“A vida humana é, em todas as suas fases, digna do máximo respeito, mais ainda durante a velhice e a doença.” (papa Bento XVI)
Mal eu acabara de concluir a minha série de artigos sobre a cultura da morte contemporânea, e caiu-me em mãos a notícia do caso Indi Gregory, a bebê britânica que, por causa de uma doença mitocondrial rara, foi marcada para morrer por autoridades médicas no Reino Unido, que derrotaram os pais da vítima nos tribunais. Como eu havia sugerido naqueles textos, observa-se hoje um perturbador retorno de uma mentalidade médico-jurídica, de caráter eugenista e darwinista social, que tanto mal causou nas primeiras décadas do século 20, e que consiste no desprezo (em tese científica e filosoficamente embasado) pela ideia de sacralidade de toda vida humana. Tendo como manifestação extrema o programa nazista de extermínio científico, essa mentalidade era amplamente difundida entre os bem-pensantes da época, e assim continua sendo entre os de hoje.
A sentença de morte de Indi Gregory foi marcada inicialmente para o dia 30 de outubro. Três dias antes, os pais, Dean Gregory e Claire Staniforth, haviam filmado um dos últimos momentos desfrutados ao lado de sua bebê de 8 meses de idade. Num quarto do Queen’s Medical Centre, um hospital na cidade de Nottingham (Inglaterra), Dean e Claire admiravam Indi e seguravam a sua mãozinha, enquanto, a seu modo, a criança parecia apreciar a canção Brilha, Brilha, Estrelinha. É essa vida que, sob o pretexto utilitarista de evitar o sofrimento “desnecessário” e “sem sentido”, as autoridades decretaram como descartável.
A expansão jurídica da autoridade dos médicos para decidir se uma vida é mais ou menos digna (e eliminá-la no segundo caso) tem ocorrido de maneira avassaladora no Ocidente contemporâneo
Durante meses, os pais de Indi enfrentaram uma dolorosa batalha judicial contra o hospital, que havia concluído pela assim chamada “eutanásia passiva” (também chamada de “ortotanásia”), ou seja, a suspensão do tratamento e da ventilação mecânica da pequena paciente, cuja vida fora considerada – e os leitores familiarizados com os meus últimos artigos já podem imaginar – “indigna de ser vivida”. Como tem ocorrido em 99% de casos similares no Reino Unido, a Justiça britânica deu a vitória aos médicos, consagrando a cultura anti-hipocrática surgida entre eugenistas e darwinistas sociais na virada do século 19 para o 20, e decretando para o dia 30 a morte da bebê. O argumento médico consistiu na afirmação de que a interrupção do tratamento (e a consequente morte) atendia aos “melhores interesses” de Indi.
Inconformados com o assassinato médico de sua filha, os pais entraram com um recurso solicitando a transferência de Indi para o Hospital Pediátrico Bambino Gesù, em Roma, que se ofereceu para tratar a menina. No dia 6 de novembro, por interferência pessoal da primeira-ministra Giorgia Meloni, o governo italiano ofereceu cidadania à menina, de modo a evitar a sua execução. O processo de concessão de cidadania foi conduzido em caráter de urgência em reunião com o Conselho de Ministros.
Mas o hospital e a Justiça britânica mantiveram-se impassíveis. A transferência da paciente foi negada, sob o argumento de que isso lhe traria ainda mais sofrimento. Convictos da indignidade daquele vida, médicos e juízes firmaram posição pelo seu descarte piedoso via eutanásia passiva. Os pais ainda tentaram pleitear que a criança pudesse ao menos ser levada para casa, a fim de morrer em paz, ao lado da família. E os magistrados britânicos – piedosos como são os nossos – negaram mais uma vez. Indi deveria morrer no hospital, sob supervisão médica, de modo asséptico e profissionalmente misericordioso, por assim dizer.
No processo que autorizou o desligamento dos aparelhos, o juiz Robert Peel justificou a decisão em termos melodramáticos, quase como numa cena de Ich klage an (“Eu acuso”), o filme nazista de propaganda da eutanásia sobre o qual falamos na semana passada: “Com o coração pesado, chego à conclusão de que os fardos do tratamento invasivo superam os benefícios. A dor experimentada por essa pequena garota não se justifica quando confrontada com uma condição incurável, uma expectativa de vida muito curta e nenhuma perspectiva de recuperação”.
Movido por uma preocupação (se sincera ou não, pouco importa) em poupar o sofrimento de Indi, o juiz não agiu de modo fundamentalmente diferente do que fez Adolf Hitler (cuja intenção, obviamente, não era sincera) em seu decreto de outubro de 1939, cujo trecho eu citei em epígrafe no artigo anterior. Trata-se, em ambos os casos, de uma medida para “expandir a autoridade dos médicos” a fim de que “os pacientes considerados incuráveis” possam “desfrutar de uma morte misericordiosa [Gnadentod]”.
Essa expansão jurídica da autoridade dos médicos para decidir se uma vida é mais ou menos digna (e eliminá-la no segundo caso) tem ocorrido de maneira avassaladora no Ocidente contemporâneo, em especial em países como Inglaterra, Canadá, Austrália, Islândia (que promoveu uma bem-sucedida campanha eugênica de eliminação de todos os bebês com Síndrome de Down), entre outros. No momento em que termino este artigo, provavelmente a bebê Indi Gregory já terá se tornado a mais recente vítima desse macabro senso de misericórdia. O consolo para os opositores da cultura da morte é saber que, conquanto a sua curta vida tenha sido desvalorizada pelos homens, não o foi e não o será por Deus.
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