismo: “É minha convicção que a raça humana alcançou um estado em que somos todos dependentes uns dos outros. Nenhum país, nenhuma nação deveria ser considerada de forma isolada das outras, muito menos oposta às outras. É o que nosso vocabulário comunista chama de internacionalismo, o que significa nosso anseio de promover os valores humanos universais”. E aí já entramos no ponto em que o comunismo pós-soviético e o globalismo passam a ser quase indistinguíveis. Mas esse é um assunto para a semana que vem.
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