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“A despeito das proporções que esses crimes finalmente atingiram, ficou evidente que eles partiram de pequenos começos. De início, esses começos consistiram numa mera mudança de ênfase nas atitudes básicas dos médicos. Começou com a aceitação da premissa, fundamental ao movimento pró-eutanásia, de que há vidas indignas de serem vividas. Em seus estágios iniciais, essa atitude dizia respeito apenas aos doentes graves e crônicos. Gradativamente, ampliou-se a esfera dos que deveriam ser incluídos nessa categoria, passando a abarcar os socialmente improdutivos, os ideologicamente indesejáveis, os racialmente desprezíveis e, por fim, todos os não alemães.” (Dr. Leo Alexander, investigador nos Julgamentos de Nuremberg e um dos maiores especialistas nos aspectos médicos do Holocausto, The New England Journal of Medicine, 1949)
Depois que Rosa Weber proferiu o seu voto favorável à legalização do aborto, no contexto do julgamento da ADPF 442 no STF, o agora presidente da casa, Luís Roberto Barroso, suspendeu a votação com o argumento de que o tema “ainda não está maduro” para ser debatido. Demonstrando toda a sua condescendência, qualificou o aborto como uma questão delicada, “porque envolve sentimentos religiosos respeitáveis”. Mas, levando-se em conta o fato de que Barroso já se declarou várias vezes favorável à legalização do aborto, e de que, dentre todos os ministros da corte, ele é quem menos esconde o seu ativismo judicial, podemos supor tratar-se aí de um recuo estratégico.
Alheio ao aspecto cômico e quase quixotesco dessa extemporânea autoidentificação, Barroso costuma apresentar-se como um iluminista orgulhoso, como alguém que, por haver cruzado em primeiro a linha de chegada na maratona humana rumo ao progresso, é capaz de estender um olhar de enternecida compaixão aos retardatários. E nesse sentido, de fato, parece que sua concepção de sociedade é similar às de Diderot – para quem “a massa genérica de homens não foi feita para promover, e sequer compreender, essa marcha progressiva do espírito humano” – e Voltaire, segundo quem os sábios iluministas jamais tiveram “a pretensão de levar as luzes a sapateiros e serviçais”, sendo esse “um trabalho para os apóstolos”.
Sua prática, por outro lado, lembra a dos burocratas internacionais herdeiros do elitismo iluminista, conforme admitida certa vez por Jean-Claude Juncker, ex-presidente da Comissão Europeia: “Nós primeiro decidimos algo, e então lançamos a ideia, aguardando um pouco para ver o que acontece. Se não houver grandes rebeliões e gritos de protesto, porque a maioria das pessoas sequer entendeu o que foi decidido, nós vamos em frente – passo a passo, até não haver mais volta”. Como a legalização do aborto no Brasil é rejeitada por 70% da população, e uma vez que, tendo entendido perfeitamente o que estava sendo decidido, uma parcela dessa população organizou protestos contra o encaminhamento iniciado por Rosa Weber no caso da ADPF 442, Barroso julgou conveniente aguardar até que a sociedade fique mais “madura”. Leia-se: até que os estrategistas pró-aborto criem artimanhas mais eficazes ou que, alternativamente, a sociedade esteja menos capacitada a reagir.
Barroso costuma apresentar-se como um iluminista orgulhoso, como alguém que, por haver cruzado em primeiro a linha de chegada na maratona humana rumo ao progresso, é capaz de estender um olhar de enternecida compaixão aos retardatários
Como sei que Barroso vai tentar novamente? Porque o aborto é um dos itens fundamentais em seu projeto de “empurrar a história”, e a fundamentação teórica para o caso da ADPF 442 é essencialmente obra sua. Descobri-o há algumas semanas, lendo uma excelente análise da juíza dissidente Ludmila Lins Grilo. Postado em seu perfil no Locals, o comentário consiste numa especulação sobre os eventuais precedentes abertos pela referida ADPF, uma verdadeira Caixa de Pandora que, partindo da questão do aborto até a 12.ª semana, pode subsidiar toda sorte de aberração moral, incluindo o aborto até o nono mês, o infanticídio, a eutanásia e, eventualmente, até mesmo a eliminação física dos inválidos e dos inimigos do regime. Tudo isso com base numa relativização da ideia de dignidade da pessoa humana, e numa mal dissimulada recusa do princípio cristão da sacralidade da vida (sobre a qual já escrevi nesta coluna).
No texto, a juíza faz referência a um artigo de Luís Roberto Barroso intitulado “Aqui, lá, e todo lugar: a dignidade humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional”, cujo objetivo prático declarado é “contribuir para a estruturação do raciocínio jurídico e para a fundamentação das escolhas judiciais nos casos difíceis, tais como aborto, união homoafetiva e suicídio assistido”. No que diz respeito ao aborto, o argumento central de Barroso é estabelecer o que chama de “conteúdo mínimo da ideia de dignidade humana”, que seria composto por três elementos: 1. valor intrínseco; 2. autonomia; 3. valor comunitário. Pelo fato de que a dignidade humana da mulher abortista contém os três elementos, ao passo que a do feto contém apenas um deles – o “valor intrínseco” –, os interesses da mulher devem prevalecer sobre os do feto, que obviamente não possui autonomia, e cujo “valor comunitário” é menor que o da mãe. Como resume Grilo: “Barroso reconhece que ambos, mãe e feto, são humanos (ufa!), mas apresenta um argumento numérico para privilegiar a mãe em detrimento do feto. Ele diz que há apenas um argumento pró-vida e dois argumentos pró-mãe abortista, e, por isso, a mãe ganha! Não é um raciocínio magnífico?” E a juíza conclui sobre a ADPF:
“A ADPF 442 é o movimento da Janela de Overton para a esquerda, que não parará de se movimentar até atingir os fins não confessados. Perceba que a tese fala que, para haver dignidade constitucional, o humano nascido deve ter autonomia (autodeterminação). Assim, por essa tese, um inválido, entrevado em uma cama em estado vegetativo, não consegue se autodeterminar. Ao contrário: ele dá trabalho aos outros, não produz nada, precisa de alguém que lhe coloque comida na boca, dê-lhe banho e lhe limpe as partes. Por essa teoria sinistra, esse inválido perdeu o status de pessoa constitucional e a dignidade para existir. Consequentemente, perdeu o direito à vida.”
Tomando conhecimento dessa excêntrica matemática utilitarista, lembrei-me de que Barroso já abordara o assunto de maneira similar, de modo que a imagem de uma disputa entre a mãe e o seu filho em vias de ser abortado parece ser contumaz, talvez de forma subconsciente, na sua argumentação. Em palestra proferida no Rio de Janeiro em 3 de agosto de 2018, na qual defendia justamente a proposta de legalização do aborto até a 12.ª semana de gestação, Barroso apresentou uma justificativa alarmante. Respondendo a uma pergunta da então ativista pró-vida (e hoje deputada federal) Chris Tonietto, disse o magistrado: “Admitindo que haja vida – e, portanto, trabalhando sobre a sua premissa –, se você se mover, como eu me movo, por uma ética kantiana, e se a sua vida depende do sacrifício da minha liberdade individual, e eu não quero sacrificar minha liberdade individual, você perde”.
Comentando sobre a declaração, escrevi aqui na Gazeta:
“O mais perturbador da cena é a estranha sensação de que, embora num primeiro plano esteja se dirigindo à interlocutora da plateia, Barroso pareça mirar através desta, falando diretamente ao feto, receptor elíptico e silencioso da declaração: ‘Se a sua vida depende do sacrifício da minha liberdade individual’ – afirma desavergonhadamente o civilizadíssimo jurisconsulto, como que olhando diretamente nos olhos da futura vítima –, ‘você perde’. Perde o quê? A vida, bem entendido.”
Com efeito, essa mania de confrontar o feto com a matemática macabra de sua iminente derrota – que, no caso, significa a sua eliminação – parece-me bastante perturbadora. Mas é uma decorrência natural da visão utilitarista de Barroso (que, apesar de seu autodeclarado kantismo ético, deriva muito mais de Bentham que de Kant). O pulo do gato de sua ética está na ideia de hierarquização entre a dignidade pessoal da mãe e a do feto, com base na noção de “valor comunitário” da vida humana. Assim que topei com o argumento, fiquei com a sensação de já tê-lo visto antes. Com algum esforço de memória e consultas à minha biblioteca pessoal, encontrei a mesma ideia num contexto que, conquanto distinto, guarda incômodas similaridades com as racionalizações contemporâneas da bioética, usadas frequentemente (inclusive por Barroso) para relativizar a sacralidade da vida humana e, gradativamente, criar o clima de opinião favorável à aceitação do aborto, da eutanásia e até mesmo do infanticídio, práticas que implicam na eliminação de vidas consideradas de menor valor, ou – na clássica formulação de Binding e Hoche por mim discutida anteriormente – “indignas de serem vividas”.
Sim, eu já vira muitas vezes o argumento do “valor comunitário” em minhas pesquisas sobre a história do movimento eugenista. Encontrara-o, por exemplo, no livro The passing of the Great Race (“A passagem da Raça Superior”), escrito em 1916 pelo então presidente da Sociedade Zoológica de Nova York, o eugenista e darwinista Madison Grant. Na obra – cuja tradução para o alemão, aliás, constava na biblioteca de Hitler –, lê-se que:
“O respeito equivocado pelo que se acredita serem leis divinas e a crença sentimental na santidade da vida humana tendem a impedir tanto a eliminação de bebês defeituosos quanto a esterilização de adultos sem valor comunitário. As leis da natureza exigem a obliteração dos mal-adaptados, e a vida humana só tem valor quando é útil para a comunidade ou a raça”.
A imagem de uma disputa entre a mãe e o seu filho em vias de ser abortado parece ser contumaz, talvez de forma subconsciente, na argumentação de Barroso
Quando Grant escreveu The passing of the Great Race, a eugenia era provavelmente a ideia mais influente entre as elites intelectuais e científicas euroamericanas. E, embora nem todo eugenista fosse também abertamente racista como ele, todos partilhavam da mesma premissa: a ciência darwinista provocara uma verdadeira revolução nos campos da ética e da política, fornecendo uma nova perspectiva de reforma social que, até então, havia sido interditada pela moralidade tradicional (judaico-cristã), com sua valoração absoluta e igualitária da vida humana. Dos marxistas aos nazistas, passando pelos socialistas fabianos, todos queriam aplicar o darwinismo para o aprimoramento da espécie e o progresso da sociedade.
Sem compartilhar do entusiasmo dos da geração intelectual subsequente à sua, e antes pelo contrário, foi ninguém menos que Adam Sedgwick, mentor de Darwin em Cambridge, que anteviu as implicações filosóficas do darwinismo. Em carta enderaçada ao pupilo, escrevera ele em 24 de novembro de 1859, ano da publicação de A Origem das Espécies:
“Na natureza, há uma parte moral e metafísica, tanto quanto uma parte física. Um homem que nega isso chafurda no lamaçal da loucura. É a coroa e a glória da ciência orgânica o fato de ela, por meio da causa final, vincular o material à moral. Você ignorou essa ligação. E, se compreendi bem o seu sentido, esforçou-se para rompê-lo em um ou dois casos significativos. Mas, fosse possível rompê-lo (o que, graças a Deus, não é), creio que a humanidade sofreria um dano capaz de brutalizá-la, afundando a espécie humana num grau de degradação ao qual, em toda a sua história registrada, ela ainda não baixou.”
Sedgwick não teve de esperar muito para ver confirmados os seus temores. Na virada do século 19 para o 20, muitos darwinistas aplicaram o princípio da seleção natural às questões éticas, inclusive as relativas ao valor da vida humana. Robby Kossmann, por exemplo, um zoólogo alemão que se tornaria professor de Medicina, foi bastante sincero e representativo ao escrever num ensaio de 1880, intitulado A importância da vida de um indivíduo segundo a visão de mundo darwinista:
“A visão de mundo darwinista considera superestimada a presente concepção sentimental sobre o valor da vida de um indivíduo humano, que impede o progresso da humanidade. Assim como qualquer comunidade animal de indivíduos, também o Estado humano deve alcançar um grau cada vez maior de perfeição, se assim for possível, mediante a destruição dos indivíduos menos aptos, de modo a abrir espaço para que os mais aptos possam expandir a sua prole... O Estado deve ter como único interesse a preservação da vida mais excelente em detrimento da menos excelente.”
Repete-se, mais uma vez, o tema do maior ou menor valor comunitário de determinadas vidas humanas. Muito embora a linguagem tenha mudado, e as categorias de pessoas incluídas no grupo de “vidas indignas de serem vividas” já não sejam as mesmas (a princípio, pelo menos, o critério “racial” já não faz mais parte dessa discussão), a bioética contemporânea mantém a premissa fundamental segundo a qual a sacralidade da vida humana é um princípio ético ultrapassado, sendo válida – tanto do ponto de vista dos direitos individuais quanto da perspectiva do bem comum – a hierarquização entre as vidas humanas, sobretudo no campo da saúde pública. A ética absoluta da sacralidade da vida é substituída pela ética relativista da qualidade de vida. O agradável e o conveniente passam a ser confundidos com o certo.
Em 2014, por exemplo, o proeminente bioeticista canadense Udo Schuklenk – adepto da ética da qualidade de vida – defendeu que crianças doentes, cujas vidas fossem consideradas indignas de serem vividas, deveriam sofrer eutanásia: “Uma ética da qualidade de vida requer que nosso foco recaia sobre a presente e a futura qualidade de vida do recém-nascido como critério relevante para a tomada de decisões. Devemos fazer perguntas como: o bebê tem capacidade de desenvolvimento que lhe permitirá ter uma vida, antes que apenas sobreviver? Se a resposta for negativa, teremos razão em concluir que a sua vida não é digna de ser vivida”.
Assim como, um século antes, fizeram Binding e Hoche em Permissão para destruir a vida indigna de ser vivida, Schuklenk apela ao custo socioeconômico como justificativa para o infanticídio médico:
“Em circunstâncias como essas, emerge sempre a questão sobre se seria uma decisão sábia alocar recursos escassos de saúde necessários ao tratamento. Prolongar a atenção médica para a crianças seria fútil, consistindo num desperdício de recursos escassos. Os recursos de saúde devem ser alocados onde possam efetivamente beneficiar os pacientes e melhorar sua qualidade de vida.”
É à ideologia bioeticista que Barroso e outros magistrados de palanque têm recorrido para justificar as suas decisões em favor do aborto, da eutanásia, do suicídio assistido e demais itens da agenda desse macabro humanismo
Mas a coisa vem de longa data. Já em 1971, o editorial de um jornal californiano de medicina antecipava o que viria, ao afirmar, a exemplo dos darwinistas sociais de um século antes, que “a ética ocidental tradicional sempre pôs grande ênfase no valor intrínseco e igualitário de cada vida humana”. Essa “ética da sacralidade da vida”, continuava o editorial, tem sido “a base da maioria das nossas leis e das nossas políticas públicas, bem como a pedra angular da nossa medicina”. Resta que “essa tradução ética tem sido erodida em seu cerne, e pode eventualmente ser abandonada… Escolhas difíceis terão de ser feitas, escolhas que fatalmente violarão e destruirão a ética ocidental tradicional. Será necessário e aceitável atribuir um valor relativo antes que absoluto a coisas como a vida humana”.
Nota-se que, tanto quanto para os eugenistas e os darwinistas sociais, a ética dos bioeticistas contemporâneos também é utilitarista. Como escreve Anne Maclean em The Elimination of Morality: Reflections on utilitarianism and bioethics, “todos os principais bioeticistas esposam alguma versão de utilitarismo”. E tanto quanto os eugenistas, os bioeticistas contemporâneos também têm contribuído para a formação de um sistema de valores que pretere os doentes mais graves e os incapacitados, cujas vidas são tidas por “indignas”; que enxerga como um desperdício de dinheiro a manutenção de tratamento médico para essas pessoas; que, em última instância, aceita a sua morte – e, cada vez mais, até mesmo o seu assassinato – como resposta legítima às dificuldades causadas por sua doença ou deficiência.
A bioética segue hoje o mesmo caminho trilhado pela eugenia há mais de um século. Partindo de um secto acadêmico, espalha-se rapidamente pela intelligentsia de todo o mundo, desembocando num tipo de sociedade na qual o ato de matar se confunde com beneficência; o suicídio torna-se “racional”; a morte natural, quase uma imoralidade; e cuidar compassiva e adequadamente de idosos, prematuros, deficientes e doentes terminais é considerado um “fardo” calculado em custo financeiro e emocional. Tendo abandonado a ética da sacralidade da vida humana, que proclama o valor moral intrínseco de cada indivíduo, os bioeticistas estão construindo um ambiente no qual os direitos das pessoas serão baseados numa explícita hierarquização da vida humana.
De fato, ao rejeitarem a excepcionalidade da espécie humana na ordem das coisas, esses ideólogos afirmam que a qualidade de ser humano é algo relativo, e que, em termos morais, o que importa é o pertencimento a uma “comunidade moral”, um título conquistado mediante o cumprimento de certos requisitos – usualmente ligados a “um conteúdo mínimo” que inclui, prioritariamente, a autonomia e a autoconsciência –, os quais os bioeticistas consideram necessários para a aquisição das prerrogativas atribuídas à pessoa, incluindo aí o direito à vida. Como veremos com mais detalhes na semana que vem, é à ideologia bioeticista que Barroso e outros magistrados de palanque têm recorrido para justificar as suas decisões em favor do aborto, da eutanásia, do suicídio assistido e demais itens da agenda desse macabro humanismo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos