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Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil| Foto:

“Uma massa de palavras latinas cai sobre os fatos como flocos de neve, apagando os contornos e recobrindo todos os detalhes. A insinceridade é a grande inimiga da linguagem clara.” (George Orwell, A Política e a Língua Inglesa)

A corrupção da linguagem, seu manuseio como exercício de poder antes que como meio de comunicação, é fenômeno tão antigo quanto a própria filosofia. Platão foi o primeiro a diagnosticá-lo, em sua batalha perpétua contra os sofistas, mestres na arte de torcer as palavras e, empoando-as em retórica, afastá-las de todo contato com a verdade. E se, por um lado, continuamos, mais de 2,5 mil anos depois, nos movendo intelectualmente num quadro de referência estabelecido pelo fundador da Academia, é fato que, por outro, restou inconclusa aquela sua batalha. Como algures alertou Hegel: “Os sofistas não nos são tão extemporâneos como poderíamos supor”.

Sim, sob um sem número de novos nomes (pragmatismo, construtivismo, relativismo etc.), e a despeito de todo o esforço platônico, a patologia sofista sobreviveu entre nós. Em certos ambientes, aliás, é considerada a última moda, ali onde o método socrático é tido por ultrapassado. Convém, então, recordar: por que Platão investiu com tamanha energia contra os sofistas? Qual era exatamente a natureza do mal que neles enxergou? O que de essencial na natureza humana teria sido por eles corrompido?

Tudo começa, como já dissemos, na corrupção da linguagem. O mal sofista diz respeito, antes de tudo, a um uso particularmente nocivo e insidioso da palavra, que garantia aos seus expoentes prestígio social e sucesso financeiro (pois havia na Atenas da época, como há no Brasil de hoje, uma elite econômica sempre pronta a gastar rios de dinheiro para ser engabelada). Em seu ensaio Abuso da Linguagem, Abuso do Poder, o filósofo Josef Pieper (1904-1997) abordou esse aspecto com raros brilhantismo e concisão.

Diz Pieper que a ameaça representada pelos sofistas advém de seu modo de cultivar as palavras com excepcional atenção aos aspectos formais e puramente estéticos, transformando a linguagem num domínio especializado à parte, e não, como concebida por Platão, o meio comum pelo qual o espírito humano se manifesta.

Para o filósofo, a linguagem humana têm duas características essenciais. Em primeiro lugar, ela comunica a realidade. Quando falamos, queremos nomear e identificar algo que é real, e cuja existência transcende o domínio da palavra, não tendo sido criado por ela. Em segundo lugar, essa realidade da qual falamos deve ser comunicada a alguém, o que nos leva à segunda característica da linguagem, o fato de ser essencialmente interpessoal. E, se Platão escolheu o gênero diálogo para expor o seu pensamento, decerto não o fez por acaso, mas sim para reforçar, mediante a forma mesma, aquilo que afirma o conteúdo.

Aquelas duas características da linguagem humana – que, seguindo a célebre formulação do filósofo Martin Buber (1878-1965), poderíamos glosar mediante os pares Eu-Isso e Eu-Tu – são o alvo preferencial do ácido sofístico, que corrói, precisamente, a relação das palavras com o real e a sua essência comunicativa. É para esse potencial corrosivo que, nos diálogos platônicos, Sócrates está o tempo todo chamando a atenção do leitor.

Para o sofista, a linguagem não guarda relação necessária com o real, sendo, ao contrário, concebida como um sistema fechado em si mesmo, ou seja, como fundamentalmente retórica. Em vez de atentar para o que dizer, o sofista está preocupado exclusivamente em como dizer. “A retórica não deve conhecer como as coisas são em si mesmas”, explica Sócrates no Górgias (459c), “mas descobrir algum mecanismo persuasivo de modo a parecer, aos ignorantes, conhecer mais do que aquele que tem conhecimento”.

Em dispensando o referente, por consequência, a retórica do sofista impossibilita o diálogo. A oposição entre diálogo e retórica, ou entre o discurso do filósofo e o discurso do sofista (ou filódoxo, segundo o vocábulo platônico recuperado por Eric Voegelin), é recorrente na fala de Sócrates, sobretudo no já citado Górgias (ver 448c). Ressalve-se que a crítica de Platão não tem por objeto o cuidado formal com a palavra em si mesmo (sendo o próprio Platão, aliás, um exímio estilista), mas sim o potencial que tem esse formalismo excessivo de adornar e embelezar algo que, em última análise, pode ser falso ou, pior ainda, nocivo.

Em particular, Platão preocupa-se com a passagem do diálogo ao monólogo, da palavra a serviço da verdade para a palavra a serviço de um poder tirânico. Porque, no fim das contas, o fetiche sofístico pela perfeição formal, sua paixão estetista pelo dom sedutor da palavra, oculta algo bem menos inocente: o desejo de comandar o interlocutor, que, de sujeito numa conversa entre iguais, torna-se objeto da vontade de poder do sofista. E é precisamente isso que Sócrates leva Górgias a confessar, ao lhe perguntar sobre o bem específico gerado por sua arte (ou seja, a retórica), ao que o vaidoso sofista responde: “Aquele que é, Sócrates, verdadeiramente o maior bem e a causa simultânea de liberdade para os próprios homens e, para cada um deles, de domínio sobre os outros na sua própria cidade” (Górgias, 452d).

A linguagem humana, como dissemos no início, é interpessoal. Mais do que isso, em Platão ela é intersubjetiva ou, melhor dizendo, diádica: dá-se, necessariamente, entre dois sujeitos individualmente considerados (no caso, o filósofo e o seu interlocutor). Diz Sócrates: “Eu sei como apresentar uma única testemunha do que digo, aquela com a qual eu discuto, mas dispenso a maioria, e sei como dar a pauta da votação a uma única pessoa, mas não dialogo com muitos” (474a).

A palavra do filódoxo, ao contrário, dirige-se sempre a uma audiência coletiva, sobre a qual procura exercer o seu poder de persuasão. É o que explica Górgias, naquele estilo cabotino tão típico dos sofistas: “O retor é capaz de falar contra todos e a respeito de tudo, de modo a ser mais persuasivo em meio à multidão” (457b). Ou em meio a ignorantes, responde Sócrates (459a).

Essa é uma das características que leva Platão a concluir que a retórica, para ele mera técnica “de produção de graça e prazer” (Górgias, 462c), é uma perversão da comunicação, bem como a tirania é uma perversão da política. A retórica, diz o filósofo, é um simulacro de uma parte da política, e a sua matéria-prima é a lisonja (463b).

Em que consiste a lisonja, no sentido especificamente socrático? Não se trata apenas de dizer o que o interlocutor quer ouvir, de lhe atiçar a vaidade mediante palavras elogiosas, mas de se dirigir a ele com o único intuito de extrair-lhe alguma coisa. Para o sofista que fala, o ouvinte deixa de ser uma pessoa, convertendo-se em presa. Quando o ouvinte imagina estar sendo tratado com grande respeito e deferência, está, em verdade, sendo objetificado e desumanizado, posto a serviço dos propósitos do falante. Trata-se de um discurso em que a dignidade do ouvinte é completamente desprezada, em que o objetivo não é a comunicação, mas a manipulação. Já não há qualquer diálogo, mas domínio e submissão. E é nesse ponto que o abuso sofístico da palavra prepara o terreno para o abuso tirânico do poder político. Toda patologia política (culminando em perseguição, tortura, campos de concentração etc.) começa com uma patologia da linguagem.

Não pude deixar de lembrar da caracterização platônica da corrupção sofística da linguagem ao assistir, no último dia 22, à sessão no STF que culminou no salvo-conduto a Luiz Inácio Lula da Silva, corrupto condenado em duas instâncias. Não é por acaso que o sofista Górgias tenha apontado os tribunais como terreno fértil para a sua retórica (Górgias, 454b).

Nosso STF é uma espécie de cidadela dos sofistas, onde ministros vaidosos e cheios de pompa, espíritos rotos sob vistosas capas pretas, empregam uma retórica toda feita de lisonjas, autobajulação, salamaleques e rapapés. Recorrem a um palavreado rococó, que o saudoso poeta Bruno Tolentino decerto definiria como “penteadeira de velha”. E não me refiro aqui ao vocabulário técnico do direito, cuja inacessibilidade a uma audiência leiga pode-se até compreender. Falo dos diversos momentos em que os ministros não estão sendo técnicos, mas proferindo amenidades, congratulando-se mutuamente ou tecendo considerações de caráter geral. É nessas horas que esses proxenetas da palavra parecem trair o propósito último de sua retórica: diante dos olhos de uma nação perplexa, ocultar chicanas e tramoias jurídicas a fim de proteger os poderosos do turno.

Como escreveu o filólogo judeu Viktor Klemperer em seu estudo sobre a Linguagem do Terceiro Reich: “Palavras podem ser como minúsculas doses de arsênico: são engolidas de maneira despercebida e parecem ser inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se faz notar”. Hoje, a Justiça brasileira acha-se mortalmente intoxicada pelo veneno retórico da suprema corte.

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