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“O remédio inventado por Lenin e Trotsky, a total supressão da democracia, é pior do que o mal que pretendia curar.”
A opinião acima não foi expressa por nenhum conservador anticomunista, nem, tampouco, por algum dissidente da Cortina de Ferro. Sua autoria é de Rosa Luxemburgo, na célebre crítica que dirigiu ao golpe bolchevique de outubro de 1917, segundo ela uma traição ao verdadeiro espírito revolucionário de fevereiro.
A fundadora do Partido Comunista da Alemanha não estava sozinha. Dentro da própria esquerda socialista, houve na época quem percebesse o perigo da centralização de poder inerente ao projeto bolchevique. Como se sabe, os desdobramentos subsequentes deram-lhes razão. O pretenso remédio bolchevique era, em verdade, o mais poderoso dos venenos. Como na profecia de Fátima, que comemorou o centenário junto com a revolução sangrenta, a Rússia de fato “espalhou os seus erros pelo mundo”.
Os regimes comunista e nazista assassinaram, juntos, cerca de 120 milhões de pessoas em pouco mais de 50 anos. Desse total, os regimes soviético e chinês são, sozinhos, responsáveis diretos por cerca de 97 milhões, ou mais de 80%
Segundo o estudo estatístico do cientista político R. J. Rummel, autor de Death by Government: Genocide and Mass Murder Since 1900, os regimes comunista e nazista assassinaram, juntos, cerca de 120 milhões de pessoas, isso em pouco mais de 50 anos. Mas, por incrível que possa parecer, a contribuição dos nazistas para essa macabra estatística de democídio (termo cunhado pelo autor para qualificar o extermínio perpetrado por governos contra o seu próprio povo) é até modesta se comparada aos feitos dos regimes comunistas liderados por tipos como Stalin, Mao Tse-tung, Pol Pot et caterva. Daquele total de mortos, os regimes soviético e chinês são, sozinhos, responsáveis diretos por cerca de 97 milhões, ou mais de 80%. Confiram na tabela abaixo, extraída do livro de Rummel.
É, pois, espantoso que, passados 100 anos da revolução destinada a promover a maior carnificina da história, uma parcela considerável das nossas classes falante e política continue a celebrá-la como grande feito humanista, um evento que, apesar de haver “degenerado” em totalitarismo, teria sido, na origem e em essência, historicamente positivo. A revolução fora boa, Stalin é que a corrompera – eis o cerne da interpretação contemporânea, que tem orientado a abordagem da nossa intelligentsia sobre o tema.
Notadamente perturbadora é a mistificação em torno da figura de Lenin, tomado como símbolo de uma pureza originária do projeto bolchevique, e apresentado ao público em cores heroicas, como alguém corajoso e disposto a arriscar a vida em nome da causa proletária. Pura fake news!
Ora, Lenin foi o grande arquiteto da ditadura bolchevique (que Stalin apenas aprimoraria) e idealizador dos gulags. Como observa Vladimir Tismaneanu em O Diabo na História: “Lenin não foi apenas o fundador da propaganda política, o sacerdote supremo de uma nova eclesiologia do partido infalível onisciente, mas também o demiurgo do sistema dos campos de concentração e o apóstolo do terror universal”.
Sobre a concepção original dos campos, Tismaneanu cita as palavras de Martin Latsis, um dos líderes da Cheka, a polícia política criada por Lenin em 1917: “Não estamos fazendo guerra contra pessoas individuais. Estamos exterminando a burguesia como classe. Durante a investigação, não procuramos provas de que o acusado agiu em atos ou palavras contra o poder soviético. As primeiras perguntas que tens de fazer são: a que classe pertence ele? Qual é a sua origem? Qual é a sua educação e profissão? E são estas perguntas que devem determinar a sorte do acusado”.
Compreende-se, em vista disso, por que a historiadora Anne Applebaum, premiada autora de Gulag: uma história dos campos de prisioneiros soviéticos, definiu os campos de concentração como “campos construídos para encarcerar pessoas não pelo que fizeram, mas pelo que eram”. Foi Lenin, não Stalin, o mentor dessa excrescência moral.
Tampouco a suposta coragem do camarada Vladimir é algo mais que mistificação. Para descobri-lo, basta consultar as fontes primárias, tal como o depoimento de Nikolai Valentinov, companheiro de Lenin durante o período de exílio na Suíça. Certa feita, Valentinov descreveu a covardia do homem em face de riscos físicos: “[Lenin] jamais ia para as ruas lutar nas barricadas, ou para a linha de frente. Achava que essa era uma função de pessoas mais humildes. Chegava a fugir precipitadamente de encontros de exilados se achasse que a coisa terminaria em briga. Sua regra, em suas próprias palavras, era ‘sair enquanto tudo estava bem’, ou seja, antes de qualquer perigo. Durante sua estada em Petersburgo entre 1905 e 1906, exagerava tanto sobre os riscos à sua integridade física, e ficava tão ansioso por se autopreservar, que éramos levados a questionar se não se tratava apenas de um caso de falta de coragem pessoal” (citado por Orlando Figes em A Tragédia de um Povo).
Lenin era também um estranho em sua terra natal. Depois de tantos anos de exílio, a maioria dos trabalhadores que o foram receber na Estação Finlândia em 3 de abril de 1917 (muitos apenas pela expectativa de cerveja grátis) jamais o havia visto pessoalmente. E o desconhecimento era recíproco. Entre julho e outubro daquele ano, Lenin não fez sequer uma única aparição pública, e mal pôs os pés nas províncias. O homem que viria a se tornar o ditador da Rússia não tinha o menor conhecimento sobre o modo de vida do povo que, pretensamente, deveria libertar. Com a exceção de dois anos trabalhando como advogado, jamais teve emprego fixo. Não era um trabalhador, mas um revolucionário profissional, vivendo apartado da sociedade, às custas do fundo partidário e do patrimônio de sua mãe.
Segundo Máximo Gorki, outrora seu amigo pessoal, foi a ignorância de Lenin quanto ao trabalho cotidiano que fomentou nele um “impiedoso desprezo, digno de um nobre, pelas vidas do homem comum”. E Gorki disse mais: “A vida em toda a sua complexidade é desconhecida de Lenin. Ele nada sabe da população ordinária. Jamais viveu em seu meio”.
Os trabalhadores não tardaram a notar que, feita em seu nome, a revolução consagrara uma pequena elite burocratizada no poder, poder que não cansou de ser usado contra eles próprios
Pois foi esse homem elitista, alienado e ignorante quanto ao dia a dia do povo russo o líder da “ditadura do proletariado”, que, logo ficaria claro aos seus pretensos beneficiados, era na verdade a ditadura do partido bolchevique. Os trabalhadores não tardaram a notar que, feita em seu nome, a revolução consagrara uma pequena elite burocratizada no poder, poder que não cansou de ser usado contra eles próprios. Afinal, se o conceito “científico” de ditadura usado por Lenin significava, em sua própria definição, “uma autoridade insubmissa a quaisquer leis, e baseada diretamente na força”, era inevitável que, mais cedo ou mais tarde, os trabalhadores russos viessem a se tornar suas vítimas.
De fato, o Grande Terror stalinista não caiu como um raio em céu azul. Em 1919, Lenin já afirmara: “Não reconhecemos qualquer liberdade, igualdade ou democracia trabalhista que se oponham aos interesses de emancipar o trabalho da opressão do capital”. A revolução fora feita em nome da classe trabalhadora, mas não demorou para que a vanguarda do partido a considerasse indigna de confiança. A “violência revolucionária”, dizia ainda o ditador bolchevique, devia voltar-se também “contra os elementos vacilantes e rebeldes das próprias massas de trabalhadores”.
Dito e feito. Em 1921, já estava claro que a maior parte dos trabalhadores russos se opunha ao partido. Karl Radek, discursando para cadetes do Exército, admitiu-o com todas as letras: “O partido é a vanguarda politicamente consciente da classe trabalhadora. Estamos agora num momento em que os trabalhadores, no limite de sua resistência, se recusam a seguir a vanguarda que os conduz à batalha e ao sacrifício... Devemos nos render aos clamores dos proletários que atingiram o limite de sua paciência, mas que não compreendem seus reais interesses como nós compreendemos? Seu estado mental é, no presente, francamente reacionário”.
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Reacionário – essa a palavrinha mágica que permitia ao revolucionário comunista eliminar seus adversários externos ou internos com a consciência tranquila. Os camponeses, os famigerados kulaks, foram os primeiros a entrar na alça de mira. Se os campos soviéticos haviam sido designados inicialmente para punir os inimigos do Exército Vermelho e os ex-oficiais czaristas relutantes em aderir à revolução, logo passaram a servir para a detenção de camponeses inconformados com a política bolchevique de confisco de grãos, uma prática que, entre os anos de 1932 e 1933, já com Stalin, resultou na morte por inanição de milhões de ucranianos, na tragédia que ficou conhecida como Holodomor ou A Grande Fome. Estima-se que, por volta de 1921, cerca de 80% dos detentos nos campos de concentração soviéticos fossem de camponeses.
Diante desse quadro, é ao mesmo tempo triste e instrutivo ler o relato que um camponês russo, ainda inebriado com os acontecimentos de fevereiro e a abdicação do czar Nicolau II, fez do clima de esperança em sua aldeia, onde os sinos badalaram celebrando a aurora de uma nova era: “As pessoas se beijavam de alegria, dizendo que, dali em diante, a vida seria boa. Todos vestiram suas melhores roupas, como o faziam nos feriados. As festividades duraram três dias”.
Mal sabia o pobre que festejava a sua própria tragédia, “a tragédia de um povo” – como no título da obra-prima historiográfica de Orlando Figes –, e que logo viria a ser a tragédia de todos nós...
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos