“Todas as ordens de cidadãos se unem, da dama à dissoluta, do grande soldado ao mais humilde funcionário da Fazenda” (Mayeur de Saint-Paul, diretor teatral francês, comentando sobre o Palais-Royal às vésperas da Revolução Francesa)
“A revolução”, escreveu o historiador Georges Lefebvre, “nada mais é que o corolário de uma longa evolução econômica e social que fez da burguesia a nova senhora do mundo”. A sentença lapidar resume a visão ortodoxa da historiografia marxista sobre a Revolução Francesa, de Jean Jaurès a Albert Soboul, passando, na outra margem do Canal, por Eric Hobsbawn e Edward P. Thompson.
Nessa interpretação classicamente teleológica (do grego télos = “fim” ou “consumação”), economicista e apologética, força-se a matéria histórica para dentro da forma da “luta de classes”. A revolução é tida fundamentalmente por obra da burguesia contra a nobreza, assinalando a passagem, tão natural quanto necessária, do modo de produção feudal ao modo de produção capitalista. Projeta-se retroativamente uma “crise do Antigo Regime” (versão século XVIII da obsessão esquerdista contemporânea em diagnosticar uma “crise do capitalismo” a cada semana), que teria fatalmente desabado sob o peso de suas próprias contradições internas.
Embora dispersamente contida nos escritos de Marx e Engels, essa imagem veio a consagrar-se em definitivo após a Revolução Bolchevique, que em tudo parecia confirmá-la. Até então, os intérpretes marxistas viam no fenômeno francês uma mera promessa de revolução socialista, precocemente abortada pela derrota do igualitarismo radical dos jacobinos. Concebendo a queda da monarquia como sua condição prévia, mas não suficiente, projetavam idealmente uma revolução socialista que completasse a trajetória ali iniciada, atualizando, enfim, as virtualidades radicais emanadas em julho de 1789. Em outubro de 1917, a projeção ganha materialidade, influenciando decisivamente a interpretação histórica, que, desde então, converte-se em escatologia secular.
Agora é oficial: de fato e de direito, a Revolução Francesa torna-se mãe da revolução socialista. Estão ambas umbilicalmente unidas numa mesma história linear e universal de libertação da humanidade. Saímos do terreno da história e adentramos o da mitopoiesis. Como explica François Furet: “No mesmo momento em que, bem ou mal, a Rússia substitui a França no papel de nação na vanguarda da história (…), os discursos historiográficos sobre as duas revoluções repercutem um sobre o outro e se contaminam. Os bolcheviques têm ancestrais jacobinos e os jacobinos tiveram antecipações comunistas”.
A vulgata historiográfica marxista foi hegemônica entre os anos 1950 e 1980. Hoje, já se tem plena consciência de que ela não só é absurda em termos conceituais como também objetivamente errada quanto aos dados concretos. Conceitualmente, essa grosseira metafísica da história implica a confusão entre causalidade e finalidade, entre necessidade histórica e ação revolucionária, como se o conhecimento ex post facto do que ocorreu permitisse a afirmação de sua fatalidade, e como se não houvesse seres humanos agindo e tomando decisões políticas durante todo o processo, mas tão somente a História, com H maiúsculo, da qual aqueles seriam meras engrenagens. Factualmente, por sua vez, a tese da burguesia como classe revolucionária em luta contra uma aristocracia reacionária, bem como da correlata transição do feudalismo para o capitalismo, é hoje motivo de chacota entre historiadores sérios.
Ao contrário do que ensinam nossos livros didáticos, impregnados de historiografia marxista, a nobreza expandia-se nos tempos de Luís XVI, graças aos numerosos meios de se adquirir títulos nobiliárquicos. Havia muito mais mobilidade social na França de fins do Antigo Regime do que se costuma acreditar. O pertencimento à nobreza tornara-se mais uma questão de dinheiro que de nascimento. Como resumiu o historiador Guy Chassinand-Nogaret num estudo clássico sobre a nobreza francesa da época: “Um nobre nada mais era do que um burguês bem-sucedido”. Ademais, mal existia na França uma “burguesia” no sentido marxista do termo, essencialmente urbana e industrial. Na época da Revolução, apenas 15% da população francesa habitava os centros urbanos e a maior parte da burguesia vivia de renda fundiária.
Se, por um lado, a burguesia se aristocratizava, sabe-se hoje que o processo era de mão dupla. Parte da nobreza francesa em fins do Antigo Regime dedicava-se a atividades que, em outros tempos, seriam consideradas indignas de sua posição, por associadas, precisamente, à burguesia: finanças, comércio e indústria. Logo, em vez de luta de “classes”, o que havia na França da época era uma elite revolucionária socialmente variada, mas culturalmente unitária, formada por nobres, burgueses e membros do clero, todos partilhando das novas sensibilidades estéticas, políticas e literárias que brotavam dos cafés, clubes, salões literários e lojas maçônicas. Essa mistura heteróclita de estados e posições era visível em locais como o Palais-Royal, caldeirão de modismos revolucionários, onde, juntos, burgueses, nobres e sacerdotes aplaudiam As Bodas de Fígaro, o libelo anti-aristocrático de Beaumarchais que encantou até mesmo a rainha Maria Antonieta. Curiosamente, os aplausos mais efusivos vinham de uma nobreza recém constituída (lembrando que 25% da nobreza francesa à época, cerca de 6 mil famílias, formara-se no próprio século XVIII). Bem ao contrário de reacionária, essa nobreza emergente era progressista e novidadeira. Como atestou à época uma perspicaz observadora, a Baronesa d’Oberkirch, perplexa ante o comportamento da plateia: “Batem nos próprios rostos, riem do próprio ridículo e, pior ainda, fazem os outros rir. Que estranha cegueira”. Nas palavras do historiador Pierre Gaxotte, havia ali “milhares de lindas cabeças empoadas que se embriagam com as teorias que acabarão por as fazer rolar para dentro do cesto de Sansão”.
Tivéramos, pois, por força do hábito, de manter a noção de “classes”, seria preciso reconhecer que a Revolução Francesa foi mais um fenômeno intra-classe do que entre classes. A bem da verdade, um componente fundamental de toda revolução é aquilo que René Girard definiu como “crise mimética”. Segundo a conhecida teoria do pensador francês, o homem não deseja de forma autônoma, numa relação direta e imediata entre um sujeito desejante e um objeto de desejo. Em vez disso, o desejo possui uma estrutura triangular: se desejamos um determinado objeto é porque ele é desejado ou possuído por outrem, que se torna, assim, modelo para o nosso desejo. O modelo, ou mediador, pode ser de tipo externo (quando não está situado no mesmo plano existencial do sujeito e não disputa com ele o objeto desejado) ou interno (quando lhe está próximo o bastante para se tornar rival).
A “mediação interna” – conceito muito mais interessante que o de luta de classes para a compreensão do fenômeno revolucionário – é a grande responsável por gerar os conflitos humanos, uma vez que, no limite, faz desaparecer o interesse inicial pelo objeto e a distância entre o sujeito e o modelo, restando apenas a relação mimética entre sujeitos-modelos que rivalizam entre si, tornando-se mais e mais indiferenciados ao longo do processo. Veremos nesse padrão relacional a irrupção da inveja, do ressentimento, do ciúme, da adulação, da ira e de todas as demais pulsões derivadas da contiguidade. Antes que produto da distância social, as revoluções resultam da proximidade social e da inveja daí decorrente, um fator crucial (mas quase sempre negligenciado pelas ciências sociais) no surgimento dos ódios políticos protorrevolucionários.
Ocorreu-me tudo isso segunda-feira (07/05), ao assistir a entrevista de Guilherme Boulos, pré-candidato à presidência do PSol, no novo programa Roda Viva, pós-saída do jornalista Augusto Nunes do comando da bancada. Antes de continuar, faço aqui um parêntese: Boulos é um fenômeno curioso, que nos recorda o início da trajetória política de Lula. A atenção midiática que recebe é inversamente proporcional à sua relevância política e força eleitoral. Durante a sua entrevista, por exemplo, a TV Cultura marcou apenas 0,5 pontos no Ibope. Mas, se o líder do MTST e o seu partido não empolgam o público, decerto provocam frêmito nos decotes dos jornalistas brasileiros, que, segundo se depreende dos resultados do Prêmio Congresso em Foco, ano após ano elegem o PSol como melhor partido do país.
Fechado o parêntese, noto que a retórica do candidato psolista, no geral tratado a pires de leite pelos entrevistadores, remete ao processo descrito acima. Filho da classe média alta paulistana, e como todo bom socialista, Boulos rebela-se contra a sua “classe” e decide apresentar-se como porta-voz dos pobres e desabrigados. Contudo, os problemas que levanta, muitos deles reais, são logo postos em segundo plano, relegados a meio para o fim que realmente importa: atacar a elite econômica, com quem Boulos mantém uma relação de mediação interna.
Fiel à visão marxista segundo a qual a economia é um jogo de soma zero, todas as soluções que propõe – taxação de grandes fortunas, aumento de impostos sobre heranças etc. – visam muito mais a tirar dos ricos do que dar aos pobres. Estes, que no esquema girardiano ocupariam a função de “objeto”, são rapidamente esquecidos em favor dos “modelos” (ou seja, os ricos), sobre quem recai, em última instância, todo o foco de Boulos. Portanto, a logorreia do revolucionário de proveta, com seus gestos ensaiados e pinta de funcionário de repartição pública, é um diálogo “intra-classe”. Como sempre, nessa equação tipicamente socialista, que busca ocultar um projeto de brutal concentração de poder por trás da linguagem do amor ao próximo, os pobres entram apenas como pretexto.