Em 1952, na condição de secretário-geral do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco, o grande antropólogo Claude Lévi-Strauss publicou seu famoso ensaio Raça e História. No contexto de uma Europa do pós-guerra, traumatizada pelo horror nazista (ainda muito fresco na memória de todos), a obra lhe havia sido encomendada pelo braço cultural da ONU para integrar uma coleção de brochuras destinadas a combater o racismo.
Uma das seções mais famosas do ensaio, lida em toda aula introdutória de Antropologia (ao menos na época em que se lia nas faculdades de Ciências Sociais), é dedicada a esse embrião do racismo que é o fenômeno do etnocentrismo, a noção segundo a qual apenas o meu grupo social de referência – seja étnico, tribal ou nacional – é plenamente humano e culturalmente desenvolvido. A certa altura da análise, o francês Lévi-Strauss tece as seguintes considerações sobre a etimologia, a história e o significado das palavras bárbaro e selvagem:
“Na Antiguidade, por exemplo, confundia-se tudo o que não fazia parte da cultura grega (posteriormente greco-romana) sob a denominação ‘bárbaro’; a civilização ocidental usaria mais tarde o termo ‘selvagem’ no mesmo sentido. Por detrás desses epítetos, esconde-se a mesma opinião. É provável que a palavra ‘bárbaro’ se refira, etimologicamente, à confusão e à inarticulação do canto dos pássaros, em oposição ao valor significante da linguagem humana. E ‘selvagem’ quer dizer ‘da selva’, evocando também um modo de vida animal, por oposição à cultura humana. Em ambos os casos, expressa-se a recusa de admitir o próprio fato da diversidade cultural; prefere-se lançar para fora da cultura, na natureza, tudo o que não se conforma às normas que regem a vida de quem julga.”
Vendo as reações da imprensa à vitória de Javier Milei nas primárias argentinas, temos a impressão de que, para a província ideológica das redações, toda opção política divergente é lançada de imediato no terreno da barbárie e da selvageria
Com efeito, o dicionário Merriam-Webster de etimologia informa que a palavra bárbaro teria origem onomatopaica, aludindo à imitação zombeteira que os gregos faziam das fracassadas tentativas dos estrangeiros em aprender a sua língua, produzindo sequências de balbucios sonoros semelhantes aos de animas, como bar-bar-bar. De acordo com o etnocentrismo grego, portanto, os estrangeiros não teriam propriamente uma linguagem humana e articulada. Em vez disso, sua comunicação seria rudimentar e instintiva como a dos bichos selvagens.
Aquilo que Lévi-Strauss afirma em relação à cultura humana como um todo vale também, decerto, para este seu subconjunto: a política. Não se poderia qualificar de outra coisa que não de etnocêntricas, por exemplo, as manifestações de grande parte da imprensa brasileira em relação à vitória de Javier Milei nas primárias argentinas, resultado, como sempre, imprevisto pelos “especialistas” e suas pesquisas tendenciosas. Com efeito, observando a furiosa perplexidade com que nossos jornalistas e comentaristas reagiram à escolha soberana do eleitorado argentino, ficamos com a impressão de que, para a província ideológica das redações, toda opção política divergente é lançada de imediato no terreno da barbárie e da selvageria.
Descrito nos jornais como de “extrema-direita” (haverá, aliás, uma direita que não seja extrema aos olhos da nossa imprensa?), Milei foi apresentado ao público brasileiro como uma aberração, uma presença alienígena, politicamente ilegítima e moralmente inaceitável, num jogo democrático normal. Indignados com mais um penetra na festinha da democracia de uma perna só (a esquerda), nossos militantes de redação pareciam dizer entredentes: malditos argentinos, maldito sufrágio universal! Trata-se de comportamento típico da classe falante nacional. Quando nossos jornalistas e “intelectuais” de esquerda olham para os de fora de sua tribo ideológica, veem neles autômatos movidos por circunstâncias extrínsecas, que os determinam mecanicamente, como a um objeto, sem qualquer mediação das faculdades cognitivas humanas.
Para o militante de redação padrão, o outro não é um sujeito situado no mesmo plano que ele, dotado de igual capacidade de agência e autorreflexão. Não, os que não aderem às suas taras ideológicas são sempre, e em qualquer circunstância, encarados como um objeto, cuja reação se supõe obedecer a leis mecânicas previsíveis, cuja violação gera perplexidade e indignação moral. Segundo essa cosmovisão elitista e insularizada, as escolhas político-eleitorais divergentes jamais são fruto de raciocínio, mas de sentimentos, ou, menos ainda, de instintos. E isso nos traz de volta à abordagem lévi-straussiana do etnocentrismo.
Na imensa maioria das reportagens, editoriais e artigos de opinião publicados na imprensa autoproclamada “profissional”, a opção eleitoral do argentino por Javier Milei não foi tratada como racional, meditada, legítima e propriamente política (ou seja, humana). Em vez disso, ela foi descrita como uma reação de tipo animalesca. Na Folha de S.Paulo, por exemplo, atribuiu-se lhe ao sentimento de “raiva”. Assim foi também no Estadão. Já no portal de extrema-esquerda Metrópoles, na coluna do blogueiro ultrapetista Ricardo Noblat, o resultado das primárias argentinas foi qualificado como “o grito da Argentina mais revoltada”. Sim, um grito. Não uma fala, uma opinião, uma livre decisão, mas simplesmente um grito.
Tem-se aí uma clara intenção de apresentar o voto ideologicamente não alinhado como algo produzido de maneira reativa e desarticulada, quase como uma interjeição. Ao passo que o membro da tribo política da redação se manifesta de maneira ativa, articulada e autoconsciente, o forasteiro político emite um som, um ruído, que lhe brota da garganta quase que à sua revelia. Quando vota, o extremista de esquerda fala; o adversário grita. Talvez pudéssemos acrescentar: rosna, guincha, grasna, bale etc. – produz, enfim, algo que é da ordem da natureza, não da cultura; algo selvagem, bárbaro e bestial, como o bar-bar-bar dos não helênicos. Ao negar ao outro essa condição de autodeterminação política, o que os etnocêntricos blogueiros de extrema-esquerda fazem é justamente o que denunciou Lévi-Strauss: “lançar para fora da cultura, na natureza, tudo o que não se conforma às normas que regem a vida de quem julga”.