Há alguns dias, Jeff Bezos, dono do jornal The Washington Post, publicou no seu jornal um editorial que está dando o que falar. Explicando o porquê de haver decidido, contra o histórico recente e as expectativas dos leitores e dos próprios integrantes da redação do jornal, deixar de apoiar qualquer candidato na presente disputa presidencial americana, Bezos apontou o viés político esquerdista como a principal causa da perda de credibilidade da mídia mainstream. “Eis a dura verdade: os americanos não confiam na imprensa” – diz o título do editorial, no qual se lê:
“A maioria das pessoas acredita que a mídia é tendenciosa. Qualquer um que não perceba isso está prestando pouca atenção à realidade, e aqueles que lutam contra a realidade perdem. A realidade é um campeão invicto. Seria fácil culpar outros pela nossa longa e contínua queda em credibilidade (e, portanto, pela diminuição de nosso impacto), mas uma mentalidade de vítima não vai ajudar.”
Bezos finaliza o texto apontando para o isolamento da imprensa, cada vez mais autocentrada e alienada do público leitor. Nas palavras do fundador da Amazon:
“A falta de credibilidade não é exclusividade do Post. Nossos jornais irmãos enfrentam o mesmo problema. E isso não é apenas um problema para a mídia, mas também para a nação. Muitas pessoas estão recorrendo a podcasts improvisados, postagens imprecisas nas redes sociais e outras fontes de notícias não verificadas, que podem rapidamente espalhar desinformação e aprofundar divisões. The Washington Post e The New York Times ganham prêmios, mas, cada vez mais, falamos apenas para uma certa elite. Cada vez mais, falamos apenas entre nós mesmos.”
Como bem notaram Arthur Brisbane e Jeff Bezos para o caso americano, o establishment midiático no Brasil tornou-se igualmente provinciano e ensimesmado, distanciando-se cada vez mais da realidade percebida pelo brasileiro médio
Conclui-se que, talvez tardiamente, o dono do Washington Post percebeu que a grande imprensa americana padece daquilo que, em referência à consorte brasileira, Rolf Kuntz chamou de “autofagia jornalística”: o hábito de só escrever nos jornais aquilo que se lê nos jornais, num perpétuo e claustrofóbico ouroboros desinformativo, no qual o asno afaga o asno (asinum asinus fricat), como diz o velho provérbio latino.
Mas, nos EUA, o problema da autofagia jornalística já vinha sendo apontado por algumas poucas vozes lúcidas e, por isso mesmo, francamente ignoradas. Em 25 de agosto de 2012, por exemplo, o jornalista Arthur S. Brisbane, ombudsman do New York Times entre os anos de 2010 e 2012, publicou o seu último artigo à frente da coluna. Intitulado “Sucesso e risco nas transformações do Times”, o texto fazia uma análise das mudanças impostas pela revolução digital à imprensa tradicional, e apontava alguns pecados por ela cometidos, como a falta de transparência, de humildade e, sobretudo, de diversidade cultural e política dentro das redações. Nas palavras de Brisbane:
“Eu também notava, há dois anos [em sua coluna de estreia], que assumi as funções de ombudsman acreditando ‘não haver conspirações’, e que a produção do Times era por demais vasta e complexa para ser ditada por algum indivíduo ou cabala ao estilo Mágico de Oz. Ainda acredito nisso, mas também percebo que o formigueiro na Oitava Avenida [onde fica a sede do jornal nova-iorquino] é fortemente moldado por uma cultura de mentalidades afins [“a culture of like-minds”, no original] – um fenômeno que acredito ser mais facilmente percebido de fora do que de dentro.
Quando o Times cobre uma campanha presidencial [era época da disputa que culminou na reeleição de Barack Obama], noto que os principais editores e repórteres se mostram disciplinados em promover equilíbrio e isenção, sendo usualmente bem-sucedidos. Nos muitos departamentos do jornal, todavia, tantos são os que compartilham uma espécie de progressismo político e cultural – por falta de melhor termo –, que essa visão de mundo virtualmente transborda para dentro do noticiário. Como resultado, processos tais como o movimento Occupy e o casamento gay parecem quase irromper dentro do Times, superestimados e mal dimensionados, mais como causas do que como objetos de notícia.”
No Brasil, também é visível a crise de representatividade da imprensa, cujo corolário tem sido também uma postura autocentrada e ressentida por parte dos autoproclamados e autolaureados “jornalistas profissionais”. Em julho do ano passado, por exemplo, o Ipec (ex-Ibope) publicou uma pesquisa que media o Índice de Confiança Social (ICS) do brasileiro nas instituições do país. Em que pese o fato de os institutos de pesquisa também terem experimentado a sua própria crise de credibilidade, os dados da pesquisa mostravam que, desde o começo da série histórica, em 2009, tem havido uma relevante oscilação, com algumas instituições caindo e outras subindo no conceito da população. De todo modo, quer no sentido ascendente, quer no descendente, a oscilação não ultrapassou, em média, os cinco pontos porcentuais. Com a notável exceção de uma instituição: a imprensa. Esta despencou nada menos que 15 pontos na série histórica, passando de 71 a 56, e tendo chegado ao piso de 51 pontos no ano de 2018.
Há um bom tempo que, na imprensa nacional, se tem ouvido falar numa tal “crise de representatividade”, usualmente em referência exclusiva ao sistema político-partidário brasileiro. Mas, diante das estatísticas e das pesquisas de opinião, já não seria hora de incluir os próprios meios de comunicação nessa crise? Embora seja essa uma verdade nada lisonjeira para a orgulhosa classe jornalística, o fato é que, como bem notaram Brisbane e Bezos para o caso americano, o establishment midiático no Brasil tornou-se igualmente provinciano e ensimesmado, distanciando-se cada vez mais da realidade percebida pelo brasileiro médio.
Sob esse aspecto, as redações brasileiras não diferem das do Times e do Post, também elas culturalmente homogêneas, e, com raras exceções, igualmente tomadas por progressismo. Tudo se passa como se, nesse ambiente, uma norma tácita fora admitida por todos, uma espécie de 11.ª tese sobre Feuerbach em versão adaptada: até hoje, os jornalistas se limitaram a noticiar o mundo; chegou a hora de transformá-lo. Nesse sentido, é sintomático que uma badalada professora universitária de Jornalismo (de esquerda, obviamente) tenha chegado a descrever a profissão como a arte de – brace for impact! – “pensar contra os fatos” e “formar um novo senso comum”. Com efeito, nenhuma descrição poderia ser mais precisa do estado presente do jornalismo “profissional”, que não se cansa de pensar, noticiar e opinar contra os fatos.