“They should not hear a word from me
Of selfishness or scorn,
If only I could find the door,
If only I were born”
– G. K. Chesterton, By the Babe Unborn
Na sexta-feira passada (03/08), tiveram início no STF as audiências públicas para discutir a proposta de descriminalização do aborto até a 12.ª semana de gestação. As audiências ocorrem no contexto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 ajuizada pelo PSol e pelo Instituto de Bioética (Anis), que requerem do tribunal, cada vez mais legiferante, o exame da constitucionalidade dos dois artigos do Código Penal (124 e 126) que preveem penas para quem realize o procedimento que, em setores da imprensa, vem sendo chamado eufemisticamente de “interrupção voluntária da gravidez” – como se o resultado dessa “interrupção” não fosse a morte de um feto humano.
Como era de se esperar, as audiências públicas suscitaram um acalorado debate nas redes sociais entre os “pró” e os “contra” a descriminalização. Na qualidade de integrante do segundo grupo, manifestei-me nas redes sociais com a seguinte postagem: “Quem quer que tenha visto uma ultrassonografia nos dias de hoje só pode ser favorável ao aborto se tiver uma alma muito adoecida”. Ato contínuo, meu post foi invadido por uma turba de militantes feministas em fúria, quase todas com o mesmo perfil: jovens, brancas, universitárias, de classe média. Os argumentos com que buscavam rebater o meu comentário – se fosse mesmo possível chamar suas erupções verbais de “argumentos” – giravam em torno de alguns topoi habituais do discurso feminista, martelados diariamente na cabeça dessas jovens, na escola, na faculdade, nos programas de televisão, nos jornais, nas revistas e na propaganda.
Para começar, surgiam os números mágicos de sempre: 200 mil mulheres morrem vítimas de abortos clandestinos todos os anos (sim, a palavra vítima é sempre empregada nesse sentido, como se a mulher que opta por abortar fosse mera paciente de uma ação alheia à sua vontade). Algumas falavam em 500 mil e até mesmo 1 milhão de mulheres mortas. Reproduzidos e repetidos por ativistas pró-aborto, aqueles números são pura ficção. Mais ainda: são delírio.
Fazendo uma rápida consulta ao Datasus, o banco de dados do Sistema Único de Saúde (SUS), e analisando uma série histórica de 20 anos (de 1996 a 2016), podemos constatar o seguinte: se olharmos para os números de morte obstétrica direta (incluindo as categorias “outros tipos de aborto”, “abortos não especificados” e “falhas de tentativa de aborto”, e excluindo os abortos espontâneos e os casos previstos em lei), ficamos com números que não ultrapassam 110 mortes anuais, e isso em 1997, um ano extraordinário em termos de mortalidade obstétrica direta. Restringindo-nos ao período posterior a 2009, notamos uma queda acentuada de casos registrados, sendo que, em 2016, tivemos apenas 44 mortes. Toda morte deve ser lamentada, por certo, mas estamos muito longe do cenário cataclísmico pintado pelos ativistas pró-aborto.
À apresentação do número mágico, seguia-se uma tese espantosamente fatalista em gente tão jovem, revelando um desejo mal disfarçado de brincar de Deus: as mulheres que abortam o fazem por não ter condições financeiras ou psicológicas de criar os filhos, impondo-lhes como consequência inevitável um futuro infeliz do qual seria melhor poupá-los preventivamente. “Ele [o bebê] vai acabar morrendo de qualquer jeito”, objetava uma feminista. “Por que fazê-lo nascer e sofrer se a gente pode acabar com isso desde o começo?”. Outra acusava a minha falta de empatia para com o futuro da mãe e da criança. Como esse futuro pode vir a ser ruim, sua proposta era ceifá-lo desde já. Uma terceira instava-me a “pensar na vida de bosta (sic) que a criança vai ter”. Para evitar destino tão cruel, e com um amor ao próximo que mal cabia no peito, prescreveu o remédio de sempre: cortar o mal pela raiz.
O argumento mais recorrentemente usado tinha relação direta com o anterior. Quase todas as feministas que chegaram à minha postagem diziam falar em nome das mulheres negras e pobres, segundo elas as que mais sofrem com o aborto clandestino, já que “as ricas podem pagar clínicas caras” e realizar “abortos seguros” (seguros para as mães, não para os fetos, por suposto). Pois bem, o dado curioso é que essas feministas – quase todas brancas e nada pobres, relembro – alegam defender as mulheres negras e pobres a despeito da opinião média dessas mesmas mulheres.
Ora, em fevereiro deste ano o Ibope Inteligência publicou uma pesquisa sobre a opinião dos brasileiros acerca de assuntos tidos por polêmicos, entre eles a pena de morte, a redução da maioridade penal, o casamento entre homossexuais e a legalização do aborto. Confirmando uma tendência que eu apontara em artigo de abril do ano passado intitulado Povo de direita, elite de esquerda: a cismogênese complementar e o abismo cultural entre o brasileiro médio e a sua classe falante, os dados revelam um aumento do conservadorismo do brasileiro médio, que na ocasião atribuí a uma reação ao aumento correspondente do progressismo das nossas classes falantes.
Em relação à legalização do aborto especificamente, a pesquisa mostra um aumento de dois pontos percentuais no número de opiniões contrárias, que passou de 78% no período entre 2010 e 2016 a 80% agora em 2018. Fazendo um recorte por sexo, renda familiar e raça/cor, constatamos o seguinte: entre os homens, 79% são contrários à legalização; entre as mulheres, 81%. Entre os que ganham acima de cinco salários mínimos, 72% são contrários à legalização; entre os que ganham menos de um salário mínimo, 86%. Entre os brancos, 78% são contrários à legalização; entre os negros e pardos, 81%.
Fonte: Ibope inteligência.
Fonte: Ibope Inteligência.
Em suma, o grupo social que mais rejeita a proposta de legalizar o aborto no Brasil é composto justamente por mulheres negras e pobres. E, quando as feministas brancas de classe média falam em seu nome, é menos para representá-las do que para silenciá-las. Ou, na gramática da novilíngua progressista universitária, para usurpar-lhes o “lugar de fala”. Resta comprovada, pela milésima vez, o caráter fraudulento e pretextual da retórica progressista, que, sob a bela embalagem da defesa dos direitos humanos, oculta na verdade um desejo insaciável de poder. No caso, o poder do mais forte (os já nascidos) sobre o mais fraco (os ainda por nascer).