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Nossa Senhora de Paris

Pessoas observam os estragos em Notre-Dame de Paris, após o incêndio. Bertrand Guay/AFP (Foto: )

“O cristianismo deu forma à Europa, imprimindo-lhe alguns valores fundamentais. Mesmo a modernidade europeia, que deu ao mundo o ideal democrático e os direitos humanos, recebe os seus próprios valores da herança cristã… Igreja na Europa, continua, pois, a contemplar Maria”

(Papa João Paulo II, Ecclesia in Europa, exortação apostólica pós-sinodal, junho de 2003)

Ainda não se sabe a causa da catástrofe, mas o simbolismo é contundente demais para ser ignorado. Felizmente, a fachada da Notre-Dame resistiu, mas muito se perdeu no interior da catedral, cujo incêndio evoca o drama de uma Europa também ferida de morte em sua essência espiritual, tateando em vão à procura de uma identidade cultural comum, que as potestades sem rosto do projeto europeu tentam artificialmente construir sobre os escombros deixados pelas paixões nacionalistas do século 20. O esqueleto chamuscado da imponente catedral gótica é o retrato de um continente que lançou ao fogo a própria alma – a seiva religiosa do Catolicismo –, e cujo corpo ressequido pende, tal como uma triste marionete, de cordéis cada vez mais frágeis.

“O que é a Europa?” – pergunta o grande historiador Christopher Dawson. E a resposta é tão breve quanto precisa: “É uma comunidade de povos que partilham uma tradição espiritual comum”. Por tradição espiritual comum, leia-se, é claro, Catolicismo. Antes que uma criação política, mero aglomerado de Estados-nações, e mais que uma subdivisão da sociedade internacional contemporânea, a Europa é uma realidade social nascida e criada no seio da Cristandade medieval. Daí que seja impossível compreender a sua história sem um estudo da cultura cristã, pois foi como rebento dessa cultura que, pela primeira vez, o continente tomou consciência de si, vendo-se como uma única comunidade moral e de fé. Não há civilização sem uma tradição religiosa que lhe insufle vitalidade e dinamismo. E, no caso da Europa, a fé cristã foi esse sopro vital.

A Europa moderna começa a tomar forma a partir do século 5, com a conversão ao Cristianismo dos bárbaros do Norte, que haviam recém invadido e destruído o Império Romano do Ocidente, deixando um vazio político e cultural que só a Igreja foi capaz de preencher. Como herdeira das instituições e da autoridade do Império, coube a ela a função de tutora e legisladora dos novos povos. Por meio do trabalho incansável de padres latinos da estirpe de Ambrósio, Agostinho, Leão e Gregório, a Igreja teve sucesso em incorporar os invasores à comunidade espiritual da Cristandade. Durante seis séculos, as fundações de uma nova sociedade cristã foram estabelecidas pela aliança entre a Igreja e os reinos bárbaros, com destaque para a atuação decisiva dos mosteiros, bastiões da educação clássica e cristã em terras remotas onde nem cidades havia.

A origem geográfica do desenvolvimento europeu foi o reino dos Francos (cristianizado desde o ano 496 com a conversão do rei merovíngio Clóvis I), que incluía boa parte da França, da Bélgica e da Alemanha central e ocidental. Esse foi o centro para o qual as forças vitais da cultura ocidental convergiram, e no qual se realizou pela primeira vez a unidade social da Cristandade no Ocidente. Essa unidade baseava-se na aliança entre a nova dinastia franca dos Carolíngios e o Papa, aliança consumada e consagrada pela coroação do imperador Carlos Magno no Natal do ano 800. Por todo o período, prevaleceu a concepção da Cristandade como uma comunhão entre Estado e Igreja, na qual o governante era tido por consagrado, o líder ungido do povo cristão.

Mesmo após o colapso político do Império Carolíngio (por obra das invasões vikings e magiar), aquela concepção se manteve dominante, sendo herdada pelo novo império fundado por reis saxões da Germânia, pelos estados feudais que originaram o reino da França, e até pelo reino anglo-saxão da Inglaterra, fundado por Alfredo de Wessex. Com efeito, a Cristandade medieval foi uma extensão do império e cultura carolíngios, um período no qual a Europa se manteve como região relativamente atrasada na fronteira extrema do mundo civilizado.

No século 11, todavia, a cultura ocidental começou a se expandir desde os seus núcleos carolíngios para todas as direções. Ao longo dos quatro séculos seguintes, a Europa passou de grande sertão bárbaro a centro universal de cultura, igualando-se às velhas civilizações orientais em poder e riqueza, mas superando-as em energia criativa. Foi quando nasceram as grandes cidades e Estados europeus; surgiram novas formas de arte, poesia e filosofia, bem como novas instituições: a cavalaria medieval, as cadeiras do parlamento, as ordens religiosas e, por fim, mas não por último, as universidades e as catedrais – ou seja, tudo aquilo que podemos entender como o cimento civilizacional que uniu as diversas nações europeias.

Ademais, a unidade da cultura europeia era reforçada pelo uso do Latim como língua sacra na liturgia (e como língua geral no ensino), pelo simbolismo e imagética de uma arte religiosa comum, e pelos ideais e convenções do comportamento aristocrático encarnado no culto à cavalaria. Todas essas influências se estenderam muito além das fronteiras do sul latino e do oeste carolíngio, atingindo a Europa central e oriental, e incorporando nações como Polônia, Lituânia e Hungria à grande sociedade da Cristandade ocidental.

Como se sabe, aquela unidade espiritual europeia foi rompida a partir de uma sucessão de importantes acontecimentos históricos, começando com o Renascimento (que quebrou a aliança entre reis e Papado), passando pela Reforma Protestante (que estilhaçou a “Paideia” latina), pelo Iluminismo e a Revolução Francesa (que fomentaram toda sorte de religião política, em especial, a do secularismo), e, de maneira definitiva, pelas duas Guerras Mundiais do século 20, que aniquilaram a sociedade europeia de povos, e arrancaram a Europa de sua posição tradicional de liderança da civilização ocidental. Ao fim daquele período devastador, que deixou marcas e cicatrizes profundas – a começar por uma Cortina de Ferro dividindo o continente (e até mesmo uma de suas mais importantes cidades) ao meio –, era como se a Europa não fosse mais que uma lembrança espectral de tempos imemoriais.

Foi para tentar recuperar a identidade cultural perdida que, em 2001, os líderes da União Europeia convocaram uma assembleia constituinte a fim de elaborar uma Constituição para o bloco, um documento que recebeu o bizarro título de Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa. Tratava-se de uma espécie de golpe de estado supranacional patrocinado por burocratas utópicos, impacientes com a lentidão dos processos históricos espontâneos, e ansiosos por um “Grande Salto” rumo a uma efetiva união dos povos europeus. A esperança era que, ao projetar a existência de algo carente de uma Constituição, esse algo acabaria vindo à luz. Com a iniciativa, a elite governante do continente tentava criar ex nihilo, e em laboratório, uma comunhão espiritual europeia.

O fato significativo é que, em lugar de buscar inspiração na tradição espiritual que, efetivamente, havia criado aquela unidade no decorrer dos séculos, as divindades de Bruxelas optaram justamente por excluir do documento qualquer menção ao Cristianismo, voltando-se, em vez disso, para o secularismo radical do período iluminista, sobretudo o francês. Em 2003, a versão final do documento foi apresentada. Já no preâmbulo, temos uma afirmação clara daquilo que o cardeal jesuíta Henri de Lubac chamou de humanismo ateu, uma ética de pretensões universalistas, inteiramente secular e intramundana, e que deveria servir como a religião civil do bloco. Naquela linguagem propositadamente insípida e sem caráter do jargão diplomático, a União dizia-se inspirada “no patrimônio cultural, religioso e humanista da Europa, de que emanaram os valores universais que são os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana, bem como a liberdade, a democracia, a igualdade e o Estado de Direito”. Nenhuma menção específica à religião que deu origem a tais valores.

Ocorre que não há vazio religioso. A utopia de uma civilização fundada sobre uma religião civil laicista, que viria a substituir o Catolicismo, já se mostrou uma terrível ilusão. Enquanto a Europa se esvazia espiritualmente, equilibrando-se sobre simulacros precários de religiosidade, os jihadistas islâmicos do novo milênio buscam reverter as derrotas militares de Poitiers (732), Lepanto (1571) e Viena (1683), comemorando nas redes sociais o incêndio da catedral que, no século 12, os católicos franceses começaram a erguer em louvor a Virgem Maria. Ironia do destino: o “drama do humanismo ateu” (para citar Lubac mais uma vez) pavimenta o caminho para uma teocracia implacável, na qual o conceito de laicidade (de origem católica) jamais foi sequer concebido.

Nem tudo é desesperança e niilismo, contudo. Muito se perdeu no interior da Notre Dame, como disse no início. Mas o que sobreviveu à fúria infernal das labaredas não é menos simbólico do que a fachada enegrecida: nada menos que todo o altar principal, a monumental estátua da Virgem (esculpida no século 18 por Nicolas Coustou), a grande cruz de madeira folheada a ouro e relíquias como a Santa Coroa e pedaços da cruz e dos pregos usados na crucificação. A resiliência miraculosa desses objetos, espelhada na tenacidade dos devotos que entoavam a Ave Maria nos arredores da catedral em chamas, aponta a única saída possível para a França, caso a nação deseje escapar do impasse existencial em que se encontra. É só valorizando sua herança espiritual católica que a velha nação dos Francos poderá resistir ao incêndio civilizacional que se aproxima velozmente, e se renovar enquanto sociedade. Citando Christopher Dawson mais uma vez: “No mundo moderno, há uma tradição cultural sagrada que coube à Igreja nutrir e preservar. Por mais secularizada nossa civilização moderna possa se tornar, essa tradição permanece como um rio no deserto, e uma educação religiosa genuína pode usá-la para irrigar as terras áridas, mudando a face do mundo com a promessa de uma vida nova”.

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