O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e o ministro do STF Alexandre de Moraes.| Foto: André Borges/EFE
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“O óbvio dos óbvios. Uma democracia não pode ser instaurada por meios democráticos: para isso ela teria de existir antes de existir. Nem pode, quando moribunda, ser salva por meios democráticos: para isso teria de continuar saudável enquanto vai morrendo. O assassino da democracia leva sempre vantagem sobre os defensores dela. Ele vai suprimindo os meios de ação democráticos e, quando alguém tenta salvar a democracia por outros meios – os únicos possíveis –, ele o acusa de antidemocrático. É assim que os mais pérfidos inimigos da democracia posam de supremos heróis da vida democrática.” (Olavo de Carvalho)

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Em setembro de 2018, em entrevista ao jornal espanhol El País, José Dirceu declarou que era questão de tempo para o PT tomar o poder, e que essa tomada nada tinha a ver com ganhar uma eleição. Ainda engatinhando na guerra política, e depositando todas as esperanças de mudança na então provável vitória eleitoral de Jair Bolsonaro (que acabou se confirmando), a direita brasileira pareceu não dar muita atenção às palavras do ex- (ex?) agente do serviço secreto cubano.

Tratou-se de uma desatenção fatal, hoje sabemos, porque o que Dirceu anunciava ali era o golpe de Estado pretendido pelo seu partido, segundo uma concepção comunista tradicional na qual as eleições não passam de mera fachada de legitimidade a um processo político previamente decidido. Essa concepção – hoje flagrantemente materializada nas eleições fraudulentas do ditador Nicolás Maduro na Venezuela, como também nas últimas eleições fraudulentas na Nicarágua do ditador Daniel Ortega – foi expressa por ninguém menos que Luiz Inácio Lula da Silva, dias antes de sua primeira eleição para a Presidência do país. Ao jornal francês Le Monde, disse o então candidato petista em 2 de outubro de 2002: “A eleição é uma farsa pela qual é preciso passar para se chegar ao poder”. É essa farsa, aliás, que o mandatário brasileiro e o seu chanceler informal (ou “fora dos ritos”) agora propõem reeditar na Venezuela, a fim de dar mais tempo para que o companheiro Maduro fabrique a legitimidade de sua permanência no poder.

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O golpe de Estado gramsciano não ocorre com a ousadia da força bruta, mas com cochichos e tapinhas no rosto, ações “fora dos ritos” e risadinhas no WhatsApp

Sim, Dirceu anunciou um golpe de Estado. E o resto é história. O que, para muitos, talvez impeça a correta percepção do fenômeno é o estereótipo tradicional associado ao conceito de “golpe de Estado”, habitualmente ligado ao emprego de força militar. Sobretudo no imaginário histórico brasileiro, a noção de golpe de Estado remete ao 31 de março de 1964 e às cenas de tanques nas ruas e soldados marchando. Mas sempre houve vários estilos de golpe de Estado. O estilo adotado pelo lulopetismo, por exemplo, foi o da captura e parasitismo das instituições democráticas, segundo a doutrina de Antonio Gramsci, o teórico do aparelhamento. Para o PT, de fato, a democracia jamais foi um valor em si mesmo, mas uma “questão estratégica” – como admitiu o partido num dos vídeos-propaganda de seu terceiro congresso nacional, significativamente intitulado “socialismo petista”.

Mas o estilo gramsciano de golpe de Estado subdivide-se em várias técnicas complementares. Uma delas é aquela que alguns teóricos do direito chamam especificamente de “golpe de Estado jurídico” – que também foi aplicado parcialmente na Venezuela, lá complementado pela versão mais tradicional, com emprego das forças armadas.

Como explica Alec Stone Sweet, professor de Direito da Universidade de Yale, o conceito de golpe de Estado jurídico implica uma transformação radical nas fundações normativas de um sistema legal, operada mediante ativismo judicial por parte dos membros de uma corte constitucional, que passam a agir como legisladores. Essa “transformação radical” ocorre, em primeiro lugar, sempre que a lei constitucional derivada do ativismo não corresponde ao espírito e aos propósitos do poder constituinte originário. Em segundo lugar, sempre que altere fundamentalmente – e, de novo, de maneira não prevista ou pretendida pelos constituintes – a maneira habitual de funcionamento do sistema legal. Essa transformação fará com que seja impossível a um observador deduzir o novo sistema legal (ou paralegal) a partir do arcabouço institucional prévio. E, obviamente, acarretará uma quebra na ortodoxia montesquiana da separação de poderes vigente no contexto pré-golpe. No novo contexto, o instituto habitual de freios e contrapesos não será capaz de disciplinar os papéis e as limitações constitucionais dos órgãos do Estado.

A pulsão legiferante de magistrados engajados político-partidariamente produz na Carta Magna mudanças não delimitadas pelo texto constitucional, conquanto operadas em seu nome. Diferentemente do golpe de Estado estereotípico – cujos atos são explicitamente não autorizados por aquilo que Hans Kelsen chamou celebremente de “norma fundamental” preexistente (uma Constituição, por exemplo) –, o golpe de Estado jurídico procede via exercício de um poder originalmente adjudicado aos magistrados pela norma fundamental, mas em seguida usurpado por eles e utilizado para a mera imposição de vontades políticas, obviamente fantasiadas de legalismo.

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Daí que o golpe de Estado jurídico seja muito mais insidioso e difícil de reverter, uma vez que, menos espalhafatosos que golpistas revolucionários ortodoxos (do tipo bolchevique ou nazista, por exemplo), seus agentes impõem uma nova ordem recorrendo aos símbolos e ao prestígio da ordem antiga, não hesitando, por exemplo, em julgar em favor da censura no ato mesmo de condená-la verbalmente por inconstitucional. O sintoma do golpe de Estado jurídico é a presença quase obsessiva da palavra “democracia” justo na boca dos que subvertem todos os seus institutos tradicionais, a começar pela liberdade de expressão, a isonomia e o devido processo legal.

Não, o golpe de Estado gramsciano não ocorre com a ousadia da força bruta e o estrondo de canhões, mas com a pusilanimidade dos cochichos e tapinhas no rosto, o tilintar das taças de champanhe, as ações “fora dos ritos” e as risadinhas cúmplices em grupos de WhatsApp.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]