“Estamos nos dirigindo a mais socialismo, e não o contrário (...) Aqueles, no Ocidente, que esperam que abandonemos a via socialista se desapontarão.” (Mikhail Gorbachev, Perestroika)
Com a morte de Mikhail Gorbachev, aos 91 anos de idade, reafirma-se em quase toda a imprensa nacional a consagrada mitologia criada em torno do homem, descrito invariavelmente como o grande responsável pela assim chamada “queda” do comunismo e, consequentemente, o fim da Guerra Fria, conquista que lhe rendeu o Nobel da Paz no ano de 1990. Essa é a fábula mais conhecida sobre o último líder soviético, tratado pela classe falante ocidental, majoritariamente de esquerda, como um grande pacifista, um herói da democracia e da liberdade.
Um tanto quanto mais crítica a essa quase hagiografia, a minoritária parcela liberal-conservadora da imprensa costuma contrapor-lhe uma história alternativa, que exalta uma pretensa superioridade moral e intelectual das democracias liberais sobre as ditaduras comunistas. Não menos fabulosa que a primeira, a versão mais conhecida dessa segunda narrativa – consagrada em obras como O Presidente, o Papa e a Primeira-Ministra: três que mudaram o mundo, do jornalista John O’Sullivan – é a que gosto de chamar de Mito da Trindade, que celebra a atuação heroica de João Paulo II, Ronald Reagan e Margaret Thatcher, as três personalidades ocidentais que, praticamente sozinhas, teriam derrotado o comunismo internacional. Essa é a fábula usualmente contada pela direita.
O leitor assíduo desta coluna (bem como do meu e-book Globalismo e Comunismo: um artigo censurado, lançado pela Gazeta em abril deste ano) já sabe que os adeptos de ambas as lendas – uma mistificando Gorbachev; a outra, superestimando o poder da Trindade ocidental – pecam por desconsiderar uma série de dados e fontes primárias relevantes, cujo acesso permite estimar melhor o alcance das reformas internas promovidas pelos dirigentes soviéticos, reformas longamente discutidas, e que Gorbachev apenas herdou, adaptando-a a uma nova ordem internacional. Elas dão conta de que, antes que coveiro do comunismo – e muito mais que mero espectador de um processo liderado pela troica do mundo livre –, Gorbachev foi o homem que encarnou o processo de transição entre duas formas de totalitarismo, o velho comunismo bolchevique e o globalismo contemporâneo, o qual, como a pandemia de Covid-19 nos deixou entrever, coroa a síntese entre o dinamismo econômico do liberalismo ocidental e a eficiente tecnologia de controle político dos regimes da Cortina de Ferro.
Antes que coveiro do comunismo, Gorbachev foi o homem que encarnou o processo de transição entre duas formas de totalitarismo, o velho comunismo bolchevique e o globalismo contemporâneo
Com efeito, por meio da análise dos arquivos de Moscou e de muitas obras dedicadas ao tema, hoje resta claro de que a suposta “queda” do comunismo não resultou de nenhuma superioridade do capitalismo liberal. Ao contrário, os eventos de fins dos anos 1980 resultaram de um processo de profunda reforma interna no sistema soviético, uma das tantas experimentadas pelo comunismo no decorrer de sua história, demonstrando sempre uma notável capacidade de se metamorfosear e adaptar a novos contextos. Antes que em “queda”, talvez devêssemos começar a falar em implosão do comunismo, dissolução controlada comandada por grandes estrategistas políticos inspirados no velho pragmatismo leninista.
Com efeito, a importância de Lenin no planejamento estratégico da política externa soviética foi sempre enfatizada por Gorbachev. Em Perestroika, o livro, escreveu o “camarada ordinário de Stavropol” – como o chamava Anatoly Chernyaev, assessor de política externa de Gorbachev nos últimos anos da URSS – sobre o camarada Ulianov:
“Lenin via que o socialismo iria se defrontar com problemas colossais, e que deveria resolver toda sorte de dificuldades que a revolução burguesa havia deixado sem solução. Daí sua utilização de métodos que não parecem intrinsecamente socialistas ou que, ao menos, se afastam em certa medida dos conceitos clássicos do desenvolvimento socialista, tal como geralmente aceitos (…) Lenin possuía o raro talento de sentir, no momento certo, a necessidade de mudanças profundas, de um reexame dos valores, de uma revisão das diretivas teóricas e dos slogans políticos.”
A Perestroika fez parte dessa revisão, bem como a mudança nos slogans políticos utilizados por Gorbachev, que passou a sofisticar o seu linguajar, adaptando-o à langue du bois das organizações supranacionais, de modo a deixá-lo menos ideologicamente marcado, e bem mais abstrato e universalista. Nas arenas da política externa, todos os jargões comunistas sobre “ditadura do proletariado”, “propriedade coletiva dos bens de produção”, “combate ao capitalismo” e “guerra ao imperialismo” foram substituídos por discursos genéricos e ideologicamente insípidos, versando sobre os “valores comuns” a “toda a humanidade”.
“Sendo ele chefe do partido proletário, e justificando em nível teórico e político as pautas revolucionárias deste último, Lenin podia ver mais longe, transcender os limites de classe do partido” – continuava Gorbachev. “Mais de uma vez, ele falou da prioridade dos interesses comuns a toda humanidade, para além dos interesses de classe. Somente hoje é que conseguimos alcançar toda a profundidade, toda a significação dessas ideias (...) A espinha dorsal do novo modo de pensamento é o reconhecimento da prioridade que se deve dar aos valores humanos, ou, para ser mais preciso, aos valores da sobrevivência humana”.
Jogada de mestre. Afinal, pode-se fazer oposição à doutrina do materialismo histórico, ou à ditadura do proletariado ou ao planejamento central da economia soviética. Mas quem, em sã consciência, opor-se-ia aos “valores da sobrevivência humana”?
Antes que em “queda”, talvez devêssemos começar a falar em implosão do comunismo, dissolução controlada comandada por grandes estrategistas políticos inspirados no velho pragmatismo leninista
Dentre as fontes relevantes sobre esse processo de implosão controlada, destaca-se o nome de Evgeny Novikov, prestigiado intelectual orgânico do regime, que integrou o Departamento Internacional do Comitê Central do Partido Comunista, responsável pelas ações de propaganda externa e desinformação. Escrito em colaboração com o padre católico Patrick Bascio, o seu livro Gorbatchev and the Collapse of the Soviet Communist Party é leitura obrigatória para quem quer que ainda mantenha a ilusão de haver sido o charme irresistível do capitalismo a principal causa do colapso da URSS. Lê-se na obra:
“O colapso do Partido Comunista soviético não foi um acidente da história nem o súbito resplandecer da democracia. Ao contrário, foi o resultado de um plano minuciosamente preparado, concebido pela elite do Partido e executado pela direção de um departamento secreto do Comitê Central, o Departamento Internacional”.
A exemplo de Lenin – que, nos anos 1920, lançou a Nova Política Econômica (NEP) com base na mesma expertise –, Gorbachev também demonstrava uma compreensão aguda das autoilusões liberal-capitalistas. Tanto é assim que, em janeiro de 1988, diante de representantes da ciência e da cultura reunidos no Comitê Central do Partido Comunista da URSS, ao defender-se da crítica de que a Perestroika fora mal concebida, exclamou: “Como assim mal concebida? O plano havia sido muito bem estudado, e isso muito antes de 1985: 110 estudos e projetos foram então apresentados ao Comitê Central por diversas grandes cabeças. Tudo remonta a uma época bem anterior à Plenária de Abril”.
- Um artigo censurado sobre comunismo e globalismo (parte 1)
- Um artigo censurado sobre comunismo e globalismo (parte 2)
- Um artigo censurado sobre comunismo e globalismo (parte 3)
- Um artigo censurado sobre comunismo e globalismo (parte 4)
- Um artigo censurado sobre comunismo e globalismo (parte 5)
- Um artigo censurado sobre comunismo e globalismo (parte 6)
- Um artigo censurado sobre comunismo e globalismo (final)
Por “Plenária de Abril”, Gorbachev referia-se à Plenária do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética de 1985, na qual se apresentara oficialmente o projeto da Perestroika e da Glasnost. E, com efeito, as primeiras elaborações do que depois ficaria conhecido como a “nova mentalidade” soviética (pretensamente mais aberta e liberal) datam do fim dos anos 1970, bem antes da referida plenária e da ascensão política do próprio Gorbachev. Importantes intelectuais orgânicos do regime já vinham concebendo essa missão de reformar o comunismo, com vistas a dar um novo norte filosófico para a URSS pós-stalinista. O projeto consistia, basicamente, num renouveau intelectual do leninismo, e incluía diversas instituições acadêmicas (como, por exemplo, a Escola Internacional Lenin, reaberta em 1964) e publicações intelectualmente sofisticadas, como os jornais Questões de Filosofia (Voprosy Filosofii) e Questões de Economia (Voprosy Ekonomiki). Toda essa enorme estrutura reformista era controlada pelo Departamento Internacional do Comitê Central do Partido Comunista, sob o comando de Yuri Andropov, que à época acumulava também a chefia da KGB.
Georgy Arbatov, prestigiado acadêmico soviético e um dos idealizadores da Perestroika, comentou certa vez que a conquista mais importante de todo o processo de “abertura” foi a de ter alterado, para o Ocidente, a sua “imagem do inimigo”, ou seja, a sua percepção sobre a URSS. “A imagem do inimigo que está desaparecendo foi absolutamente necessária à política externa e militar dos Estados Unidos e seus aliados. A destruição desse estereótipo é a arma de Gorbatchev” – disse Arbatov. “Uma grande guinada foi dada nas relações internacionais, e, no entanto, algumas pessoas não estão prontas para tanto. Por enquanto, a coisa mais terrível que pudemos fazer foi tê-las privado da imagem do inimigo.”
Para Arbatov, os EUA e seus aliados da Otan tomavam decisões de política externa baseados numa imagem estereotipada da URSS. Desfazendo essa imagem, portanto, Gorbachev teria conquistado uma vantagem estratégica sobre o Ocidente. O conceito de “imagem do inimigo” é recorrente entre os principais ideólogos da Perestroika. No livro O futuro pertence à liberdade, por exemplo, o chanceler soviético Eduard Shevardnadze, escreveu:
“A imagem do inimigo havia invadido a consciência de milhões de pessoas em todas as partes do mundo. Apagar, destruir essa ‘imagem’ é talvez o objetivo mais importante num contexto de evolução mundial, no qual se aproximam e se erguem à máxima altura os autênticos inimigos da humanidade que são a guerra nuclear, a catástrofe ecológica ou a desintegração do sistema econômico mundial”.
Para o azar dos que prezam as liberdades individuais e os direitos fundamentais legados pela matriz civilizacional judaico-cristã, o “camarada ordinário de Stavropol” cumpriu a sua missão neste planeta
A substituição do comunismo ortodoxo pela pauta globalista (ambientalismo, desarmamento, justiça social etc.) era parte essencial do plano de desfazer a tradicional “imagem do inimigo”. Portanto, o que acabou ali, na virada dos anos 1980 para os 1990, foi menos o comunismo do que a sua imagem, com a qual o Ocidente estava habituado. Com o fim dessa imagem, os líderes do mundo livre ficaram desorientados, situação agravada pela já referida autoilusão liberal segundo a qual o capitalismo é uma força civilizatória irresistível, o destino manifesto de todas as nações do planeta.
A ordem mundial contemporânea corresponde muito mais àquilo com o que Gorbachev sonhou por toda a vida do que com os sonhos e expectativas de Reagan, Thatcher ou João Paulo II. Mesmo as democracias ocidentais mais consolidadas – incluindo a americana, modelo de todas elas – experimentam hoje um surto de totalitarismo coletivista. Em lugar da liberalização generalizada pretensamente trazida pela economia de livre mercado, o que vimos foi, ao contrário, uma espécie de sovietização do mundo. Sim, para o azar dos que prezam as liberdades individuais e os direitos fundamentais legados pela matriz civilizacional judaico-cristã, o “camarada ordinário de Stavropol” cumpriu a sua missão neste planeta. E é assim que ele entra para a história.
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