Como se sabe, já virou uma espécie de senso comum recorrer a Franz Kafka para descrever a sensação de insignificância experimentada pelo indivíduo perante o monstruoso aparato repressor e burocrático do Estado contemporâneo. Com efeito, Kafka é um daqueles raros autores cuja obra é tão influente e cujo estilo é tão característico que o seu nome foi convertido no adjetivo kafkiano, usado para descrever situações marcadas por aquela sensação terrificante, assim como orwelliano virou um adjetivo quase sinônimo de distópico; proustiano, um adjetivo referente à reminiscência introspectiva; e dantesco, um adjetivo associado a horrores infernais.
Mas, em vez de falar de O Processo, a obra mais diretamente associada ao referido adjetivo, gostaria de falar de um livro menos comentado de Kafka, escrito uma década antes da publicação do outro, mas igualmente impactante e profético. Refiro-me ao pequeno livro Na Colônia Penal (Strafkolonie), redigido em 1914 e publicado em 1919, antecedendo, portanto, o estabelecimento pleno dos sistemas totalitários dos anos seguintes e a própria consolidação do conceito de “totalitarismo”. Recorrendo a uma técnica literária extremamente sutil e inteligente, Kafka propõe um exercício imaginativo perspicaz sobre a tentação totalitária que começava a pairar sobre a Europa e que, nas próximas décadas, transformaria definitivamente o destino do continente e do mundo.
O livro foi concluído cerca de dois meses após o início da Primeira Guerra, evento que primeiro concedeu às nações europeias um sentimento esmagador de unidade, mergulhando-as, em seguida, em batalhas sangrentas. A trama apresenta um viajante europeu educado, acostumado a raciocinar em termos de direitos universais e humanismo, indo visitar algum lugar no exterior. Especificamente, seu destino é o local de uma execução que, de acordo com as ideias do viajante, se lhe afigurava como desprezível. O condenado à morte, um soldado, havia falhado em executar uma ordem completamente nonsense. Pego em flagrante, foi sentenciado à morte sem qualquer tipo de julgamento, e sua execução seria consumada com o auxílio de uma complicada máquina, numa sessão de tortura com 12 horas de duração.
Recorrendo a uma técnica literária extremamente sutil e inteligente, Kafka propõe um exercício imaginativo perspicaz sobre a tentação totalitária que começava a pairar sobre a Europa
“– Como o senhor vê, o aparelho é composto de três partes. Com o passar do tempo, foram criadas denominações um tanto populares para cada uma delas. A inferior chama-se cama, a superior chama-se desenhador, e aqui, no meio, a parte suspensa se chama rastelo,
– Rastelo? – perguntou o viajante. Ele não ouvira com muita atenção, o sol forte demais se emaranhava no vale das sombras, era difícil reunir os pensamentos.”
O oficial responsável pela execução porta-se como uma espécie de sacerdote, tanto do totalitarismo quanto da violência. Do totalitarismo, na medida em que habita um mundo extremamente lógico – o que nos faz recordar a caracterização de Hannah Arendt sobre a logicidade macabra dos Estados totalitários –, no qual vigem normas claras, as quais se devem aplicar e aceitar sem questionamentos. Da violência, na medida em que nela enxerga não apenas um meio de domesticação, mas também de transfigurar o indivíduo e purificar a sociedade.
“– É, rastelo, disse o oficial. – O nome combina. As agulhas estão dispostas como as grades de um rastelo e o conjunto é acionado como um rastelo, embora se limite a um mesmo lugar e exija muito maior perícia. Aliás, o senhor vai compreender logo. Aqui sobre a cama coloca-se o condenado. Quero, no entanto, primeiro descrever o aparelho e só depois fazê-lo funcionar eu mesmo. Aí o senhor poderá acompanhá-lo melhor. No desenhador, há uma engrenagem muito gasta, ela range bastante quando está em movimento, nessa hora mal dá para entender o que se fala; aqui felizmente é muito difícil obter peças de reposição. Muito bem: como eu disse, esta é a cama. Está totalmente coberta com uma camada de algodão; o senhor ainda vai saber qual é o objetivo dela: O condenado é posto de bruços sobre o algodão, naturalmente nu; aqui estão, para as mãos, aqui para os pés e aqui para o pescoço, as correias para segurá-lo firme. Aqui na cabeceira da cama, onde, como eu disse, o homem apoia primeiro a cabeça, existe este pequeno tampão de feltro, que pode ser regulado com a maior facilidade, a ponto de entrar bem na boca da pessoa. Seu objetivo é impedir que ela grite ou morda a língua. Evidentemente, o homem é obrigado a admitir o feltro na boca, pois caso contrário as correias do pescoço quebram sua nuca.
– Isso é algodão? – perguntou o explorador, inclinando-se para frente.
– Sem dúvida, respondeu sorrindo o oficial. – Sinta o senhor mesmo.
Pegou a mão do explorador e passou-a sobre a cama.
– É um algodão especialmente preparado, por isso parece tão irreconhecível; ainda volto a falar sobre a sua finalidade”.
A essa altura, o viajante começa a se interessar pelo aparelho, demonstrando uma curiosidade meramente técnica, a qual o lado humanista não conseguiu conter. Em seguida, como que voltando a si do transe, lembra de perguntar sobre a sentença. O oficial executor explica-lhe que, no caso desse condenado, ela consiste em ter gravada no corpo, por meio da máquina, o mandamento por ele infringido: “Honre os seus superiores!”. O viajante quer saber se o condenado conhece a própria sentença, e o diálogo que se segue revela a natureza kafkiana de um outro lugar igualmente distante, e não menos desconhecido:
“– Não, disse o oficial, e logo quis continuar com as suas explicações. Mas explorador o interrompeu:
– Ele não conhece a própria sentença?
– Não, repetiu o oficial e estancou um instante, como se exigisse do explorador uma fundamentação mais detalhada da sua pergunta; depois disse:
– Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne.
O explorador já estava querendo ficar quieto quanto sentiu que o condenado lhe dirigia o olhar; parecia indagar se ele podia aprovar o procedimento descrito. Por isso o explorador, que já tinha se recostado, inclinou-se de novo para frente e ainda perguntou.
– Mas ele certamente sabe que foi condenado, não?
– Também não, disse o oficial e sorriu para o explorador, como se ainda esperasse dele algumas manifestações insólitas.
– Não, disse o explorador passando a mão pela testa. – Então até agora o homem ainda não sabe como foi acolhida sua defesa?
– Ele não teve oportunidade de se defender, disse o oficial, olhando de lado como se falasse consigo mesmo e não quisesse envergonhar o explorador com o relato de coisas que lhe eram tão óbvias.
– Mas ele deve ter tido oportunidade de se defender, disse o explorador erguendo-se da cadeira.
O oficial se deu conta de que corria o perigo de ser interrompido por longo tempo na explicação do aparelho; por isso caminhou até o explorador, tomou-o pelo braço, indicou com a mão o condenado, que agora se punha em posição de sentido, já que a atenção se dirigia a ele com tanta evidência – o soldado também deu um puxão na corrente – e disse:
– As coisas se passam da seguinte maneira. Fui nomeado juiz aqui na colônia penal. Apesar da minha juventude. Pois em todas as questões penais estive lado a lado com o comandante e sou também o que melhor conhece o aparelho. O princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável.”
A violência não é evitada com escrúpulos, mas é tomada e usada como um instrumento de purificação, salvação e transfiguração
Enquanto prepara a máquina, o oficial carrasco relata detalhadamente ao viajante episódios anteriores de execução. Ressalta que os delinquentes são transfigurados ao fim da tortura, o que se vê claramente em seus rostos. Para as pessoas presentes, ademais, todo o processo representaria uma espécie de redenção e elevação espiritual.
O argumento é apresentado de modo a causar um certo fascínio no viajante (e não menos no leitor). Kafka procede a uma modelagem sutil da situação narrativa, alternando o texto entre a perspectiva dos atores envolvidos e a da impessoalidade do próprio relato. É de especial importância o fato de que a glorificação do regime totalitário e da máquina de tortura primeiro emane do oficial de execução; em seguida, é de certa forma reconstruída ou condescendida pelo viajante e, finalmente, confirmada de maneira a exercer um efeito objetivador altamente sedutor.
Kafka quer que a situação do viajante seja a situação do leitor. Cedo no livro, é sugerido sobre o viajante o modo como ele agiria diante da execução sádica de alguém condenado sem julgamento: de maneira negativa e a mais desencorajadora possível. No entanto, ao presenciar o procedimento, o espectador se deixa seduzir pelos arroubos do oficial, claramente animado pela suspeita, talvez até pelo desejo, de que, para além da sua sempre meticulosa ideia humanista e liberal sobre ordem e direito, exista um reino excepcionalíssimo, ou uma possibilidade para a qual a ordem e o direito são sempre “indubitáveis”, como diz o oficial. Aqui, a violência não é evitada com escrúpulos, mas é tomada e usada como um instrumento de purificação, salvação e transfiguração.
Por fim, é escusado dizer que qualquer semelhança entre o pequeno romance kafkiano e a realidade próxima terá sido mera coincidência.
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