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“Despe, ó Jerusalém, a veste de luto e de aflição, e reveste, para sempre, os adornos da glória vinda de Deus. Cobre-te com o manto da justiça que vem de Deus e põe na cabeça o diadema da glória do Eterno. Deus mostrará teu esplendor, ó Jerusalém, a todos os que estão debaixo do céu. Receberás de Deus este nome para sempre: ‘Paz-da-justiça e glória-da-piedade’.” (Baruc 5,1-9)
Nos meus dois últimos artigos – “Israel e os globalistas” e “Kant, Herder e o problema de Israel” –, argumentei que o problema dos globalistas em relação a Israel é o fato de o país judaico ser uma espécie de protótipo do Estado nacional soberano contra o qual se levantam os adeptos da “governança global”. No primeiro desses textos, apontei a existência de um antissemitismo mais sutil que o habitual, pois disfarçado de antissionismo, e manifesto pelos globalistas, a quem chamei de “herdeiros contemporâneos dos impérios (egípcio, assírio, babilônico etc.) em meio aos quais – e contra os quais – os judeus se constituíram como um povo”. Como essa caracterização possa ter ficado meio solta e soado arbitrária, penso ser válido aprofundá-la. Antes disso, porém, pretendo explorar mais a ideia do Estado judaico como protótipo da nacionalidade soberana, para isso destacando a importância simbólica da Israel bíblica no processo de independência americana. É o que farei na coluna de hoje.
Em 1971, um professor de Estudos Religiosos chamado Conrad Cherry publicou uma coletânea de pronunciamentos de personalidades históricas americanas acerca de sua visão sobre os Estados Unidos. Reunindo falas e escritos produzidos entre os séculos 17 e 20, o livro tem o interessante título God’s New Israel: Religious Interpretations of American Destiny (“A Nova Israel de Deus: interpretações religiosas do Destino Americano”). E o que a leitura da obra nos leva a concluir é que, começando antes da independência e passando por John F. Kennedy e Martin Luther King, os americanos jamais deixaram de representar seu país como uma reencarnação da Israel bíblica e a si próprios como um povo eleito. Não por acaso, G. K. Chesterton chegou a caracterizar os EUA como “uma nação com a alma de uma igreja”.
Começando antes da independência e passando por John F. Kennedy e Martin Luther King, os americanos jamais deixaram de representar seu país como uma reencarnação da Israel bíblica e a si próprios como um povo eleito
Muito embora o espírito religioso da nova nação não aparecesse de modo tão passional na Declaração de Independência em si mesma – concebida, em boa medida, sob inspiração do Iluminismo secularista francês, e como justificativa ex post facto das crenças americanas –, ele é recorrente em pronunciamentos dos Pais Fundadores e outros apóstolos do americanismo, de John Winthrop e William Bradford, passando por John Adams e Thomas Jefferson, até chegar em Lincoln, Wilson, Truman, Reagan, Bush e Trump. No século 18, o século da independência, o livro mais lido na América era a Bíblia do Rei James, e, portanto, os “revolucionários” americanos eram bem familiarizados com a história de Israel, o êxodo do Egito, o exílio da Babilônia, a vitória de Davi sobre Golias, o livro do Deuteronômio etc. O imaginário dos colonos americanos era grandemente formado por essas histórias, de onde se extraía um poderoso simbolismo político.
Com efeito, era frequente nas palestras e sermões dos entusiastas da independência a descrição da República americana como “a nova Israel”. Havia uma tão grande identificação com a narrativa bíblica que o rei britânico Jorge III era frequentemente chamado de “faraó”, numa referência à escravidão do povo hebreu no Egito. Em artigo sobre o espírito religioso da fundação americana, o escritor David Gelernter cita alguns pronunciamentos da época: “O tirano britânico está apenas agindo da mesma maneira ímpia e cruel que o faraó, rei do Egito, agiu em relação aos filhos de Israel cerca de 3 mil anos atrás” – declarou Nicholas Street, um clérigo Whig, em 1777. Outro líder Whig, o dr. Banfield, disse em 1783 ter sido Deus quem “levantou um Josué para liderar as tribos de Israel no campo de batalha; levantou e formou um Washington para liderar as tropas de seus Estados escolhidos”. Dez anos após a ratificação da Constituição dos Estados Unidos, em 1799, em um sermão de Ação de Graças, o reverendo Abiel Abbot declarou: “Foi frequentemente observado que o povo dos Estados Unidos se assemelha mais com a antiga Israel do que com qualquer outra nação do globo. Daí ‘nosso Israel americano’ ser um termo frequentemente usado; e nosso consentimento comum o considera apropriado e adequado”.
Também o filósofo Michael Novak, em seu excelente On Two Wings: Humble Faith and Common Sense at the American Founding, fala da autocompreensão dos “revolucionários” americanos como uma “metafísica da Bíblia hebraica”, que lhes infundiu a certeza da necessidade de instituírem uma nação independente e autogovernada, única e exclusivamente submetida à vontade de Deus. Novak cita uma fala de Samuel Cooper, um conhecido pregador religioso da Nova Inglaterra, que argumentava “em favor da liberdade, da independência e do governo republicano a partir de exemplos bíblicos”. Num discurso no parlamento de Massachussets, em 1780, Cooper começa traçando um paralelo entre o povo de Israel e as circunstâncias dos americanos da época, com base no trigésimo capítulo do Livro de Jeremias, que relata o sofrimento dos israelitas sob cativeiro. Nas palavras de Novak: “Sem hesitar em ligar Jorge III a Nabucodonosor, Cooper observava que o governo hebraico, embora fosse uma teocracia, era, todavia, uma república livre, cujo ideal de soberania residia no espírito do povo. Assim, Cooper fundamentava a liberdade republicana na religião bíblica.”
Mas, se o ideal americano de independência e soberania fundamentou-se, em grande medida, no exemplo da Israel bíblica, os inimigos da independência e da soberania também recorreram à Bíblia para a sua causa, só que tomando partido dos impérios contra Israel. De fato, não seria exagero dizer que o conflito perene entre globalistas e soberanistas começa na Bíblia hebraica. E, para que o leitor não pense que estou forçando uma analogia e atribuindo aos autores algo que jamais lhes passou pela cabeça, trago como ilustração a visão de um expoente intelectual do globalismo: Strobe Talbott, vice-secretário de Estado americano durante o governo Bill Clinton e ex-presidente do Brookings Institution, um importante think tank globalista.
Nos anos 1990, Talbott foi colunista na revista Time, quando publicou um artigo intitulado “O Nascimento da Nação Global”, no qual previa e celebrava o surgimento de uma autoridade política supranacional no futuro. “Posso apostar que, dentro dos próximos cem anos, a noção de nacionalidade, tal como a conhecemos, será obsoleta; todos os Estados reconhecerão uma única autoridade global. Uma fórmula que chegou a estar na moda em algum momento do século 20 – a de ‘cidadão do mundo’ – terá assumido um significado real até o fim do século 21”, escrevia. E afirmava também que os países são arranjos sociais adaptados a circunstâncias mutáveis, e que, “não importa o quão permanentes e até mesmo sagrados possam parecer em um dado momento, a verdade é que são todos artificiais e temporários”.
Mais de uma década depois, em 2009, Talbott publicou o livro O Grande Experimento: A história dos impérios antigos, dos Estados modernos e a busca por uma nação global, no qual elabora a fundamentação histórica e faz a defesa contemporânea do governo global. “Qualifiquei um pouco a minha previsão, mas não alterei sua essência” – diz Talbott, sugerindo haver “razões para esperar, e também para prever” que a política mundial seguirá na direção por ele indicada anteriormente.
Seja do ponto de vista histórico, intelectual, cultural, religioso, moral ou estratégico, o Estado judaico se apresenta como um sério obstáculo à agenda da governança global. Se o projeto político transnacional há de avançar, Israel precisa perecer
Na verdade, não se tratava de uma simples previsão. O livro não é apenas preditivo, mas normativo, descrevendo o que o intelectual globalista vê como um ideal a ser implementado por meio do exercício do poder político. “Sempre houve e sempre haverá uma tensão entre, por um lado, o conceito de uma comunidade internacional e, por outro, o anseio de uma comunidade nacional que se considera independente e soberana” – começa Talbott. E, desde o início do argumento, ficam claras a sua simpatia pelos impérios multinacionais com aspirações globais e a sua postura condescendente para com a defesa de soberanias independentes. Comparando, por exemplo, Aristóteles a Alexandre, o Grande (de quem o filósofo foi preceptor), Talbott afirma que, enquanto o primeiro defendia as cidades-Estado gregas independentes, o segundo tinha “uma ideia maior e melhor”, uma única comunidade política global. Do mesmo modo, ao elogiar o império mongol, refere-se entusiasmado a um comentário de Jack Weatherford, segundo o qual os mongóis “não apenas buscaram conquistar o mundo, mas instituir uma ordem global baseada no livre comércio, uma única lei internacional e um alfabeto universal com o qual escrever todas as línguas”.
Também retratados quase sempre de modo positivo, como colaboradores da causa do governo global, estão os impérios babilônico, egípcio e romano, o império da dinastia Qin na China, o império Mauryan da Índia sob Ashoka, os impérios de Maomé, Carlos Magno, os otomanos e os Habsburgos. Trazendo o argumento para o mundo contemporâneo, Talbott apresenta a União Europeia em termos altamente elogiosos, como “um empreendimento de grande audácia e promessa, um modelo do que é possível”. Já em relação às soberanias nacionais, seu tom é decididamente mais ácido, tanto que uma de suas “definições favoritas” de nação advém do kantiano Julian Huxley, mentor intelectual da Unesco: “uma sociedade unida por um erro comum quanto às suas origens e uma aversão comum aos seus vizinhos”.
Talbott também sustenta a ideia de que, na imaginação ocidental, a antiga Israel é a primeira entidade política autogovernante, o protótipo da nação soberana e do Estado independente, que enfrentou uma sucessão de inimigos imperiais. Depois de ficar sob domínio imperial (egípcio, babilônico, helênico, romano e britânico) por milhares de anos, Israel reconstruiu-se como um Estado-nação democrático no século 20. Todavia, ao contrário dos Pais Fundadores de seu país, a linguagem de Talbott é menos empática para com os antigos hebreus do que para com as potências transnacionais que os tentaram subjugar. Os antigos hebreus são por ele retratados como estreitos e insulares: “no Êxodo, assim como no Gênesis, uma ordem divina universal, inclusiva e politeísta, tornou-se nacional, exclusiva e monoteísta”.
Se, por um lado, o autor observa que a lei bíblica promove a tolerância com minorias (por exemplo, na famosa passagem de Levítico, “o estrangeiro que habita convosco será para vós como um natural da vossa terra”), por outro ele afirma que “aqui, o pluralismo tem seus limites”. Porque “se o estrangeiro adora outros deuses, então sua estadia em Israel será como a de um estrangeiro, e suas imagens esculpidas, presumivelmente, sofrerão o mesmo destino que as dos inimigos de Israel”. Talbott também dá ênfase à belicosidade dos antigos hebreus, citando passagens como esta de Deuteronômio: “Ferirás a eles e destruirás totalmente; não farás aliança com eles”. Quanto aos “reis babilônicos e faraós egípcios”, vilipendiados como “tiranos” pelos escribas hebreus, Talbott afirma que, sob importantes aspectos, eles foram “governantes justos e tolerantes, pioneiros da ideia inovadora de que a paz era preferível à guerra nas relações entre reis-deuses” (grifos meus).
Com base nessa reconstrução edulcorada da ideia de império, Talbott enxerga o Estado-nação democrático moderno de Israel como problemático, um “exemplo cronicamente vexatório tanto da força quanto da fraqueza da própria nacionalidade”. O autor aponta “o destino de Israel e de seus vizinhos árabes” no sistema internacional do segundo pós-guerra como um “lembrete constante” de que, embora o imperialismo multinacional tenha suas falhas, “também tem seus encantos, como meio de reunir muitas nações espalhadas por grandes distâncias e às vezes em continentes diferentes”.
Em suma, ao contrário, por exemplo, do mandatário brasileiro e seu antissemitismo grotesco, Talbott expressa de modo sofisticado e erudito a interpretação globalista sobre o significado de Israel, tanto na Antiguidade quanto nos nossos dias, no pensamento político ocidental e na história mundial. Eis que, seja do ponto de vista histórico, intelectual, cultural, religioso, moral ou estratégico, o Estado judaico se apresenta como um sério obstáculo à agenda da governança global. Se o projeto político transnacional há de avançar, Israel precisa perecer, quer simbólica, quer fisicamente.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos