“O papel de Qutb em inspirar movimentos revivalistas islâmicos desde o fim dos anos 1960 talvez tenha sido maior que o do Aiatolá Khomeini” (Shahrough Akhavi, “Qutb, Sayyid”, em The Oxford Encyclopedia of the Modern Islamic World, 1995)
Encerramos o artigo anterior fazendo menção ao ideólogo islâmico Sayyid Qutb, o grande intelectual orgânico da Irmandade Muçulmana e, mais geralmente, do jihadismo contemporâneo. Além de prestigiado exegeta corânico, Qutb era um profundo conhecedor da filosofia ocidental, e suas interpretações do Corão passaram todas por esse filtro teórico. É hora de aprofundarmos o assunto.
Na condição de figura emergente da Irmandade Muçulmana, em 1948 Qutb foi estudar nos EUA, na University of Northern Colorado, onde obteve o título de mestre em Educação. De modo algo similar ao de pensadores ocidentais modernos como Rousseau, Freud, Marcuse e Foucault, o jovem egípcio tornou-se crítico veemente da decadência espiritual e moral do Ocidente, que via como uma espécie de doença contagiosa, jahiliyyah – um conceito corânico que, originalmente relativo ao estado de ignorância e afastamento de Deus inerente à condição humana anterior à revelação de Maomé, foi fortemente politizado e imanentizado por Qutb.
A Irmandade Muçulmana continua sendo um dos criadouros do fundamentalismo islâmico contemporâneo, com sua metodologia do terror e seus objetivos de eliminar os infiéis e universalizar a shari’a
Qutb alertava constantemente para a necessidade de um pensamento renovado, purificado do consumismo e do materialismo. Mas, como afirma Paul Berman em Terror and Liberalism, Qutb estava longe de ser um antimodernista. Admirava a produtividade econômica e o conhecimento científico, afirmando apenas a necessidade de escapar das ilusões das benesses materiais. Pretendia formar o que chamava de “vanguarda islâmica”, grupo de fiéis dedicados a construir um novo mundo, em que a divisão entre governantes e governados se tornaria obsoleta. Em sua visão utópica e revolucionária, as massas, imersas em seus desejos de consumo e paixões mundanas, precisavam ser libertas por uma elite intelectual e moralmente superior. Eis uma ideia sem precedentes no pensamento islâmico tradicional, ideia que, adaptando-a ao idioma corânico, Qutb absorveu do socialismo europeu dos séculos 19 e 20.
Recorde-se mais uma vez que a Irmandade Muçulmana não é uma organização egípcia. Embora tenha surgido ali, espalhou-se do Egito para todo o mundo muçulmano. Por meio do pensamento de Qutb e outros ideólogos por ele inspirados, continua sendo um dos criadouros do fundamentalismo islâmico contemporâneo, com sua metodologia do terror e seus objetivos de eliminar os infiéis e universalizar a shari’a. Apenas pelo exame da atuação de seus membros de destaque ao longo da história, é possível ver que a Irmandade sempre foi comprometida até a medula com a jihad e, pois, com o terrorismo. Lembre-se, por exemplo, de Abdullah Azzam, que, ao lado de Muhammad Qutb (irmão de Sayyid), lecionou na universidade Rei Abdul Aziz, em Jidda, tendo como aluno ninguém menos que Osama bin Laden. Ou de Ayman al-Zawahiri, braço-direito de Bin Laden. Ou, ainda, de Khalid Sheikh Muhammad, da al-Qaeda, um dos mentores dos antentados de 11 de setembro de 2001, formado na Irmandade Muçulmana do Kuwait.
O curioso é que, enquanto esse o papel da Irmandade no fomento do terrorismo islâmico vem sendo negado por bem pensantes no Ocidente, o fato é amplamente reconhecido no próprio mundo árabe. Por exemplo, Ahmad Al-Rab’i, ex-ministro da Educação do Kuwait, disse em 2005 que os fundadores dos principais grupos terroristas do Oriente Médio emergiram do “manto” da Irmandade Muçulmana. Já em 2007, Tariq Hasan, colunista do diário egípcio Al-Ahram, alertou seus leitores de que a Irmandade Muçulmana estava preparando uma violenta sublevação no Egito, empregando suas “milícias mascaradas” para replicar o exemplo do Hamas na Faixa de Gaza. Também em 2007, o colunista Hussein Shobokshi, do saudita Al-Sharq al-Awsat, escreveu: “até o presente momento, a Irmandade Muçulmana não ofereceu nada além do que fanatismo, divisões, extremismo e, em alguns casos, banhos de sangue e extermínios”.
Ou seja, na contracorrente de formadores de opinião no Oriente Médio – que, diante do histórico da Irmandade Muçulmana, demonstraram ceticismo quanto à fachada moderada da organização –, muitos jornalistas e analistas no Ocidente aceitaram acriticamente a narrativa da moderação. Qual a razão para isso?
Uma explicação possível encontra-se em análises tais como as de Lorenzo Vidino e Daniel Pipes, profundos conhecedores do modus operandi da Irmandade Muçulmana. Segundo os autores, os tentáculos da organização se estendem para muito além das fronteiras do Oriente Médio, chegando até a Europa e os EUA, numa guerra assimétrica de penetração ideológica na qual o islamismo leva vantagem, pois é bem mais fácil introduzir uma determinada ideologia em países democráticos e multiculturalistas – com uma tradição consolidada de tolerância ao dissenso – do que o contrário.
Desde a década de 1960, explica Vidino, membros e simpatizantes da Irmandade Muçulmana têm migrado para a Europa e, lenta mas incansavelmente, estabelecido uma ampla e bem organizada rede de mesquitas, instituições de caridade e organizações islâmicas. Com uma retórica moderada, e falando fluentemente o alemão, o inglês e o francês, conquistaram a confiança de governos e da opinião pública europeia. Políticos das mais variadas tendências procuram envolver a Irmandade em assuntos que digam respeito ao Oriente Médio, assim como para atrair os votos da comunidade islâmica.
Ocorre que, longe dos holofotes da opinião pública ocidental, e falando em árabe ou turco com seus pares, os membros da organização retornam ao radicalismo e à agenda jihadista habitual. Enquanto, nas televisões do Ocidente, seus embaixadores falam em diálogo ecumênico e integração, os seus ideólogos, dentro das mesquitas, continuam a pregar o ódio antissemita e a alertar seus fiéis sobre os males da civilização ocidental. E a guerra de propaganda islâmica, intensificada desde a criação da OLP, vem surtindo efeito, o que explica o sucesso em convencer boa parte do mundo ocidental (especialmente a parcela “progressista” e liberal) da justeza da causa islâmica. Não por acaso, muitos formadores de opinião no Ocidente descreveram candidamente a assim chamada “Primavera Árabe” como uma luta por democracia e direitos civis, vendo na Irmandade Muçulmana a encarnação desses objetivos.
Mas se, para os ouvidos ocidentais, a Irmandade Muçulmana fala a língua da democracia e da tolerância, internamente continua a defender a velha doutrina wahabista. Em setembro de 2010, por exemplo, o então guia supremo da Irmandade, Muhammad Badi’, proferiu um sermão no qual acusava os regimes árabes e muçulmanos de oprimir suas populações, evitando com isso o confronto com os verdadeiros inimigos, os sionistas e os EUA, e de ignorar o mandamento de Alá para lançar a jihad contra os infiéis. Em suas palavras: “Os muçulmanos hoje precisam desesperadamente desenvolver uma mentalidade de honra e poder, que os torne capazes de confrontar o sionismo global. Esse movimento não reconhece outra linguagem além da força, e os muçulmanos devem, então, enfrentar o ferro com ferro, e os ventos com tempestades ainda mais violentas. Eles precisam compreender de uma vez por todas que o progresso e a mudança almejados pelas nações islâmicas só podem ser atingidos por meio da jihad e do sacrifício, com o surgimento de uma geração jihadista que anseie pela morte assim como os inimigos anseiam pela vida”.
Diante dessa declaração, vinda da boca da maior autoridade da organização islâmica, a tese dos articulistas do Council of Foreign Relations (CFR) examinada no artigo anterior, segundo a qual todas as correntes da Irmandade Muçulmana rejeitam a jihad global, mostra a sua natureza delirante. Não houve uma mudança significativa na orientação ideológica do grupo desde seu início até os dias de hoje.
Nos últimos 60 anos, pouca coisa mudou no discurso real da Irmandade Muçulmana; o apelo à jihad contra os infiéis continua inabalável
Compare-se as palavras de Muhammad Badi’ ao que escreveu Sayyid Qutb em Nas Sombras do Corão (Fī Ẓilāl al-Qur’ān), sua obra magna, redigida entre os anos de 1951 e 1965, quando Qutb estava preso, acusado de planejar o assassinato de Gamal Abdel Nasser. Comentando a sūrah 2 do Corão (“A Novilha”), Qutb afirma: “A vida é caracterizada sobretudo pela atividade, crescimento e persistência, enquanto a morte é o estado de total perda de função, de completa inércia e ausência de vitalidade. Mas a morte daqueles que são assassinados pela causa de Deus confere um maior ímpeto à causa, que continua a pulsar em seu sangue. Sua influência sobre aqueles que deixou para trás também cresce e se espalha. Assim, após a morte, eles permanecem uma força ativa, moldando a vida de sua comunidade e lhe oferecendo um rumo. É nesse sentido que essas pessoas, tendo sacrificado suas vidas em benefício de Deus, mantêm sua existência ativa na vida cotidiana... Não há um real sentido de perda em sua morte, pois elas seguem vivendo”.
Nos últimos 60 anos, pouca coisa mudou no discurso real da Irmandade Muçulmana. De Hasan al-Banna, Amin al-Husseini, Sayyid Qutb até Muhammad Badi’, o apelo à jihad contra os infiéis continua inabalável. Cabe agora ao leitor decidir se vai acreditar na palavra dos próprios líderes islâmicos ou na versão adocicada plantada no CFR e colhida inocentemente (na melhor das hipóteses) por nossos jornalistas e “especialistas” midiáticos.
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