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“Oh, ódio, conduz-me que eu te sigo” (Sêneca, Medeia)

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“Tendo minha cólera como alimento, jantarei minha própria substância, desse modo ficarei saciado à medida que me alimentar” (Shakespeare, Coriolano)

Um dos atributos mais interessantes da grande arte é a capacidade de infundir humanidade, e mesmo personalidade, à matéria inanimada. Quando olhamos para o Moisés de Michelangelo, chegamos mesmo a esperar que, a qualquer momento, a criatura obedeça à célebre exortação de seu criador: – Parla! Por obra de Bernini, escutamos os gemidos de Santa Teresa em seu êxtase, ao ser trespassada pelo dardo flamejante do anjo. E esquecemos por completo de que a sensual figura feminina de A Modéstia, de Corradini, cujo calor corporal quase podemos sentir sob a transparência do véu, nasceu de um frio bloco de mármore, antes que de um ventre humano.

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Saindo da escultura para a música, sabemos que um violino Stradivarius é mais que um mero objeto feito de plátano, abeto e tripa de carneiro. É uma pessoa, com caráter, nome próprio e biografia. Como, por exemplo, Lady Blunt (1721), que viveu por muito tempo com a neta de Lord Byron e, mais tarde, conquistou o amor de Yehud Mehunin. Ou Molitor (1697), que, após um caso intempestivo com Napoleão Bonaparte, pulou de galho em galho até encontrar a sua cara-metade, a violinista nipo-americana Anne Akiko Meyers, com quem hoje mantém um relacionamento estável. Ou ainda o introvertido Messias-Salabue (1716), que, conhecido intimamente por uns poucos privilegiados, a exemplo do violinista húngaro Joseph Joachim, hoje permanece casto, recluso e contemplativo em seu leito no Museu Ashmolean, em Oxford, na Inglaterra.

Em contraste com a arte, um dos atributos da ideologia é a capacidade diametralmente inversa, qual seja a de despersonalizar, desumanizar e amputar o espírito daqueles que, salvo engano, foram pessoas algum dia, mas passaram a sê-lo menos do que estátuas e violinos. Conta-se que, certa vez, após apresentação de uma sonata de Beethoven, Vladimir Lenin teria dito: “Não posso ouvir música com constância. Dá-me vontade de fazer afagos na cabeça das pessoas e de dizer palavras amáveis e tolas. Mas, no momento, é preciso sovar cabeças, espancá-las sem misericórdia”. Da mesma forma, recusava-se a ler Os Demônios, de Dostoievski, obra que qualificou de “exemplo de imundície reacionária”.

Existencialmente despreparado para lidar com obras de arte que o conduzissem a um arriscado mergulho interior – o célebre “conhece-te a ti mesmo” socrático, conselho moral que, mais tarde, a tradição patrística iria converter no cerne mesmo da antropologia cristã –, é compreensível que o líder bolchevique preferisse o conforto psicológico de um tipo de arte que pudesse ser instrumentalizada e imediatamente posta a serviço da revolução. Esta, aliás, uma das principais características da psique revolucionária: a tendência a projetar (e com isso recalcar) os seus fantasmas internos no mundo exterior. Referindo-se especificamente a Karl Marx, o cientista político americano Robert Tucker resumiu bem o problema: “Um drama da vida interna do homem é externalizado e experimentado como tendo lugar fora dele, no mundo externo. As conflitantes forças boas e más do Eu, suas potencialidades construtivas e destrutivas, parecem como que se desenrolar externamente. Em Marx, a realidade externa é a realidade social, e o conflito aparece como uma guerra de classes nas quais se dividiu a sociedade. As forças adversárias do bem e do mal são respectivamente as forças produtivas, localizadas no proletariado, e as desumanas forças do Capital, encarnadas na burguesia, que é a coletiva Personifikation des Kapitals (para usar a fórmula do próprio Marx)”.

A deliberada autocastração existencial do ideólogo revolucionário não consegue, é claro, eliminar a estrutura da realidade humana da qual ele faz parte, e que o filósofo Eric Voegelin definiu como uma tensão permanente (metaxi, na terminologia platônica) entre a transcendência e a imanência (ou, no jargão aristotélico, entre Deus e as bestas). Mesmo que à sua revelia, o eunuco espiritual não deixa de ser humano, e, portanto, não cessa a sua sede por sentido e transcendência. Daí que, em algum momento, experimentará a necessidade de preencher o buraco que cavou na própria alma com algum substituto para o senso de transcendência recalcado. E, como matéria prima desse aterramento psíquico, recorrerá à prateleira dos pecados capitais para extrair de lá o seu preferido: o ódio.

Há, na literatura recente, uma brilhante descrição desse ódio primordial que move o adepto de ideologias revolucionárias. Está no livro O Homem que Amava os Cachorros, do escritor cubano Leonardo Padura. Entre as muitas personagens espiritualmente mortificadas pela perversão ideológica ali descritas, a mais trágica é Caridad, mãe de Ramón Mercader, o assassino de Trotski. Trata-se de uma mulher com a alma ressequida, cujo único sentido na vida foi, décadas a fio, o ódio revolucionário contra o mundo, um ódio fermentado por um sem-número de pequenos ressentimentos e humilhações encruadas que, na sua vã esperança, caberia à revolução redimir. “Grávida da fúria da revolução total e do ódio ao sistema” – assim a descreve Padura –, “sua vida parecia-lhe miserável e um desperdício de forças que exigiam aos gritos um encaminhamento libertador”. Altamente simbólica é a cena em que, ao convocar o filho para o serviço secreto soviético, ela mata gratuitamente, com um tiro de pistola, o cachorro que lhe fazia companhia, a fim de lhe infundir o espírito implacável e frio requerido pelo verdadeiro revolucionário. Depois de tê-lo abandonado criança em função da causa comunista, Caridad, essa antimãe arquetípica, “presenteia” o filho adulto com um cãozinho morto.

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O mesmo ódio constitutivo pode ser observado no espírito dos mais célebres ideólogos revolucionários da história, a exemplo dos já citados Karl Marx e Vladimir Lenin. Acerca do primeiro, o historiador Paul Johnson nos fornece ótima descrição dos tempos em que, na juventude, o filósofo de Trier entregava-se a conturbados devaneios poéticos cuja temática impregnaria toda a sua produção intelectual futura. “A selvageria é uma marca característica de seus versos, juntamente com um intenso pessimismo no que diz respeito à condição humana, ódio, uma fascinação pela decomposição e pela violência, pactos de suicídio e pactos com o demônio” – descreve Johnson, citando em seguida um dos singelos versinhos marxianos, que remete ao antigo simbolismo gnóstico da revolta contra Deus e a criação: “Nós estamos acorrentados, alquebrados, vazios, amedrontados / Eternamente acorrentados a esse bloco marmóreo de ser / Somos os imitadores de um Deus insensível. Gritarei maldições colossais à humanidade”.

Em relação a Lenin, eram famosos os seus ataques de ódio contra aqueles que considerava como inimigos da revolução. Nadezhda K. Krupskaia, mulher do líder bolchevique, tinha uma expressão para definir o estado frenético que arrebatava o marido durante seus embates políticos: “a fúria de Lenin”. Durante tais acessos de fúria, descreve o historiador Orlando Figes, “todo o seu corpo era tomado por extrema tensão nervosa, os gestos tornavam-se vulgares e grosseiros; mal conseguia dormir e se alimentar”. Quando voltou à Rússia em abril de 1917, muitos de seus ex-companheiros notaram uma mudança drástica em sua personalidade, que agora era integralmente consumida pela cólera. Um deles se recorda: “Aquele novo homem que acabara de chegar era cínico, reticente e rude, um conspirador ‘contra tudo e todos’, incapaz de confiar em alguém, suspeitando de cada um e determinado a arremeter até o poder”.

É por tudo isso que sempre fico espantado quando vejo a esquerda contemporânea acusar cinicamente o “discurso de ódio” alheio, como se o ódio – condensado no simbolismo da “luta de classes” e suas variantes – não estivesse na base mesma de sua formação ideológica. “O ódio cego contra o inimigo cria um impulso forte que quebra as fronteiras naturais das limitações humanas, transformando o soldado em uma eficaz máquina de matar, seletiva e fria. Um povo sem ódio não pode triunfar contra o adversário” – proclamou Che Guevara, o cristo esquerdista.

Ninguém está imune ao ódio político, decerto. Mas, no caso da esquerda, esse ódio não surge como fenômeno acidental ou contingente. Ele é quintessencial, elementar, quase metafísico. Como escreveu o filósofo francês André Glucksmann, maoísta arrependido, “o ódio precede e predetermina o objeto que fabrica para si mesmo”. O ódio esquerdista não precisa de razões, apenas de pretextos. No princípio era o ódio – eis a primeira sentença do livro sagrado da religião revolucionária.