Às vezes rio sozinho quando lembro a primeira vez que topei com o fantasma do Nélson Rodrigues. Estava eu almoçando na Leiteria Mineira, ali no centro do Rio, quando o Nélson se sentou à mesa vizinha e, não sei bem por que cargas d’água (talvez tenha sido o aroma do strogonoff que o garçom acabara de pousar à minha frente), resolveu puxar conversa. Apenas parcialmente refeito do susto que por pouco não me derruba da cadeira, só consegui recordar-me do que disse Hamlet à primeira vista do fantasma de seu pai, palavras que repeti ali, diante do meu próprio fantasma:
“Por que teus bentos ossos encerrados no ataúde romperam os selos; por que te levantaste do túmulo em que te havíamos depositado; por que se ergueu a lápide sepulcral para te lançar a este mundo? Por quê? Com que fim? Que exiges?”
"Shhhhhhhhh. Favor falar mais baixo, jovem, que os clientes já te estranham", rogou Nélson com o indicador sobre os lábios, "e não se dê tais ares de importância que isso não te cai bem!"
"Desculpe-me", respondi encabulado, mudando subitamente de tom. "É que jamais havia visto... bem, o senhor compreende... É o meu primeiro fantasma."
"Então, sabes quem sou?", perguntou o espectro, já se levantando e vindo para a minha mesa.
"Sim, é claro, o senhor é o grande Nélson Rodrigues, aquele escritor que gostava de falar de sacanagem, não é isso? Vi tuas histórias no Fantástico…"
Sentado à minha frente, olhava-me com olhos úmidos, tomados pela catarata (e eu não sabia que fantasmas também sofriam dessa condição). Sua expressão trazia um curioso misto de zombaria e súplica. Notei-o pousando frequentemente a mão sobre o lado esquerdo da barriga, com um laivo de desconforto no semblante. Puxou um cigarro e estava prestes a acendê-lo quando, constrangido, senti-me impelido a alertar: "O ambiente é fechado, com ar-condicionado. Temo que não seja permitido fumar aqui dentro."
"Homessa! O que aconteceu por aqui na minha ausência?", perguntou horrorizado, e ainda mais ao notar a imagem de uma perna gangrenada no verso do maço. "O Ministério da Saúde adverte? Isso não é uma advertência, é um estupro visual. Haja intimidade!"
E acendeu o cigarro, ignorando o alerta.
"Pois é, senhor Nélson. Acho que as coisas andam um pouco diferentes desde que o senhor partiu", disse eu, já antevendo futuros mal-entendidos.
"Mas diga-me, jovem, se estás disposto a me ajudar numa coisinha. É que, com os afazeres lá em cima, há anos que não tenho chances de descer. Notei, aliás, que dessa vez a descida foi mais brusca. Logo senti doer-me a úlcera de medo (acreditas que a úlcera não cessa, mesmo estando eu nessa interessante condição?). Aliás [dirigiu-se ao garçom], aceitaria de bom grado um copo de leite, que acalmaria as danações da úlcera." E, voltando a mim: "o calor, ao menos, parece ser o mesmo. Lembro-me de minhas vizinhas da Rua Alegre, todas fatalmente gordas, como sói serem as vizinhas, abanando-se nas janelas. Na minha infância, aliás, tudo eram janelas. Não via casas, só janelas. E nessas, gordas arfantes em flor. Com seis anos, apaixonei-me perdidamente por uma delas, a Lili, nome tão antigo quanto Odete. Antes, a cidade inteira povoava-se de Lilis e Odetes. Hoje já não as há... Mas divago. Eis o que eu queria dizer: ajuda-me ou não?"
"Se estiver à minha altura, senhor Nélson."
"Só 'Nélson' está bem."
"Sim, senhor Nélson."
Fomos interrompidos pelo garçom, que trouxe prontamente o copo de leite, e a quem Nélson Rodrigues dirigiu o seguinte comentário, apontando para a própria barriga: "Isso deve dar jeito na úlcera."
E, voltando-se novamente para mim: "Pois então, o que eu quero saber tem a ver com o meu legado. E ora começo a perceber que o teu Hamlet talvez tenha sido até oportuno. Hoje mais cedo, mal acabara de chegar e tentei puxar conversa com dois jovens, que por algum motivo não me ouviram nem enxergaram. Por sorte, você, além do nosso querido garçom, me viu e... Bem, cá estamos."
Perscrutou-me os olhos, deu dois tragos seguidos no cigarro e continuou:
"Acontece que, lá em cima, o Otto... Não sei se o conheces... Enfim, o Otto andava me perturbando com uma conversa de que, quando aqui embaixo, eu não soubera me explicar, e que me estavam distorcendo por completo. Fiquei preocupado... A última vez que vi o Otto assumir tal gravidade foi no velório do Rosa, que ele chamava de João Guimarães Rosa (nome, aliás, que, assim por extenso, sempre me soou falso, pois Guimarães Rosa é apenas Guimarães Rosa, sendo aquele “João” nada menos que um estrangeiro ali). Pois bem. Fiquei matutando: Pinoia! E se o Otto está com a razão? Pois então, o que eu queria saber é: quem sou eu para o Brasil dos vivos? O que andam fazendo comigo por aqui?"
"Bem, senhor Nélson, não sei se sou a pessoa certa para responder..."
"Sinto-me tão distante dos vivos", interrompeu-me, "como se nunca os conhecera".
Calei-me e ele prosseguiu, erguendo ligeiramente os olhos para o teto.
"Creio já ter dito alhures que a morte foi para mim, desde menino, um assunto fascinante. Tinha uma antologia de mortos na cabeça, sendo que um dos primeiros foi o Pinheiro Machado... Naquele Rio das belas escarradeiras em forma de flor, das tosses intermináveis e pigarros fleumáticos (dos quais o meu amigo João Saldanha foi um dos últimos e dignos representantes), a morte de Pinheiro Machado foi um verdadeiro assunto. Não eram poucos os que o queriam matar (desconfio que o próprio Rui Barbosa fosse um deles, desde que Machado lhe jogara na cara aquela coisa da Guerra do Paraguai)... E, depois, claro, o maior dos mortos, o morto por excelência, o meu irmão, eterno assassinado. De modo que me sinto em casa entre os mortos... Mas fujo do assunto novamente. Então, o que me diz? Conta-me, conta-me. Passou-se tanto tempo..."
"De lá para cá, senhor Nélson..."
"Apenas Nélson. Aceita um cigarro?"
Aceitei.
"De lá para cá, Nélson, muita coisa mudou. Por exemplo, a tua 'revolução dos idiotas'... Creio que ela se completou. Os idiotas tomaram o poder de vez. Dos caixotes passaram aos parlamentos, aos tribunais, às cátedras universitárias. Pode-se dizer que a revolução chegou à sua fase napoleônica."
Nélson riu.
"Havia já no meu tempo", disse, "uma debilidade mental difusa, volatizada, atmosférica. Todos agem e reagem como imbecis. Não que o fossem, absolutamente. Mas num mundo de débeis mentais, temos de imitá-los. Não sei se compreendes. Mas para viver, para sobreviver, para coexistir com os demais, o sujeito precisa ir ao fundo do quintal e lá enterrar todo o seu íntimo tesouro. Quis escrever, um dia, sobre a nova classe dos falsos cretinos."
O relógio na parede marcava 15h30. Naquele horário, o burburinho da hora do almoço já cessara, e a grande maioria dos clientes já havia retornado ao trabalho. Foi sorte, porque a fumaça do cigarro já enevoara o ambiente. Com poucos clientes restando, um grupo de garçons se queixava de falta de grana, e sonhava com empreendimentos mirabolantes. Aparentemente, só eu e o garçom que nos servia podíamos ver e ouvir o Nélson. Empolgado por aquilo que me pareceu ser um olhar aquiescente do meu nobre interlocutor, arrisquei:
"Pois hoje o senhor teria que escrever sobre cretinos verdadeiros. Ao que parece, a inteligência requerida para ser um falso cretino acabou faz tempo."
O cretino é um fingidor.
Finge assim, com tanto ardor,
Que sói parecer até
O asno que deveras é!
"Primeiro Shakespeare, agora Pessoa", debochou o Nélson. "Hoje os mortos hão de te puxar o pé."
Notando meu embaraço, continuou, com ares paternais.
"Veja você que, quando eu era criança, achava-me assaz ridículo. Era miúdo e cabeçudo como um anão do Velázquez. Na escola, na hora da merenda, tentei por vezes reerguer minha autoestima com a banana que levava de casa, e que comia lentamente, às vezes chupando-a primeiro, como a um chicabon. Olhava para os outros garotos como se dissesse: 'Eu tenho uma banana. Estou comendo uma banana'. Mas o meu amor próprio durou somente até o dia em que reparei no lanche das outras crianças, melhores e mais bem embrulhados que o meu. Lembro-me de que uma das minhas invejas mortais foi um garoto, já taludo (eu era miúdo e tinha vergonha da minha cabeça grande). Trouxe a merenda embrulhada em papel de pão e amarrada com barbante. Desfez o nó do barbante e abriu o papel... Então, eu a vi. Era um sanduíche de pão com ovo. Pão com ovo! O menino pôs-se a comer. A gema escorria-lhe da boca como uma baba amarela. Só percebi que tinha amadurecido na vida quando pude experimentar, na hora em que bem entendesse, aquela sensação da gema escorrendo pelo queixo. A gema mole é o esplendor do homem maduro, compreendes?"
"Er... Hum... Creio que sim, senhor Nélson", respondi enquanto mastigava o já excruciante strogonoff.
"Mas você começava a contar... Os idiotas venceram. Mas e eu? O que foi feito de mim, afinal? Nas enciclopédias, nos almanaques literários, como definem Nélson Rodrigues?"
"Acho que, de certa forma, o senhor mesmo já havia se definido: 'anjo pornográfico'. É o epíteto com o qual costumam se referir ao senhor."
Nélson deu um tapa na própria testa. Pude ver os longos pelos que lhe saíam das orelhas titânicas.
"Não é que talvez o Otto esteja certo? E só Deus sabe o quão difícil para mim é ter de admitir isso. Hoje arrependo-me imensamente de ter usado a malfada expressão. O brasileiro é um fascinado por palavras de efeito. James Bryce já notara que, para o brasileiro, e, sobretudo, para o bem pensante brasileiro, as palavras são mais importantes que as coisas... Então 'anjo pornográfico' grudou como cola em seus ouvidos, não é? Sou, ao fim e ao cabo, o anjo pornográfico. E o que mais? O que mais?"
"Não entendo. O senhor não se reconhece como anjo pornográfico? Mas aqui todos acham que o senhor veio ao mundo para isto: para denunciar a hipocrisia, o moralismo sexual, e anunciar ao mundo o princípio hedonista do 'liberou geral'. Transe com todo mundo, traia, não reprima os seus desejos porque, no fim das contas, todo mundo faz isso. Alguns dos teus intérpretes... aquele sujeito, por exemplo, como é o nome dele?"
"Palhares?", perguntou, receoso.
"Não, não... Jabor. Arnaldo Jabor. O Jabor pinta-o como uma espécie de denunciador da moral burguesa e judaico-cristã... E ele sempre retorce a boca, assim meio para o lado, quando pronuncia essa palavra, ou quando fala do Trump. Ele te conhece bem, não?"
Balançando levemente a cabeça, o anjo pornográfico sorriu por dentro um riso convulsivo, logo antes de exclamar:
"Ah, o Arnaldo, o meu cineasta... Sempre retorceu a boca desse jeito, também quando dizia a palavra 'careta'... No tempo em que filmava o Toda Nudez, eu já começara a notar que Arnaldo tomava-me como um Bukowski ou Henry Miller... Será mesmo que o Nélson Rodrigues do Arnaldo acabou por se consagrar? Pinoia! Quantas não foram as vezes em que tentei convencer o meu cineasta de que estive sempre mais para Dostoievski do que para Bukowski, mais para Bernanos do que para Miller?"
"Mas não é só o Jabor. Há outros... O Pedro Bial, por exemplo..."
"Quem?"
"Esqueça. O senhor falava do Dostoievski..."
"Sim. Pensando bem, nada do que contas deveria me surpreender. Como se diz, as pessoas só enxergam o que querem. Embora acaciana, a frase tem seu grau de sabedoria. Veja, quando eu me dizia reacionário, muita gente... o Magaldi, por exemplo... achava que fosse uma técnica de publicidade, embora eu tenha insistido tratar-se, isso sim, de uma técnica de sinceridade. O reacionarismo é démodé, e portanto faz sentido que, depois de morto, meus admiradores me queiram como um paladino da revolução sexual. Papagaio! Já te falei do velório do Rosa?"
"O senhor mencionou de relance. O que tem o velório?"
"Havia ali muitas estagiárias de jornal. As estagiárias começavam a formar a nova classe da imprensa. Imagino que a coisa tenha piorado, não? Mas, enfim... Elas invadiram o velório. Atropelavam todos os que não fossem solidamente desconhecidos. Eu conversava com o Corção quando uma delas, de calcanhar sujo, me interpelou: “O que é que o senhor acha do Guimarães Rosa?”. Estava com um bloco, um lápis e esperava o meu juízo final. Para ela, Corção, o reacionário, não existia. Só queria a minha opinião. Corção, com setenta anos feitos, tinha um coração atormentado e puro de menino. É e sempre será um dos nossos escritores vitais. Respondi à estagiária nem me lembro o quê. Só sei que, depois, pelo Corção, fiquei me sentindo um covarde. Cada um de nós tem seu momento de pulha. Naquele instante, senti-me um límpido, translúcido canalha. Quem sabe a moça não queria que eu contasse alguma fofoca sexual do Rosa, que ele fornicara com a cunhada, ou com a secretária? Mal sabia ela que eu estava ali, tão reacionário quanto o Corção..."
"Isso não é um certo exagero? O Corção era um católico fanático. O senhor é cristão? O Jabor escreveu, e a Rita Lee cantou, que amor é cristão, sexo é pagão... E, como o senhor sempre falou mais de sexo, eu imaginei..."
"Agora eu vou te contar sobre o Arnaldo... Lembro-me daqueles tempos das passeatas. Havia passeata a respeito de qualquer assunto. Nelas, os estudantes marchavam ao lado das freirinhas progressistas, que, trajando minissaia no dia a dia, só vestiam o hábito para ir a passeatas... Foi num desses eventos que, enquanto procurava por algum preto, algum pobre ou operário, pois que só via rostos brancos e bem-nascidos, topei com o Arnaldo chupando um chicabon. Ele só deixava de lamber o chicabon para dizer 'participação, participação, participação' e logo tornava a lamber o picolé... Rapaz, deixa eu te contar uma coisa", e, ao dizer isso, aproximou-se do meu ouvido, abaixando a voz: "Que boa besta é o Arnaldo! Daquelas de babar na gravata..."
Dito isso, olhou ao redor, braço esquerdo erguido à procura do garçom.
"Traga-me um chope, faz favor. A úlcera já está melhor. Se torna a se rebelar, afogo-a no leite. É batata!"
Pegou um dos últimos três cigarros do maço, acendeu e prosseguiu.
"Perguntavas-me se sou cristão... Claro que sim. Não chego a ser como o doutor Alceu de Amoroso Lima... Um católico como o doutor Alceu há de ter Deus enterrado em si como um sino. Tinha pavor, aliás, quando ele prometia rezar por mim... Mas tampouco sou como o dom Hélder, que só olha para o céu para ver como está o tempo. Diria que fui um cristão comum e, por muito tempo, roguei a Deus, como o jovem Agostinho: 'Senhor, dai-me o dom da castidade, mas não agora'."
"Então o Jabor está errado sobre a questão do sexo na tua obra? Por que, então, falavas tanto de sexo? Tuas personagens eram bem safadinhas, não?"
"Não, não, aí é que está. Pouca gente conseguiu entender isso: que o meu teatro é soteriológico. Creio que já me pronunciei a respeito. Deixa ver se te consigo explicar, rapaz..."
"Vou precisar de mais um cigarro, posso?"
"Claro, claro, sirva-se... Mas eis o que eu queria dizer: minhas personagens jamais foram modelos de conduta. A ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. A partir do momento em que Ana Karenina, ou Bovary, trai, muitas senhoras da vida real deixarão de fazê-lo."
"Então o senhor não estava sugerindo que as mulheres traíssem, já que os homens também o fazem?"
"Meu Deus, não! No Crime e Castigo, por exemplo, Raskolnikov mata uma velha e, no mesmo instante, o ódio social que fermenta em nós estará diminuído, aplacado. Ele matou por todos. E, no teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse fenômeno de transferência torna-se mais válido. Para salvar a plateia, note bem, para salvá-la", e escandiu as sílabas nesta palavra, dando pancadinhas na mesa a cada uma delas, "é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los. Que raio de cultura é essa que toma os meus monstros fictícios por modelos? Essa cultura não quer ser salva..."
"O senhor é mesmo Nélson Rodrigues? Não se trata de algum gênio maligno tentando me confundir?... É que, bem, não te reconheço. Onde foi parar... com todo respeito... Cadê aquele véio tarado que subvertia os valores pequeno-burgueses? 'Quem quer que és que, a esta hora da noite, usurpas a forma majestosa e guerreira debaixo da qual se mostrava o meu defunto soberano? Em nome do Céu, fala, ordeno-te!'"
"Ora, mas já basta de Shakespeare, por caridade!", e bateu com o punho sobre o peito a dizer aquilo. "Vê bem e presta atenção: sou do amor, e não do sexo. Lembro-me que, certa vez, pretendia escrever sobre um espantoso programa de televisão. Fora um debate veemente sobre educação sexual. Falaram psicólogos, jornalistas, sociólogos, sacerdotes, pais de família. Um padre de passeata berrava: 'Abaixo o Amor e viva o Sexo. Amor é literatura. Sexo é vida. O Sexo não precisa de amor para nada'. Em seguida, para, arquejante. Arranca um lenço e enxuga a testa alagada. Desliguei... Um padre, compreendes, um padre! Eu não. Acho que o sujeito que não encontra a mulher amada não deve beijá-la. Ora, começamos a nos desumanizar justo quando separamos o sexo do amor... Lembro-me do Meireles (ou seria Marcondes?), um adepto do amor livre. Tinha, diziam, duzentas mulheres. Um dia, sem mais nem porquê, estourou os miolos numa farmácia lá na Aldeia Campista. Meireles morreu de amor livre e, pois, de falta de amor. Morreu porque separou o sexo do amor. Porque teve duzentas, o Meireles morreu virgem como uma solteirona de Garcia Lorca... O homem só começa a ser homem depois dos instintos. Contra os instintos! No dia em que o sujeito perder a infinita complexidade do amor, cairá automaticamente de quatro, para sempre. Sexo como tal, e estritamente sexo, vale para os gatos de telhado e os vira-latas de portão. Ao passo que no homem o sexo é amor. Envergonha-me estar repetindo o óbvio, mas o óbvio ulula, meu jovem, u-lu-la!"
"O que tem o Lula?"
"Tá preso, babaca", interveio o nosso bom garçom, às gargalhadas. Nélson não entendeu. E continuou, alheio aos nossos olhares cúmplices.
"Quero te perguntar algo. E essa tal 'Marcha das Vadias'? Conta-me os detalhes... Não te esqueças dos detalhes."
"Veja, senhor Nélson, é difícil descrever. 'O horror, o horror'..."
"Shakespeare, Pessoa, e agora Conrad!", gargalhou Nélson. "Mas você está me saindo um excelente pedante com tais citações, hein, meu jovem? O Otto não faria melhor... Era preciso pôr um taquígrafo atrás do Otto e anotar suas citações. Ha ha ha."
E o grande Nélson Rodrigues riu tanto que se engasgou, padecendo de um ataque de tosse que faria o próprio João Saldanha espumar de inveja.
"Mas agora me dou conta", olhei desconfiado para ele. "Como o senhor soube da Marcha das Vadias se, como me disse antes, tem estado afastado daqui deste baixo mundo?"
"Ora, veja você que, na Eternidade, acabamos perdendo a noção do tempo..."
"Enfim... De todo modo, se o senhor conhece a Marcha das Vadias, deve saber também o que pensam de você, correto? Por que, então, tudo isso? Por que me perguntar todas essas coisas?"
Nélson Rodrigues estancou, pousando duas mãos pesadas, de uma rigidez cadavérica, sobre os meus ombros. Olhando-me com ar sacerdotal, disse num tom novo, que não havia adotado até então, e que me fez gelar por dentro:
"Eu já sabia de tudo, mas tu precisavas saber. Agora vai e honra o meu nome. Diga a teus amigos e parentes quem sou. Como o Hamlet de que tanto gostas, vingue-me de meus usurpadores. Não é o sexo, mas o amor... O amor salvará os homens."
E, antes que eu pudesse lembrar-lhe de que acabara de plagiar Dostoievski, Nélson esticou as asas e saiu voando, já não como um fantasma, mas como um anjo, tão pornográfico quanto o Arcanjo Gabriel. Na saída, esbarrou com uma das asas na porta de entrada, e voou claudicante, feito pombo ferido, pela Rio Branco, em direção à Cinelândia.
Eram quase 18 horas quando, então, o garçom esticou-me a conta bem embaixo do nariz:
"São 52 reais, mais os 10%. O leite é por conta da casa."
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