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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Molhando o bico: conclusão da tréplica a Bruna Frascolla

O marechal Cândido Rondon, em 1930. (Foto: Wikimedia Commons)

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O traço mais característico da psicologia conservadora consiste, exatamente, no fato de que não considera viáveis as transformações e mudanças feitas sem o sentido da continuidade histórica − mais: o conservador acha impraticáveis e condenadas ao suicídio todas as reformas fundadas unicamente na vontade humana, sem respeito às condições preexistentes” (João Camilo de Oliveira Torres, Os Construtores do Império

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Reagindo ao debate em andamento com Bruna Frascolla, alguns dos meus leitores (e, noto, também dos dela) manifestaram certa preocupação com uma briga que lhes parece improdutiva e até mesmo autofágica, no sentido de criar eventual desgaste entre dois colunistas que, por eles identificados como “de direita”, deveriam em tese estar unidos neste momento politicamente conturbado. Compreendo essa preocupação da parte de quem nos admira como colunistas, mas devo esclarecer, em primeiro lugar, que são muitas as nossas diferenças de visão política, e que, além disso, não me vejo como membro ou porta-voz de algum coletivo político-ideológico do qual Bruna seria consorte. Sei que ela concordaria comigo sobre isso. E imagino concordarmos também na caracterização de um intelectual – se bom ou mau, pouco importa – como alguém cuja principal responsabilidade é a de falar como um indivíduo.

Mas, apesar das eventuais diferenças políticas (que nem chegam a ser abissais), quero tranquilizar nossos leitores em comum ao menos quanto a um ponto. Gosto de debater com essa minha colega de Gazeta, que sempre respeitei intelectualmente, sobretudo pela honestidade nos argumentos e franqueza na expressão. Longe de uma briga, portanto, o que se dá entre nós é efetivamente um debate, algo que, não tivesse nosso ambiente cultural se tornado tão suscetível, partidarizado e histriônico, deveria ser encarado com muita naturalidade. Sim, temos um debate. E nele continuamos.

Gosto de debater com a Bruna, repito, por aquelas suas qualidades antes mencionadas, que ajudam a aprimorar o conteúdo do tema em questão. Mas não posso me furtar a mencionar um seu defeito que, como eu temia, voltou a se repetir, trazendo prejuízos ao formato do debate. Refiro-me, é claro, à afoiteza. Como já fizera antes, infelizmente ela ignorou meus apelos para que esperasse a exposição completa do argumento, que seria – e será – concluído com o artigo presente.

O resultado do açodamento é o texto “Flávio Gordon começou errado”, recém-publicado em sua coluna, antes que eu tivesse terminado de responder ao primeiro. De minha parte, já anuncio com o artigo de hoje o encerramento da minha participação no corrente debate. Faço-o não por julgá-lo desagradável ou mesmo destituído de algum valor para os leitores, mas porque, sem saber quantos textos mais dedicados à questão a minha interlocutora poderá resolver publicar antes ainda que eu termine este, receio que a querela venha a se tornar infindável, minudente e formalmente caótica.

Compreendo que Bruna tenha tido ganas de responder ao que identificou de imediato como uma falha argumentativa de minha parte, no caso, a minha definição de progressismo, tida por problemática. Até aí tudo bem, pois se tratava de criticar algo ao qual, para o bem ou para o mal, eu já dera um arremate. O problema é que, com a nova precipitação, ela também resolveu criticar o que eu ainda não tivera a oportunidade de dizer, reservando-o para agora. Assim, antes que eu pudesse endereçar o tema abordado em sua réplica inicial, tornou a repreender-me por, na condição de antropólogo com formação em etnologia indígena, ignorar o exemplo virtuoso do positivista Cândido Rondon, personagem sobre quem eu falaria – e, enfim, falarei agora mesmo – nesta continuação da minha tréplica.

Longe de uma briga, portanto, o que se dá entre nós é efetivamente um debate, algo que, não tivesse nosso ambiente cultural se tornado tão suscetível, partidarizado e histriônico, deveria ser encarado com muita naturalidade

Bruna tem razão: Rondon foi inegavelmente um homem de excelsas virtudes, incluindo o patriotismo, a coragem e a empatia. E, de fato, suas virtudes não se afirmaram apesar de sua crença positivista, mas de algum modo por causa dela, pela maneira como a interpretava e, sobretudo, pelo contexto histórico em que a exprimiu. De uma perspectiva genérica e abstrata, seria até concebível criticar por salvacionista ou tutelar o indigenismo derivado do positivismo rondoniano. Mas a verdade é que, como bem lembrado pela minha colega, a postura de Rondon em relação aos índios brasileiros só pode ser bem compreendida se contrastada com o projeto eugenista e (aí sim o termo se aplica) etnocida de Hermann von Ihering, então diretor do Museu Paulista. Portanto, o lema “Morrer se preciso for; matar, jamais” deriva parcialmente, sim, de sua concepção positivista da natureza humana. Mas decerto não só dela, pois aí intervieram também características pessoais e biográficas. Ocorre que a relação entre os indivíduos e as doutrinas ou cosmovisões por eles esposadas não é simples nem, muito menos, imediata. Que, assim como o marxismo, o positivismo seja uma ideologia de massa intelectual, política e socialmente perniciosa (ao menos assim me parece), não implica, por óbvio, que não tenha havido homens de valor entre os seus adeptos. E – valendo o mesmo para quase toda doutrina política, filosófica ou religiosa – seria pueril supor o contrário.

Assim como fez em relação a Rondon, Bruna tornou a precipitar-se ao acusar-me de ignorar os escritos de Antonio Paim, orientador de Ricardo Vélez Rodrigues, que eu citara em meu primeiro texto. Num ímpeto de anti-olavismo, não hesitou em dizer até que o professor Olavo de Carvalho – de quem, em tese, eu teria herdado essa ignorância específica – também não lera o filósofo baiano, a quem, todavia, Olavo sempre fez frequentes referências, e isso há mais de dez anos. Mas, tivera a minha contendora a gentileza de me esperar molhar o bico, constataria que Antonio Paim seria – e, logo, será – a referência principal do artigo de hoje. Não, todavia, o Paim de Liberdade Acadêmica e Opção Totalitária, livro excelente, mas relativamente menor, por ela citado. Mas o Paim de História das Ideias Filosóficas no Brasil, talvez o seu opus magnum.

Confesso não ter compreendido ainda a razão da evocação desse autor, que só reforça o meu argumento. Na obra em questão, por exemplo, são apontadas as continuidades ideológicas entre o positivismo e o marxismo, movimentos herdeiros daquilo que Paim chama de cientificismo – o qual, no caso luso-brasileiro, teve forte inspiração pombalina. Referindo-se a nomes como os dos pioneiros marxistas João Cruz Costa e Leônidas de Rezende – intelectual que Bruna menciona de passagem, como se fora um desmentido à minha tese, e não mais uma prova de sua pertinência –, o filósofo baiano alega que, para esses representantes do marxismo acadêmico emergente no país, “o comtismo seria ‘reacionário’ na Europa, tendo desempenhado no Brasil um papel eminentemente progressista”.

Ou seja, aqueles que Paim identifica como continuadores do cientificismo positivista percebiam-se justamente – vejam vocês! – como “colegas de progressismo” dos positivistas, para evocar o termo com que Bruna ironizou a minha associação entre os dois movimentos. Mas, antes de entrar de cabeça no assunto, retomemos brevemente o parecer sobre a minha definição de progressismo (a parcela já quitada do meu argumento parcelado, por assim dizer).

Bruna afirma que o fenômeno por mim descrito já tem nome, não passando do que, celebremente, Karl Popper chamou de historicismo. Admito que o conceito de Popper é consagrado, o que não significa que seja o mais preciso. Basicamente limitado à denúncia das pretensões comunista e nazifascista de determinar o sentido da história, ele não recua ao período histórico em que, efetivamente, a ideia de “progresso” (daí a importância da palavra) vira o cerne de uma ideologia de massa. Tendo sempre como parâmetro a utopia boboca da “sociedade aberta” (em cujo exército inimigo inclui Hitler, Mussolini, Stalin e... Platão!), Popper sequer tangencia o problema filosoficamente muito mais denso e antigo da “imanentização do escathon”, tentação algo luciferina que abarca e explica as particularidades comunista e nazifascista.

Sobre o tema – do qual o historicismo não passa de uma manifestação particular –, torno a recomendar autores como Karl Löwith e Eric Voegelin, comparado aos quais Popper soa quase infantil. Aliás, perguntado certa vez por Leo Strauss sobre o que achava do badalado filósofo da ciência – que a Strauss parecera filosoficamente débil, pois autor de “uma especulação positivista das mais deslavadas e inertes acompanhada de uma completa inabilidade em pensar racionalmente” –, Voegelin respondeu em carta ao amigo e grande filósofo político: “Popper é inculto filosoficamente, um completo e primitivo ideólogo intratável, inapto sequer a reproduzir corretamente o conteúdo de uma única página de Platão (...) Resumidamente e em suma: o livro de Popper é um escândalo sem circunstâncias atenuantes; sua atitude intelectual é o típico produto de um intelectual fracassado; moralmente poderia se usar expressões como patifaria, impertinência, grosseria; em termos de competência técnica, como uma peça na história do pensamento, é diletantismo e o resultado é desprezível”.

Insisto, pois, no emprego do termo progressismo. Ele é particularmente útil no contexto intelectual brasileiro, onde dois de seus rebentos – o positivismo e o marxismo – evoluíram de braços dados. Sei que abuso da paciência do leitor, mas, antes ainda de entrar no tema (via Antonio Paim), é preciso desfazer várias premissas de Bruna Frascolla a respeito das motivações e expectativas que me levaram a redigir essa série de textos sobre o positivismo e as Forças Armadas. E elas resvalam ainda no problema da minha conceituação de progressismo.

Psicologizando-me à socapa, Bruna insinua que, de maneira quase herética, “mudei” a definição consagrada por Popper com alguma intenção escusa. “Quando um acadêmico começa a mudar as definições, aí tem” – escreve, para concluir que “no caso de Flávio Gordon, essa forçação de barra se deu contra os militares após Lula subir a rampa sem maiores problemas”. Ou seja, teria eu ficado tão frustrado com a inação dos militares – porque, supostamente, depositava neles grandes expectativas – que resolvi dedicar meu tempo a difamar deliberadamente as Forças Armadas. Sim, porque foi a isso que Bruna reduziu a minha análise sobre o positivismo militar brasileiro: uma reles tentativa de difamação.

Quanto à expectativa deste escriba, a crítica já a qualificara de “folgada”, ao comentar na primeira fase de sua réplica: “Olavo de Carvalho, um culturalista, vivia fazendo discursos contra os militares cujo teor é bem esse do texto de Flávio Gordon: positivistas não prestam e comunistas não foram suficientemente perseguidos. Acontece que essa é uma postura um tanto quanto folgada. O culturalista fica sentado no sofá pedindo que alguém forte desça o cacete nos comunistas enquanto a revolução cultural não se concretiza. Tudo o que importa é a cultura, diz-se, mas enquanto a cultura não está resolvida (e só Deus sabe quando estará), os militares que deem um jeito”.

Ora, o que Bruna faz aí é nada menos que virar o meu argumento de ponta-cabeça. Em primeiro lugar, porque, da minha tentativa de demonstrar a inexistência de um alinhamento ideológico natural entre a direita e as Forças Armadas, o que se deveria concluir é que, justamente, eu não nutria qualquer expectativa de ação política em favor da direita. Ao contrário do que afirma Bruna, não sou o responsável por excluir os militares da direita (“porque se diziam revolucionários” – segundo ela). Eles próprios sempre se excluíram desse campo, como demonstra o discurso inaugural do presidente Castello Branco por mim citado no primeiro artigo, no qual, esposando a utopia positivista da posição supra-ideológica, ele faz questão de se afastar da “direita reacionária”.

O que me levou à redação desta série não foi nenhuma decepção pessoal, algo que tenha me tocado subjetivamente, mas a percepção objetiva de um fato digno de nota: o estado quase patológico de desencanto ao que se reduziu boa parte da direita brasileira ao ver frustrados os seus anseios por um “S.O.S. FFAA”, expectativa algo milenarista traduzida em manifestações numericamente impressionantes diante dos quartéis de todo o país. Esse foi o fenômeno social, notável por seu pathos, que me reavivou o interesse pelo assunto.

... da minha tentativa de demonstrar a inexistência de um alinhamento ideológico natural entre a direita e as Forças Armadas, o que se deveria concluir é que, justamente, eu não nutria qualquer expectativa de ação política em favor da direita

Digo “reavivou” porque o grosso da tese ora apresentada já estava em A Corrupção da Inteligência, meu livro publicado em 2017, quando a mera possibilidade de um governo Bolsonaro não era sequer considerada. Portanto, prolongando um raciocínio há muito desenvolvido, a reflexão presente não poderia resultar de uma reação sentimental a algo ocorrido em 2022. E, justo ao contrário de uma postura “folgada” de pedir a alguém mais forte que perseguisse os comunistas, o que disse no livro e torno a dizê-lo agora é que “descer o cacete nos comunistas” não foi o que faltou aos militares fazer. Aliás, descer o cacete e perseguir foram as únicas coisas que fizeram, de modo despreparado e pouco inteligente, chegando nisso a cometer uma série de abusos de poder.

O que os militares dos anos 1960 não fizeram – porque, precisamente, reféns de uma cosmovisão positivista – foi permitir que a crítica cultural ao comunismo fosse avançada organicamente por quem, na sociedade civil, estava muito mais bem preparado para tanto, incluindo aí lideranças políticas como Carlos Lacerda e pesos pesados da intelectualidade conservadora, como Gustavo Corção (um típico “reacionário”, do ponto de vista militar-positivista). Portanto, a crítica que Bruna chama algo imprecisamente de “culturalista” nunca pediu nada aos militares, senão que saíssem do caminho e deixassem o debate ideológico correr solto.

Por imaginar que estou simplesmente atacando a honra das Forças Armadas, e se ressentir disso, Bruna é levada a um excêntrico non sequitur. “Eu gostaria de saber o que têm em mente os que picham as Forças Armadas brasileiras por elas serem positivistas” – diz ela, emendando com a pergunta: “Quem vai defender o Brasil em caso de ataque? A ONU? Elon Musk? Os traficantes armados? Carla Zambelli de pistola?”.

Ora, mesmo na hipótese fantasiosa de que eu estivesse, de fato, empenhado em “pichar” a referida instituição, como diabos isso a afetaria ao ponto de impedi-la de cumprir o seu papel constitucional de defender o país em caso de ataque? Seriam os militares assim tão melindrados a ponto de sair batendo o pezinho e abdicando de sua missão devido às críticas de um reles colunista de opinião? Porque o que Bruna parece estar sugerindo é que, se há alguém “pichando” as Forças Armadas, logo, não haverá quem defenda o país em caso de ataque. Eis uma tese cuja mera enunciação já revela a sua comicidade.

Mas, evidentemente, não há “pichação” às Forças Armadas nos meus textos. O que há é uma análise crítica da ideologia que, por mais de um século, foi predominante na instituição, legando ao país uma série de consequências políticas. Será que o debate público nacional encolheu-se tanto a ponto de o topos autoritário do “ataque às instituições” já se haver insinuado no vocabulário até mesmo dos mais irreverentes articulistas? A resposta à acusação de Bruna foi dada por um leitor perspicaz, que apontou o óbvio: “Criticar o positivismo (e, em especial, o positivismo das Forças Armadas – sem entrar aqui no mérito de sua extensão ou rigidez) não é criticar as Forças Armadas como um todo e muito menos sua existência, sua missão ou suas competências”. Eureka!

Seriam os militares assim tão melindrados a ponto de sair batendo o pezinho e abdicando de sua missão devido às críticas de um reles colunista de opinião?

Se, entretanto, a minha crítica foi incapaz de notar essa obviedade, é porque a sua relação com o objeto em tela não é analítica, mas utilitária: ela está menos interessada em avaliar a correção ou incorreção da minha tese do que em conter os eventuais efeitos políticos indesejáveis (para a direita, para o Brasil, para as próprias Forças Armadas, vai saber...) de enunciá-la em público. “Tem como essa obsessão antimilitar ser boa para o país?” – indaga Bruna. Ao que respondo: não sei. Não tenho nenhuma obsessão antimilitar, e estive apenas interessado em demonstrar por que é historicamente equivocada a identificação espontânea, até então arraigada no imaginário de boa parte da direita nacional (que, nisso, continua refém nas narrativas da esquerda), entre Forças Armadas e conservadorismo.

Como defini no artigo anterior, o progressismo caracteriza-se, sobretudo, pelo fenômeno que Eric Voegelin chamou de “imanentização do escathon”, que projeta um estágio final da história humana, compreendido como uma espécie de Juízo Final secularizado. No primeiro artigo da série, afirmei: “Em Comte, esse último estágio é chamado de ‘positivo’ ou ‘científico’. Daí advêm as recorrentes propostas – incluindo as contemporâneas, referentes à gestão de pandemias – de uma sociedade inteiramente administrada pela ciência, na qual a política (a ação de uma vontade subjetiva contra outra) será substituída pela técnica (a ação de um sujeito sobre um objeto)”. Para a mente positivista, a intencionalidade – traço distintivo das relações sociais entre humanos – é substituída por uma causalidade quase mecânica, como se as decisões sobre políticas públicas fossem a aplicação imediata (e, pois, inquestionável) das “leis” da história e da “física” da sociedade. Decorrente de sua filosofia da história, a doutrina política positivista é inerentemente autoritária.

Uma noção correlata à de progressismo, e que explica a natureza do positivismo, é a de cientificismo. Ideologia que marcou as mentalidades europeias na virada do século 18 para o 19, sobretudo as do Iluminismo francês, sua principal característica foi um encanto generalizado pelas ciências naturais, decorrente da revolução científica ocorrida nos dois séculos anteriores. Nessa época, assistimos à transformação de Isaac Newton em celebridade, e do mecanicismo, em filosofia de vida. Decerto, poucos compreendiam plenamente os escritos de Newton, mas todos falavam deles, extraindo-lhes as mais extravagantes implicações filosóficas, místicas e morais.

Como mostra o historiador Carl Becker em A Cidade Celeste dos Filósofos do Século 18, para a mentalidade da época importava menos que Newton tivesse descoberto a natureza da luz do que o fato de que o fizera brincando com um prisma. Tudo se passava como se a natureza tivesse se tornado mais próxima dos homens, que agora tinham a sensação de poder tocá-la, manipulá-la, senti-la, quase como se fora um animal de estimação.

Segundo Antonio Paim, o principal porta-voz do cientificismo na tradição intelectual luso-brasileira foi o Marquês de Pombal. No capítulo 5 de seu História das Ideias Filosóficas no Brasil, escreve o filósofo baiano: “O movimento cientificista em Portugal teve o momento das Academias, na primeira metade do século 18, logrando uma espetacular vitória com a ascensão de Pombal ao poder. Antecedendo de meio século a providência adotada por Napoleão, o marquês de Pombal destrói a universidade medieval, erguendo em seu lugar uma nova universidade, constituída à volta da ciência (...) A geração pombalina evoluiria no sentido de afirmar a competência da ciência em matéria de reforma social. Lançam-se assim as bases de uma vertente que se tornaria profundamente arraigada no Brasil tornado independente”.

Um dos principais e mais duradouros centros de difusão do cientificismo em terras brasileiras foi a Real Academia Militar. Fiel ao espírito da reforma pombalina de 1772, essa instituição afirmava as ciências experimentais como modelo para todo o saber humano. Nos anos de 1850, a Real Academia desdobra-se em dois estabelecimentos. O ensino militar é transferido para a Praia Vermelha. E o ensino de matemática, das ciências físicas e naturais, e da engenharia – aberto tanto para militares quanto para civis – vai para o Largo de São Francisco, no centro do Rio de Janeiro, com o nome de Escola Central. Rebatizado em 1874 de Escola Politécnica, hoje em dia o prédio abriga o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ (onde, aliás, me formei).

Foi na Real Academia Militar que a intelectualidade brasileira tomou contato com a obra de Augusto Comte. De início, o filósofo francês foi lido ali apenas como um teórico das ciências matemáticas e naturais. Mas não tardou para que, aproximadamente a partir de 1870, também a sociologia comteana começasse a influir nos espíritos. Paim sugere que, na pregação pombalina, encontram-se dois pressupostos que marcariam indelevelmente o cientificismo brasileiro: 1) que a ciência é competente para promover a riqueza; e 2) que é possível formular uma política e uma moral científicas. “Na obra de Pombal, essa última hipótese acha-se apenas implícita” – escreve o autor. “A vantagem de Comte encontrar-se-ia no fato de que a explicita. Precisamente essa circunstância é que facultaria a adesão entusiástica ao comtismo sob a República”.

Com efeito, erigida sob inspiração positivista pelas mãos de militares, a República brasileira caracteriza-se pela ideia de que o Estado tem uma missão moralizadora a cumprir. Por obra de Benjamin Constant, que se tornara professor da Real Academia Militar em 1873, nessa República o militar passa a ser visto como o cidadão-modelo e reserva moral da nação. Escreve Paim: “Na pregação de Benjamim Constant, a elite militar tornava-se mais que simples porta-voz da Nação. Na justificativa da reforma do ensino militar, teria oportunidade de afirmar: ‘O soldado deve ser, de hoje em diante, o cidadão armado, corporificação da honra nacional e importante cooperador do progresso com garantia da ordem e da paz públicas, apoio inteligente e bem-intencionado das instituições republicanas, jamais instrumento servil e maleável por uma obediência passiva e inconsciente que rebaixa o caráter, aniquila o estímulo e abate o moral’. Mais que isto, ao Exército estaria reservado o papel de autêntica vanguarda na conquista do estado positivo”.

Paim faz a interessante observação de que a doutrina política republicana – progressista e vanguardista – tinha o expresso propósito de substituir uma tradição influente no período do Brasil-Império, que Paim chama de “liberalismo”, mas que, no sentido de João Camilo de Oliveira Torres, poderia muito bem ser descrita como conservadora. Nas palavras de Paim: “Enquanto este [o liberalismo], ao longo do Império, conquista ampla adesão para a tese de que o poder provinha da representação, os adeptos brasileiros do comtismo iriam ganhar a elite republicana para a hipótese de que o poder vem do saber”.

A pretensão revolucionária de fundar o poder político não na representatividade dos governantes, mas num saber pretensamente científico de posse exclusiva de uma elite (ou vanguarda) tecnocrática persistiria em toda a vida republicana brasileira, mesmo quando, já em decadência, o positivismo veio a ser substituído por novas manifestações do progressismo cientificista, notadamente o marxismo. Aliás, um traço marcante da vida brasileira da primeira metade do século 20 é a transição frequente, por parte de personalidades da política e da cultura, entre uma e outra dessas correntes progressistas.

No intervalo entre o positivismo ortodoxo e o marxismo, por exemplo, o Brasil experimentou o castilhismo. Com efeito, a transformação da doutrina política comteana em arcabouço jurídico-institucional seria obra de Júlio de Castilhos. Eis aí, a propósito, um personagem estranhamente negligenciado por Bruna Frascolla, que, talvez por conta dessa negligência, chegue a afirmar categoricamente: “Vargas não era um positivista”. Mas, se não um positivista stricto sensu, o ditador gaúcho foi inegavelmente um castilhista.

Como afirma Paim: “O castilhismo tornar-se-ia a doutrina efetivamente aglutinadora, no campo do autoritarismo, tendo acabado por impor-se no plano nacional, através dos governos de Getúlio Vargas”. E se, já no segundo pós-guerra, Oliveira Vianna – a quem, por exemplo, o general Golbery do Couto Silva referia-se como “o mestre” – idealizaria uma nova versão de autoritarismo doutrinário (batizado por Wanderley Guilherme dos Santos de “autoritarismo instrumental”), continua sendo notável a capacidade do positivismo em haver formulado uma proposta política duradoura, que, temporariamente derrotada na Constituinte de 91, chegou ao poder, em versão castilhista, com a Revolução de 30.

Houve, desde então, novas ondas de castilhismo, como sugere Ricardo Vélez Rodrigues. Mas, no cômputo geral, como já o dissemos, o lugar deixado pelo positivismo ortodoxo foi sendo gradativamente ocupado pelo marxismo na imaginação dos nossos bem-pensantes. O curioso no caso brasileiro é que, em lugar de uma substituição pura e simples, houve aí um processo de miscigenação doutrinária entre as duas vertentes do progressismo cientificista, em que o marxismo resultante herdou vários traços da antiga vertente.

Segundo Paim, a formação de um novo ciclo cientificista em nossa cultura, com invólucro marxista, teve início nos anos 1930, com a chegada às cátedras da Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, de Leônidas de Rezende e Hermes Lima, que ali encontraram Edgardo de Castro Rebelo. Por estarem interessados no estudo científico da obra de Marx, e manterem-se relativamente autônomos em relação à agenda política do partido comunista, Paim qualifica-os de “marxistas acadêmicos”, de modo a diferenciá-los dos militantes políticos. “O marxismo acadêmico no país é certamente um movimento complexo, sobretudo naqueles autores que buscam inserir-se nas tradições brasileiras precedentes” – escreve. “Sem que isto signifique qualquer desapreço por outras dimensões, entendo que sua manifestação mais expressiva é a versão positivista do marxismo da lavra de Leônidas de Rezende e Cruz Costa”.

Diria Gilberto Freyre que, nos trópicos, tudo amolece e se amolda, estando os antagonismos em perpétuo equilíbrio. Assim foi com a mentalidade progressista-cientificista no Brasil, que persistiu residualmente ao longo dos anos 1960, dessa vez antagonizando novas versões de positivismo e marxismo, ambas esposando um mesmo fundo doutrinal autoritário, que enxerga no saber científico o fundamento da legitimidade do poder político, de posse de uma elite revolucionária ou tecnocrática para a qual os governados não passam de massa de modelar.

Importa lembrar que, em 1964, como admite o historiador e ex-guerrilheiro Daniel Aarão Reis em Ditadura e Democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988, a sociedade civil organizada que foi às ruas para derrubar Jango não pedia uma mudança de regime. “É inegável que o golpe militar e civil foi empreendido sob bandeiras defensivas. Não para construir um novo regime” – escreve o autor. “O que a maioria desejava era salvar a democracia, a família, o direito, a lei, a Constituição”.

Mas, no lugar da ditadura comunista justamente tão temida pela população, o que adveio não foi o restabelecimento da ordem democrática e representativa, mas a instituição de uma nova ordem autoritária, comandada por novos homens de sistema (para falar como Adam Smith), extremamente desconfiados do mundo civil, e crentes no próprio poder de “dispor dos diferentes membros de uma grande sociedade com a mesma facilidade com que dispõe as diferentes peças sobre um tabuleiro de xadrez”. Uma ordem da qual, no frigir dos ovos, as ideias conservadoras acabaram totalmente excluídas, a ponto de haverem desaparecido do horizonte nacional por pelo menos quatro décadas.

Daí que, diante de cenas dramáticas como as de manifestantes bolsonaristas chorando dentro dos ônibus-prisões em que foram colocados por soldados do Exército – ou aplaudindo os militares que, cumprindo ordens do novo governo socialista, ali haviam chegado para removê-los e entregá-los à polícia que os conduziria a centros de detenção –, não pude me furtar à missão de tentar recompor a nossa história política recente. Se, ao fim e ao cabo, um dos efeitos desse trabalho for o de inspirar na direita brasileira uma atitude mais realista e menos milicólatra, terei me dado por satisfeito.

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