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Museu Nacional: In Memoriam

Tânia Rêgo/Agência Brasil (Foto: )

“Se atentas em verdade tão profunda,
Se lembras quais são esses que padecem
Acima da mansão, que o fogo inunda”

(Dante Alighieri, A Divina Comédia – Inferno, Canto XI)

Para mim, ele era mais que o Museu Nacional. Ou menos. Ou mais e menos ao mesmo tempo. Era simplesmente “o Museu”, como costumavam chamá-lo os que, de algum modo, lhe foram íntimos. Lembro-me de tê-lo visitado algumas vezes na infância, ora levado por meus pais, ora pela escola. Foi, se a memória não me trai, o primeiro museu em que pus os pés, e onde o significante da palavra “museu” ganhou pela primeira vez um significado palpável na minha consciência infantil. Se museu era aquilo – devo ter pensado à época –, eu definitivamente o queria em minha vida.

Perambular pelos corredores e salas do Paço de São Cristóvão costumava ser o coroamento perfeito do típico programa dominical das famílias das zonas norte e oeste (meu caso): primeiro o zoológico; depois, o piquenique-almoço nos gramados da Quinta da Boa Vista; e, por último, encerrando o glorioso dia, o Museu. Sempre nessa ordem, cuja lógica implacável a tradição terminou por consagrar: os pais esperavam que, ao cair da tarde, depois de toda a agitação a céu aberto, as crianças já estivessem mais calmas e contemplativas para encarar as exposições. Se dava certo com todos não sei, mas, ao cruzar o pórtico frontal e ser recepcionado pelo imponente Bendegó (o maior meteorito brasileiro, descoberto em 1784 no sertão da Bahia), eu pelo menos já trazia o pequeno espírito manso, domado por um corpo docemente exausto, farto de sucolés (no mínimo um de cada: uva e laranja) e biscoitos globo.

Tendo passado por meteoritos e outras pedras (amostras de calcário, calcita, galena, quartzo etc.), era a vez de subir as escadas e dar de cara com a seção de paleontologia, seus fósseis de plantas e animais pré-históricos, invertebrados e vertebrados, incluindo eles, os popstars: os dinossauros. Virando à esquerda, passava-se à sala do Antigo Egito, cujo destaque não era o deslumbrante esquife de Sha-amum-em-su, a cantora-sacerdotisa mumificada em 750 a.C., ou a enigmática Kherima, múmia de 2 mil anos, que, reza a lenda, provocava transes em quem dela se aproximasse. Não, para mim (e, creio, para toda a criançada presente), a soberana da sala era a curiosa múmia de um gato – uma oferenda a Bastet, a deusa felina do panteão egípcio.

Do Egito, viajávamos até o Mediterrâneo, onde se podia admirar estatuetas e joias greco-romanas; cabos de espelho, talheres, frascos e vasos etruscos; cálices, cestos e afrescos de Pompeia, num total de mais de 700 peças de valor incalculável. Finalmente, depois de tanta cultura, era comum que se encerrasse o dia logo ali, vinte metros adiante, na natureza. Trocava-se, então, a terracota da arqueologia pelo multicolorido departamento das conchas, corais, crustáceos e insetos, magníficas criaturas que, horas mais tarde, no aconchego do quarto de dormir, povoariam os nossos sonhos noturnos.

Como disse antes, quisera desde cedo o museu em minha vida. E tanto o quis que, anos mais tarde, calhei de fazer dele a minha segunda casa, na condição de aluno do programa de pós-graduação em antropologia social (PPGAS), então um dos melhores do país. Foi a época em que, entre mestrado e doutorado, frequentei por quase uma década, de duas a três vezes por semana, o prédio situado na parte posterior do grande paço. Não foram poucas as vezes em que, no intervalo das aulas, ou mesmo após o seu término, ia conferir a coleção do museu, sobretudo a seção de etnologia, por óbvio interesse profissional.

Como o fizesse em dia útil, era frequente que meus únicos companheiros de exposição fossem alunos de escolas públicas em visita guiada ao museu. E, quando não estava apreciando os extraordinários itens do acervo etnológico – a plumagem karajá, as máscaras tikuna, os bancos xinguanos, as cabeças-troféus jívaro ou, saindo da Amazônia para o Pacífico, o deslumbrante manto de plumas havaiano com que, em 1824, de passagem pelo Rio de Janeiro, o rei Tamehameha II presenteou Dom Pedro I –, gostava de observar o deslumbramento no semblante daqueles alunos, muitos dos quais, provenientes de comunidades carentes, tendo no Museu Nacional uma rara (senão mesmo única) oportunidade de abertura cultural e ampliação do imaginário.

Foi no Museu que obtive a porção mais sólida da minha formação em antropologia, e não apenas em termos teóricos, mas sobretudo de vivência prática, com a oportunidade de fazer trabalho de campo numa sociedade indígena do sudoeste amazônico, tendo vivido por seis meses, divididos em duas temporadas, numa pequena aldeia situada à margem direita do alto rio Purus, a três dias de barco da cidadezinha mais próxima. Por fim, mas não por último, foi também no Museu que conheci a minha mulher, que hoje leva a nossa filha na barriga. Para a minha tristeza particular, a pequena não terá o privilégio de conhecer um lugar que lhe seria duplamente especial, pois, ademais de todo o resto, foi onde a providência divina começou por concebê-la.

Nos últimos anos – precisamente desde 2011, quando defendi minha tese de doutorado –, estive afastado do Museu tanto física quanto espiritualmente, por uma série de razões que não vêm ao caso. Distante do meu horizonte imediato, o lugar voltou a ser “apenas” o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista. Lembro-me de que as últimas notícias que dele tivera, por meio das redes sociais, não haviam sido muito animadoras, por representativas do descaso generalizado (governamental, decerto, mas não somente) que, ao fim e ao cabo, acabou por vitimá-lo fatalmente. Estávamos às vésperas do impeachment de Dilma Rousseff, e uma foto mostrava alunos e até mesmo alguns professores do PPGAS tapando a bela fachada do paço com faixas de conteúdo político-partidário, a exemplo de “antropólogxs (sic) contra o golpe” (e talvez houvesse linguistas entre os militantes), “Fora Temer” e “PPGAS contra o golpe”. Desde então, desgostoso, confesso ter optado por uma medida profilática radical, fazendo questão de não ter mais conhecimento do que se fazia na (e da) instituição, que ademais sabia estar, e desde muito tempo, em estado precário de conservação.

Eis que, no último domingo (02/09), e à minha revelia, o Museu Nacional reaproximou-se de mim da maneira a mais dramática que se podia imaginar: para se despedir. Diante dos meus olhos, e como numa tragédia de Sófocles, o que se consumia em chamas era mais (ou menos, ou ambos) do que o Museu Nacional. Era de novo “o Museu”, meu velho conhecido, que, a uma distância impotente, eu via se extinguir no fogaréu medonho. E, como cantava Etta James, all I could do was cry. Naquele momento, pensei em todas as visitas que ainda poderia ter feito e que, dali em diante, jamais faria. Num misto de perplexidade e desalento, tateei num terreno baldio da memória por alguma lembrança viva, ainda que fugidia, da minha relação com o gigante incinerado. E, num vislumbre de cocares flamejantes, enfim lembrei de uma, de quando fiz um curso sobre a mitologia indígena americana, reunida e analisada pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss em sua consagrada tetralogia, Mitológicas.

Conta um mito tenetehara (povo de língua tupi-guarani) que, certa feita, o deus Tupã enfureceu-se com parentes de uma aldeia em que seu afilhado, Marana ywa, havia sido maltratado. Com sede de vingança, Tupã mandou que o afilhado ofendido juntasse penas usadas na confecção de cocares, as amontoasse em volta da aldeia e lhes ateasse fogo. Cercados pelas chamas, os habitantes da aldeia corriam de um lado para o outro, sem ter como escapar. Pouco a pouco, seus gritos se converteram em grunhidos, pois todos se transformaram em animais selvagens (porcos-do-mato, mais especificamente). Após submeter o mito às operações de seu modelo estruturalista de análise, Lévi-Strauss generaliza que, naquele conjunto de mitos, os animais selvagens apareciam como consequência da queima dos cocares.

Recorrendo a uma típica inversão estruturalista, tão cara ao antropólogo francês, poderíamos dizer que, no caso da tragédia do Museu Nacional, temos a mesma matéria dramática – a fumaça das penas dos cocares – organizada de outra forma. Aqui, os animais selvagens (e de que outro modo chamar aqueles que, de tanto desprezar a cultura, acabam por lançá-la às chamas?) vêm primeiro. Eles são causa, e não consequência, da queima dos cocares e demais artefatos culturais. Esse é o nosso mito. É isso que, no futuro, haveremos de contar a ouvidos incrédulos: a história de um tempo em que, por ignorância e despeito, um bando de bestas-feras incendiou séculos e séculos de cultura humana.

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