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“Mikhail Sergeyevich [Gorbachev] interpretou a ideia de coexistência como uma adaptação mútua entre capitalismo e socialismo… Isso é algo novo!” (Anatoly Chernyaev, Diário Pessoal, 20 de janeiro de 1989)
No final dos anos 1980, o historiador Anatoly Chernyaev ocupava o cargo de assessor de política externa de Mikhail Gorbachev. Nessa condição, ele foi um dos grandes responsáveis pela nova “imagem do inimigo” – mais 'democrática' e 'liberal' – projetada internacionalmente pelos soviéticos. A partir de 2004, Chernyaev começou a doar parte de seus diários pessoais para o Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington.
É na quarta parte desses arquivos, publicada em 2009, e referente ao ano de 1989, que encontramos parte dos detalhes da reunião mencionada no fim do artigo da semana passada. Material relevante sobre o ocorrido – como, por exemplo, as notas tomadas por Chernyaev durante sessão no Politburo em 21 de janeiro, na qual Gorbachev comentava sobre a reunião – acha-se também nos arquivos da Fundação Gorbachev.
Eram 11 horas da manhã do dia 18 de janeiro de 1989 quando a delegação da Comissão Trilateral (Rockefeller, Kissinger, Giscard d’Estaing e Nakasone) chegou ao quartel-general do Comitê Central (CC) do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). De início, a conversa girava sobre a integração soviética à economia mundial globalizada, mas, logo, Giscard d’Estaing tomou a palavra: “Em nossos dias, a Europa Ocidental está vivendo a sua própria perestroika, mudando as suas estruturas. É difícil saber exatamente o que irá se passar daqui a cinco, dez ou vinte anos. Mas uma nova forma de estado federativo irá surgir. É nessa direção que estamos indo, e a URSS deve se preparar para se relacionar com um único grande estado da Europa Ocidental” (grifos meus).
Em seguida, o ex-presidente francês perguntou ao Secretário-Geral do PCUS: “Gostaríamos de saber, se alguns países do Leste Europeu, embora preservando seus laços de segurança com a URSS, decidissem virar membros da Comunidade Econômica Europeia, qual seria a sua atitude em relação a isso?”.
Kissinger não se opôs. Antes pelo contrário, parecia ansioso para inserir os EUA no plano: “O que você acha de um conceito de uma ‘Europa do Atlântico aos Urais’?” – perguntou Kisa [como, às vezes, o ex-Secretário de Estado americano é referido nos arquivos] a Gorbachev. E prosseguiu: “Eu e meus colegas da Comissão Trilateral queremos contribuir de modo construtivo para edificar essa Europa, em relação à qual tanto a URSS quanto os EUA devem desempenhar papel decisivo” (grifos meus).
Note-se que essa conversa ocorreu três anos antes do Tratado de Maastricht (que criou a União Europeia), para não falar do Tratado de Amsterdã (1997), do Tratado de Nice (2001) ou da Constituição Europeia (2004) – esta última, aliás, encabeçada principalmente pelo próprio Giscard d’Estaing. Ao antecipar e ajudar a conduzir alguns dos acontecimentos geopolíticos mais importantes do último quarto do século 20, a entidade formalmente apresentada como fórum privado de debates intelectuais atuava, portanto, como governo clandestino. E, estranhamente, seus objetivos de longo prazo pareciam alinhar-se aos dos ideólogos da integração europeia e aos do Kremlin.
Um desses objetivos era fazer do projeto pan-europeísta (a famigerada “Casa Comum Europeia” de Gorbachev) uma primeira experiência em governo mundial. Como, duas décadas depois, admitiria Pascal Lamy, ex-diretor-geral da OMC e ex-presidente da Comissão Europeia: “Dentre as tantas tentativas de integração regional, a União Europeia permanece sendo o laboratório da governança internacional – o lugar onde a nova fronteira tecnológica da governança internacional está sendo testada”.
É claro que, para espíritos alérgicos à consulta de fontes primárias (e, portanto, a informações alheias ao senso comum midiático e acadêmico), a ideia de governo mundial é sempre ridicularizada como “teoria da conspiração” – muito embora essa talvez seja, como no título do livro de H. G. Wells (aliás, um notório adepto da ideia), a conspiração mais “aberta” da história. Já aos espíritos abertos às evidências documentais, os arquivos soviéticos são como um manjar dos deuses.
Neles encontramos, por exemplo, a transcrição deste curioso diálogo entre Gorbachev e o então presidente argentino Carlos Menem, travado em 25 de outubro de 1990, e citado por Vladimir Bukovsky no livro já referido anteriormente:
Gorbachev: – Temos de ir além. O progresso futuro dependerá de ações na Europa, na América Latina, na Ásia e no Pacífico. Depois de construída a Casa Europeia, novas casas comuns devem surgir…
Menem: – Sobre integração, creio que todos concordam. Nós da América Latina pretendemos agir na mesma linha da Europa. Em geral, a humanidade não tem outra opção. E então, depois da integração, concentraremos esforços na conquista do universo.
Gorbachev: – Um dos meus assessores escreveu há algum tempo que precisaríamos criar um governo mundial. Houve, na época, quem risse. Mas agora?
Menem: – Há cerca de 40 anos, Perón falava de continentalismo, o que nos permitiria partir para um governo mundial.
Gorbachev: – Penso que devemos reforçar o papel da ONU. Por 40 anos, ela não pôde realizar o seu potencial, mas hoje temos a oportunidade. Eis aqui, para você, um protótipo de governo mundial.
Ao mesmo tempo em que, com notável lábia, conduzia na intimidade esses jogos de sedução política, o Secretário Geral do PCUS batalhava publicamente pela perestroika e pela consolidação da nova “imagem do inimigo”.
Como mostra o dissidente Anatoly Golitsyn, a estratégia ia de vento em popa:“O Ocidente considera que a decisão do Parlamento soviético de suspender as atividades do Partido Comunista marca a morte do mesmo e a vitória das novas forças democráticas: considera que essa decisão é favorável a seus interesses. Essa avaliação é falsa. Ela reflete a ingenuidade dos ‘sovietólogos’ que, adormecidos como Rip van Winkle, não perceberam os trinta anos de preparação da perestroika e a transição do antigo Estado soviético baseado na ‘ditadura do proletariado’ (leia-se do Partido Comunista) ao novo Estado soviético de ‘todo o povo’. Os experts ocidentais esqueceram que essa transição foi exposta e adotada pelo Partido Comunista no programa do 22º Congresso do Partido, em outubro-novembro de 1961”.
Com efeito: se, quando falava para o exterior, o velho Gorba era um poço de novidades, continuava, nos bastidores do Politburo, fiel ao pragmatismo revolucionário do camarada Lenin. Como registra Chernyaev em seu diário: “Para Mikhail, a principal virtude de Lenin era o fato de estar sempre pronto a desprezar qualquer dogma em favor da missão, a saber: a revolução concreta”.
No livro Perestroika (1987), escreveu Gorbachev sobre o pai da revolução bolchevique: “[Lenin] via que o socialismo iria se defrontar com problemas colossais, e que deveria resolver toda sorte de dificuldades que a revolução burguesa havia deixado sem solução. Daí sua utilização de métodos que não parecem intrinsecamente socialistas ou que, ao menos, se afastam em certa medida dos conceitos clássicos do desenvolvimento socialista, tais como geralmente aceitos… [Lenin] possuía o raro talento de sentir, no momento certo, a necessidade de mudanças profundas, de um reexame dos valores, de uma revisão das diretivas teóricas e dos slogans políticos” (grifos meus).
Veremos, no artigo da semana que vem, como essa mentalidade dialética e essa flexibilidade dogmática foram cruciais para o relativo sucesso de Gorbachev em disfarçar o projeto de revolução mundial com as novas vestes da “governança global”. Em particular, veremos o quão revolucionária foi a perestroika, em tudo inspirada no golpe de mestre de Lenin: a Nova Política Econômica (NEP), lançada em 1921, quando a Rússia estava na iminência de um colapso econômico e social, do qual foi salva graças à benevolência (e, é claro, aos antolhos economicistas) do Ocidente.