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Há sempre riscos em se comparar eventos políticos contemporâneos ao nazismo, ainda que a comparação seja apenas pontual e referente a aspectos circunscritos do fenômeno. O primeiro risco, obviamente, é o da banalização do sofrimento das vítimas de Hitler – notadamente, os judeus. Para os sobreviventes do Holocausto e seus descendentes, tentativas vãs de comparação implicam no esvaziamento do caráter singular daquela terrível experiência, inscrita indelevelmente no corpo e na alma das vítimas. Tudo se passa como se a mera tentativa de explicar racionalmente o ocorrido, equiparando-o a outros casos de estupidez ideológica e violência política, possa violar uma memória tão dolorosa. Em É Isto um Homem?, Primo Levi resume bem esse estado de espírito:
“Talvez não seja possível compreender o que aconteceu, e nem se deva mesmo tentar compreendê-lo, na medida em que compreender é quase justificar (…) Aquilo tudo foi inumano, ou, mais ainda, anti-humano, sem qualquer precedente histórico, só comparável às manifestações mais cruéis da luta biológica pela existência.”
O medo da banalização do Holocausto, expresso de maneira tão contundente por Primo Levi, é compreensível e digno de respeito. No entanto, a própria obra do escritor italiano é testemunha de que compreensão racional e condenação moral não são excludentes, talvez muito pelo contrário. Sobretudo porque, só sendo possível comparar objetos não idênticos, a comparação não se confunde com a afirmação de uma identidade. Como observou o filósofo búlgaro Tzvetan Todorov:
“A comparação é uma ferramenta de conhecimento indispensável nesse campo; ela produz, por suposto, similaridades e diferenças. A ciência é sempre sacrílega. Recusa-se a isolar os eventos ali onde quem os viveu em primeira pessoa tende a fazê-lo… Não é porque os eventos passados são únicos, cada qual com um significado específico, que devemos hesitar em ligá-los uns aos outros. Pelo contrário: longe de excluir a singularidade, só a comparação pode estabelecê-la.”
Mais grave do que o risco de cometer a falácia de apelar ao nazismo seria a falácia de, por medo do ridículo, ceder à proibição de comparar fenômenos de fato semelhantes
Um outro risco parece-me menos digno de consideração, e não deveria bastar para deter os analistas que recorrem à comparação: ser acusado de praticar a famigerada falácia do Reductio ad Hitlerum. Sim, que esse apelo seja frequente nos debates políticos, quase sempre feito de maneira irresponsável para suprir a ausência de bons argumentos contra o adversário, é uma verdade amplamente verificada. No entanto, isso não significa que, se bem delimitada, toda comparação com aspectos do nazismo seja forçada e impertinente, sobretudo quando esses aspectos ressurgem de maneira tão gritante no discurso e na prática de atores políticos contemporâneos. Nesse caso, mais grave do que o risco de cometer a falácia de apelar ao nazismo seria a falácia de, por medo do ridículo, ceder à proibição de comparar fenômenos de fato semelhantes.
Como, por exemplo, lidar com a fala recente de José Múcio Monteiro, ministro da Defesa do regime lulopetista? Na última terça, em palestra na Confederação Nacional da Indústria (CNI), Múcio criticou a interferência político-ideológica do Planalto nos negócios da pasta e, talvez não intencionalmente, acabou fazendo uma denúncia das mais graves, que deveria resultar numa abertura imediata de investigação por parte do Congresso. Em relação a tratativas sobre uma possível compra de blindados israelenses por parte do governo brasileiro, o ministro disse o seguinte:
“Houve agora uma concorrência, uma licitação, e venceram os judeus, o povo de Israel. Mas, por questão da guerra, do Hamas, os grupos políticos, nós estamos com essa licitação pronta, mas por questões ideológicas nós não podemos aprovar.”
Há várias coisas nessa curta fala que merecem destaque. Os ganhadores da licitação são referidos por “os judeus”. Sugerindo não estar se referindo meramente a uma questão de Estado, Múcio acrescenta a qualificação antonomástica “o povo de Israel”. Ao que parece, portanto, o impedimento para a concretização do negócio não tem a ver apenas como uma determinada empresa, nem sequer mesmo com o governo de Israel, mas com toda uma etnia. A ordem de interrupção da negociação – e o ministro agora tem o dever de apontar a sua origem – se deu pelo fato de a parte fornecedora ser constituída por “judeus”.
Depois disso, Múcio lamenta que o negócio não tenha sido aprovado “por questões ideológicas”. Referindo-se à denúncia do ministro, muitos comentadores, nos veículos de comunicação e nas redes sociais, sublinharam o absurdo de se priorizar “questões ideológicas” em detrimento dos interesses nacionais de defesa. E, de fato, é absurdo. Mas a crítica genérica a “questões ideológicas” está longe de captar a dimensão do problema, que consiste não propriamente no fato de que a ideologia prevaleceu sobre a racionalidade – o que já seria lamentável –, mas no conteúdo particular da ideologia sugerida pela fala de Múcio.
O ministro da Defesa menciona, sim, a presença de uma ideologia. Mas de que ideologia estamos falando? Não se trata de uma ideologia qualquer, genérica e abstrata, mas de uma ideologia bem específica: uma ideologia que envolve a proibição de se fazer negócios com “judeus”. Em outras palavras: o que, querendo ou não, o ministro denunciou em sua palestra na CNI foi a interferência de uma ideologia antissemita esposada pelo governo brasileiro num processo de negociação comercial. E aí, que me perdoem os fóbicos da Reductio ad Hitlerum, mas não consigo deixar de lembrar do infame Judenboykott, o boicote ao comércio judaico na Alemanha, decretado pelos nazistas em 1.º de abril de 1933.
A semelhança não deveria surpreender, uma vez que o antissemitismo é uma ideologia historicamente veiculada por setores do lulopetismo. Quem não lembra quando, por exemplo, no ano de 2015, integrantes de um tal Comitê Santamariense de Solidariedade ao Povo Palestino, do qual fazia parte o então deputado petista Paulo Pimenta – hoje no cargo de ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social –, solicitaram (e foram atendidos) à reitoria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) uma lista contendo o nome de todos os alunos e professores judeus da universidade? Quem já se esqueceu das recentes e reiteradas falas antissemitas do mandatário brasileiro, que lhe rendeu uma parabenização do grupo terrorista Hamas? Quem não recorda dos recorrentes afagos entre o lulopetismo e o regime iraniano, desde os tempos de Ahmadinejad, a quem o camarada Luiz Inácio tratava por amigo e irmão? O fato é que, como fica patente na denúncia de Múcio, o alegado antissionismo da extrema esquerda revolucionária hoje no poder no Brasil não distingue entre os israelenses e a “judeidade” sionista, assim como não o fazem os palestinos, os iranianos ou os árabes radicais.
O antissemitismo é uma ideologia historicamente veiculada por setores do lulopetismo
Num de seus ensaios sobre o antissemitismo, o escritor e sobrevivente de Auschwitz Jean Améry já antevira, nos anos 1970, a relação da Nova Esquerda pós-soviética com Israel. Escreveu ele, parecendo referir-se ao ilegítimo governo brasileiro contemporâneo:
“Para a Nova Esquerda, o sionismo é aproximadamente o que, na Alemanha, há cerca de trinta anos, era chamado de ‘Judaísmo Mundial’. O purismo esquerdista, o zelo esquerdista e a virtude esquerdista (no sentido de Robespierre) repreendem esse sionismo, que os esquerdistas também gostam de chamar de ‘Sionismo Nacional’, a fim de o associar foneticamente ao Nacional Socialismo. Em Israel, a esquerda vê o agressor e opressor, o porta-estandarte da opressão imperialista ocidental e americana.”
Não há improviso no antissemitismo do regime brasileiro. Por trás das falas e práticas indecorosas do líder petista, há toda uma cultura política e uma estratégia geopolítica em curso. Ao lançar mão do velho amálgama “nazista-sionista”, o político que, segundo seus entusiastas, foi reconduzido ao poder para “salvar a democracia”, leva o Brasil para o lado das ditaduras mais brutais e criminosas do mundo contemporâneo. Que o ministro da Defesa seja convocado urgentemente pelo Parlamento para esclarecer os detalhes dessa política de Estado oficialmente antissemita, que envergonha e enoja o povo brasileiro.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos