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Em 1989, ao cair em um buraco durante treinamento para uma corrida de obstáculos, Christine Gauthier sofreu lesões permanentes na coluna e nos joelhos, que a deixaram paraplégica. Ao longo de cinco anos, Gauthier pleiteou inutilmente junto ao Estado canadense para que fosse construída uma rampa de acesso a cadeirantes na entrada de sua casa, de modo a não ter de se arrastar para cima e para baixo nas escadas. No fim do ano passado, a veterana do Exército e ex-campeã paralímpica de canoagem foi surpreendida com a resposta dada por um assistente social do governo.
Dessa vez, não apenas o pedido era novamente negado, como a negativa vinha acompanhada de uma inusitada proposta. Já que, segundo o funcionário público, a vida da demandante tornara-se muito penosa naquelas condições, ela deveria se candidatar ao Medical Assistance in Dying (MAiD), um programa de suicídio assistido instituído pelo governo de Justin Trudeau em 2016. “Fiquei totalmente chocada e em desespero” – declarou Gauthier em entrevista à CTV News. “Não é nada justo o que estão fazendo: exaurindo-nos até um ponto de não retorno.”
Num artigo publicado na Quillette, revista on-line dedicada a discutir temas-tabu, a jornalista canadense Margaret Wente inclui o caso de Gauthier em sua análise sobre a evolução recente do MAiD, que tem afrouxado os requisitos originais de acesso e, assim, ampliado progressivamente o escopo do programa. Inicialmente voltado para pacientes em estado terminal, ele passou a incluir também indivíduos com Mal de Parkinson, esclerose múltipla e – de modo ainda mais perturbador – pessoas sem enfermidade física constatada, mas afligidas por doenças mentais (incluindo aí a depressão), dificuldades financeiras ou problemas de sociabilidade. Uma ampliação preocupante, na visão da autora e de parte da opinião pública canadense.
O MAiD tornou-se tão banalizado no Canadá a ponto de o governo ter financiado um livro infantil sobre suicídio assistido
Wente inicia o texto com um relato pessoal de quando, junto com o marido, aceitou ser testemunha no processo iniciado por um querido amigo do casal, que, na condição de doente terminal, reivindicava o direito ao suicídio assistido. “Concordamos sem hesitação” – relembra a jornalista. “A legislação que aprovou o MAiD fora concebida para casos como o dele. Ele estava morrendo de câncer e falência respiratória. Já não havia opções médicas, e o seu sofrimento era profundo. O fim estava perto. Com o MAiD, ele poderia optar entre ingerir medicamentos letais por conta própria ou tê-los administrados via intravenosa por um profissional de saúde. Tanto num caso quanto no outro, o resultado esperado seria o ingresso num estado de inconsciência do qual jamais sairia”.
Quando lançado em sua forma original, o MAiD teve ampla aprovação da população canadense. E a própria Wente faz questão de arrolar-se entre os entusiastas. “Afinal, acreditamos na autonomia pessoal”, escreve. “Não acreditamos em sofrimento desnecessário – incluindo o nosso próprio. Hoje, o Canadá é majoritariamente um país secular, avesso a ideais religiosos sobre a sacralidade de cada alma criada por Deus. De sorte que, quando o governo de Trudeau implementou o MAiD há sete anos, isso foi apresentado como uma vitória moral progressista sobre entraves médicos conservadores e retrógrados” (grifos meus).
Inicialmente, a elegibilidade ao programa restringia-se a cidadãos canadenses sujeitos a condições médicas “graves e irremediáveis”, para os quais, portanto, a morte natural tornara-se “razoavelmente previsível”. Os candidatos precisavam apresentar pareceres assinados independentemente por ao menos dois profissionais de saúde (médicos ou enfermeiros). Graças a mudanças legislativas recentes, todavia, a elegibilidade foi consideravelmente ampliada. Dentre essas mudanças, destaca-se a remoção, por parte do governo, da exigência de que a morte natural dos candidatos fosse “razoavelmente previsível”. Para os novos casos cobertos pelo MAiD, criou-se inclusive um rótulo específico: “non-RFND death” (“morte natural não razoavelmente previsível”). Agora, além de serem maiores de 18 anos e plenamente conscientes, tudo o que os requerentes precisam atestar é que possuem alguma “doença ou incapacidade séria e incurável”, e que estão experimentando alguma forma de sofrimento “permanente e intolerável”. Ou seja, os critérios tornaram-se vagos, subjetivos e discricionários.
De acordo com Madeline Li, psiquiatra especialista em cuidados paliativos para pacientes com câncer em estado terminal, o afrouxamento de critérios tem gerado a expectativa de acesso ao MAiD em pessoas simplesmente “cansadas de viver”. “Estive muito confortável com o MAiD quando voltado a pessoas que estão morrendo. Mas sinto-me menos confortável com essa expansão das indicações... Tornamos o MAiD tão aberto que, hoje, você pode requerê-lo por basicamente qualquer motivo”. Ademais, como informa Wente, os candidatos ao programa já nem precisam sair de casa para obter um parecer favorável. Basta uma consulta via Zoom ou Skype.
Pela lei canadense, os candidatos ao programa de suicídio assistido tornam-se automaticamente inaptos se estiverem sendo pressionados por terceiros. Mas, como mostra Wente, parece haver muita gente dentro do Estado disposta a ignorar o impeditivo. O caso de Christine Gauthier está longe de ser isolado. Segundo a jornalista, o MAiD tornou-se tão banalizado no Canadá a ponto de o governo ter financiado um livro infantil sobre suicídio assistido, e uma grande loja de roupas haver publicado uma propaganda retratando o suicídio assistido como forma de autorrealização.
“As implicações de afrouxar os requisitos para o MAiD assustam-me profundamente” – conclui Wente. “Assim como o resto do mundo, o Canadá está repleto de pessoas tristes, isoladas ou mal adaptadas. Mais cedo ou mais tarde, eu e você podemos nos juntar a esse rol (se é que você já não está nele), assim como muitas das pessoas que amamos. Obviamente, queremos ter controle sobre o nosso destino. Mas há algo perturbadoramente controlador nessa tentativa de expandir o alcance dessa forma macabra (para muitos) de terapia médica. Queremos mesmo ser tratados – e tratar os outros – como se os humanos fossem dispensáveis?”
Seguiremos daí, da pergunta fundamental feita pela jornalista, no artigo da semana que vem.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos