Clarence Darrow (em pé) questiona William Jennings Bryan (sentado, de gravata-borboleta) durante o Julgamento do Macaco, em 1925.| Foto: Watson Davis/Smithsonian Institute Archives/Domínio público
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No artigo anterior, comentamos sobre o desprezo manifesto por pensadores modernos em relação a uma pretensa tibieza do cristianismo. Exemplarmente ilustrado pelo elogio nietzscheano dos sacrifícios pagãos, encerramos o texto aludindo a quanto o pensamento de Nietzsche relativo a esse tema influenciou espiritualmente os nazistas, que, sob esse aspecto, repudiavam igualmente a defesa cristã dos indivíduos humanos tidos por mais fracos.

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Com efeito, Adolf Hitler manifestou em relação ao cristianismo o mesmíssimo desprezo de Nietzsche, Rousseau e Maquiavel. E só mesmo uma ignorância histórica monstruosa pode levar alguns ateus contemporâneos a tomá-lo por cristão exemplar. Para perceber isso, basta ler as seguintes declarações do Führer, que Albert Speer, ex-ministro do armamento do Reich, transcreveu no seu livro de memórias:

“Veja você que o nosso azar foi ter a religião errada. Por que não tivemos a religião dos japoneses, que consideram o sacrifício pela pátria como o bem supremo? Também a religião maometana nos seria muito mais compatível do que o cristianismo. Por que tinha de ser o cristianismo, com sua humildade e frouxidão?”

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Adolf Hitler manifestou em relação ao cristianismo o mesmíssimo desprezo de Nietzsche, Rousseau e Maquiavel. E só mesmo uma ignorância histórica monstruosa pode levar alguns ateus contemporâneos a tomá-lo por cristão exemplar

Traudl Junge, a última secretária pessoal de Hitler, também registrou esse seu pendor sacrificial, nietzscheano e anticristão:

“Às vezes tínhamos interessantes discussões sobre a igreja e o desenvolvimento da raça humana. Na verdade, chamá-las de discussões é um exagero, porque ele começava a explicar suas ideias quando um de nós fazia alguma pergunta ou comentário, e apenas ouvíamos. Ele não era membro de nenhuma igreja, e achava que as religiões cristãs eram instituições ultrapassadas e hipócritas, que atraíam as pessoas como uma isca. Sua religião eram as leis da natureza. O seu dogma de violência combinava mais com a natureza do que com a doutrina cristã do amor ao próximo e ao inimigo. ‘A ciência ainda não é clara sobre as origens da humanidade’, disse certa vez. ‘Estamos provavelmente no estágio mais avançado de algum mamífero que, evoluindo a partir dos répteis, prosseguiu até os seres humanos, talvez via os macacos. Somos parte da criação e filhos da natureza, e as mesmas leis se aplicam a nós bem como a todas as criaturas vivas. Na natureza, a lei da luta pela sobrevivência se impôs desde o início. Tudo o que é mal adaptado à vida, tudo o que é fraco, é eliminado. Apenas a humanidade, e sobretudo as igrejas, dedicaram-se a manter vivos os fracos, os mal-adaptados, as pessoas de uma espécie inferior’.”

A bem da verdade, não se tratava aí de nenhuma idiossincrasia nazista. Entre meados do século 19 e meados do século 20, a ideia de que o princípio darwinista da seleção natural deveria ser diretamente transposto para a esfera da política e da sociedade, com uma função reformadora, era moeda corrente entre o público letrado, tanto na Europa quanto nos EUA. Para que o leitor tenha noção do senso comum científico e intelectual da época, basta pegar o exemplo de um livro amplamente utilizado nas escolas americanas na década de 1920 para o ensino de Biologia, significativamente intitulado A Civic Biology. Escrito pelo professor George W. Hunter, nele os alunos podiam ler explicações como esta:

“Se a linhagem de animais domésticos pode ser aprimorada, não é injusto perguntar se a saúde e o vigor das futuras gerações de homens e mulheres na terra não poderia ser aprimorada aplicando-se a elas as leis da seleção natural (…) Quando as pessoas se casam, há certas coisas que o indivíduo, bem como a espécie, deveriam exigir. A mais importante delas é a proteção contra doenças microbianas potencialmente transmissíveis aos descendentes (…) A ciência do bem nascer chama-se eugenia.”

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Em determinado trecho do livro, o autor discute o famigerado caso das famílias Jukes e Kallikaks, exemplos canônicos citados pelos adeptos do darwinismo social. Os Jukes, família nova-iorquina estudada por Richard L. Dugdale em 1877, haviam sido convertidos em símbolo da criminalidade hereditária, enquanto os Kallikaks, pesquisados por Henry H. Goddard em 1912, exemplificavam o caráter herdado do retardamento mental. Em uma seção intitulada “parasitismo e seu custo para a sociedade”, Hunter escreve:

“Centenas de famílias tais como as descritas acima [i. e., os Jukes e os Kallikaks] existem hoje, espalhando doenças, imoralidade, e crime por todo o país. O custo dessas famílias para a sociedade é muito alto. Assim como certos animais e plantas tornam-se parasitas de outros, essas famílias tornaram-se parasitas da sociedade. Não apenas fazem mal aos outros corrompendo, roubando ou espalhando doenças, mas também são protegidas e cuidadas pelo Estado com dinheiro público. Os abrigos e asilos existem sobretudo para elas. Tiram da sociedade, mas nada dão em troca. São verdadeiros parasitas. Se essas pessoas fossem animais inferiores, provavelmente as mataríamos e impediríamos de procriar. A humanidade não permite tal coisa, mas temos a solução de separar os sexos em asilos e outros locais, prevenido de várias formas o casamento e as possibilidades de perpetuação dessa raça tão inferior e degenerada. Soluções do tipo têm sido testadas com sucesso na Europa, e agora também em nosso país.”

O livro de Hunter foi um dos ingredientes do famoso “Julgamento do Macaco” ou “caso Scopes”, quando, no ano de 1925, o professor de ciências John T. Scopes foi levado a julgamento por ensinar a teoria da evolução em uma escola secundária na cidade de Dayton (Tennessee). Suas aulas eram integralmente baseadas no livro A Civic Biology. O Julgamento do Macaco foi consagrado em versão romantizada na peça O vento será tua herança (Inherit the Wind), escrita por Jerome Lawrence e Robert Edwin Lee e que estreou na Broadway em 1955. Em 1960, a peça virou um filme de mesmo nome nas mãos do diretor Stanley Kramer.

Entre meados do século 19 e meados do século 20, a ideia de que o princípio darwinista da seleção natural deveria ser diretamente transposto para a esfera da política e da sociedade, com uma função reformadora, era moeda corrente entre o público letrado

As versões da Broadway e de Hollywood serviram para difundir um retrato tipicamente iluminista da história, como se tudo não fora mais que uma batalha entre o obscurantismo religioso e as luzes da ciência. O script da peça passou a ser adotado como descrição real dos eventos, e o filme chegou a ser exibido em aulas de História em diversas escolas norte-americanas, difundindo entre os alunos o mito de uma vitória moral da razão sobre a fé, numa espécie de reedição do julgamento de Galileu Galilei.

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O caso tornou-se emblemático muito por conta da participação de duas grandes personalidades nacionais da época. Na verdade, três. As duas primeiras foram o advogado criminalista Clarence Darrow, um agnóstico, pelo lado da defesa; e o advogado aposentado, ex-candidato à presidência da República e ex-secretário de Estado William Jennings Bryan, um cristão combativo, pelo lado da acusação.

A notícia da participação de Darrow e Bryan fez da pequena cidade de Dayton, até então isolada e perdida no meio das montanhas Cumberland, um verdadeiro circo midiático. O Julgamento do Macaco foi o primeiro da história norte-americana a ser transmitido ao vivo pelo rádio, transmissão que ficou a cargo de uma rádio de Chicago, a WGN. No sufocante verão de 1925, centenas de turistas, incluindo repórteres, cronistas, advogados e curiosos, lotaram as ruas da cidade e apinharam-se no Hotel Acqua, então o único grande hotel de Dayton. Por toda a parte, foram montadas barracas de cachorro-quente e limonada. Souvenires também eram vendidos, como bíblias e macacos de pelúcia. Enquanto durou o julgamento, Joe Mendi, um elegante chimpanzé proveniente de Nova York, trajando colete, terno e chapéu, era visto na cidade de mãos dadas com sua tratadora.

A terceira personalidade a influenciar na repercussão do caso foi o jornalista, escritor e crítico literário Henry Louis Mencken, do Baltimore Sun, pioneiro na construção da mitologia em torno do caso Scopes. O ateu H. L. Mencken, admirador de Voltaire e Diderot, grande divulgador de Nietzsche para o público americano, foi quem cunhou e ajudou a difundir o epíteto “Julgamento do Macaco”. Foi quem, sobretudo, primeiro retratou o caso como uma batalha épica entre a religião e a ciência, encarnadas, respectivamente, nas figuras titânicas de Bryan e Darrow. Graças à sua ágil máquina de escrever, a opinião pública viu a alma da América, como nos tempos de Abraham Lincoln, cindir-se novamente em duas metades, cada qual representada por Bryan e Darrow, numa verdadeira guerra de secessão ideológica. A metade de Bryan era o “deep South”, rural, conservador, religioso e patriota; a de Darrow, o norte industrializado, urbano, progressista, secular e europeizado.

Mencken, é claro, pertencia à metade de Darrow, tendo sido extremamente mordaz em suas críticas ao universo sulista, que costumava chamar de “um deserto cultural”. Era um iluminista, que acreditava piamente na existência de um abismo intransponível entre uma minoria de homens educados e cultos como ele, membros de uma restrita elite intelectual, e a grande massa de pessoas comuns, ignorantes e brutalizadas, que compunham o grosso da humanidade. Uma de suas primeiras crônicas sobre o caso, denunciando o “atraso” da mentalidade sulista, tinha o significativo título de Homo Neanderthalensis.

William Jennings Bryan tinha bons motivos para se preocupar com o tipo de evolucionismo que estava sendo transmitido aos alunos norte-americanos na época

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Seus textos sobre W. J. Bryan eram particularmente cruéis, e nem mesmo a morte deste, ocorrida cinco dias após o fim do julgamento, fez com que abrandasse o tom. Em 27 de junho de 1925, por exemplo, dia seguinte ao falecimento, Mencken publicava no Baltimore Sun um dos necrológios mais ácidos de que se tem notícia:

“Bryan foi um homem comum e vulgar, um grosseirão em estado puro. Era ignorante, fanático, egocêntrico, histriônico e desonesto. Sua carreira permitiu-lhe conhecer os grandes homens de seu tempo, mas ele preferiu a companhia dos rústicos e dos ignaros. Era difícil de acreditar, observando-o em Dayton, que tivesse viajado, sido recebido em sociedades civilizadas, ocupado altos cargos públicos. Parecia apenas mais um obtuso, como os que o cercavam, iludido por uma teologia infantil, prenhe de um ódio quase patológico pelo conhecimento, pela dignidade humana, por todas as coisas belas e nobres. Era um camponês lidando com seus montes de estrume. Imaginem um cavalheiro e terão imaginado tudo o que ele não foi.”

Graças à cobertura nada imparcial de Mencken e demais jornalistas (a maioria dos quais provenientes de grandes centros urbanos como Chicago e Nova York), o julgamento foi retratado como uma vitória acachapante de Darrow sobre Bryan. Na realidade, contudo, nem o primeiro era o gênio iluminista que teria reduzido a visão religiosa a pó, nem o segundo, um fanático opositor da ciência e da razão. Como se depreende do conteúdo do livro usado por Scopes, e das opiniões intelectuais que vimos até aqui, Bryan tinha bons motivos para se preocupar com o tipo de evolucionismo que estava sendo transmitido aos alunos norte-americanos na época. E será esse o tema do próximo artigo.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]