“Era o vocabulário de Jean-Jacques aplicado ao país semivirgem, apenas egresso de um longo colonato”
(Paulo Prado, Retrato do Brasil)
“Não há no Brasil, não há no mundo, ninguém tão terno, ninguém tão passarinho como o Mané. O sujeito que se aproxima dele tem vontade de oferecer-lhe alpiste na mão. Os pombos aqui da Cinelândia, os pardais do Boulevard Vinte e Oito de Setembro, diriam: — ‘Nosso irmão, o Mané'”
(Nélson Rodrigues, Fatos & Fotos, 23 de junho de 1962)
Em sua estreia na Copa 2018, a seleção brasileira decepcionou muita gente, embora talvez não devesse. Um time que leva de 7 a 1 na semifinal da Copa anterior, dentro de casa, não poderia ter chegado a esta como favorita. Se chegou, é porque há algo de muito errado na relação entre o brasileiro e o real. Aquela acachapante humilhação deveria ter servido para refrear um pouco o nosso ufanismo futebolístico. Se não serviu, é porque a nossa autoilusão nos empurra para novas, e novamente inúteis, decepções. E, sem querer extrair grandes conclusões antropológicas sobre a alma nacional a partir do futebol, especulação que sempre tende a dar com os burros n’água, é preciso reconhecer que o nosso comportamento como torcedor diz algo sobre a situação cultural presente. Esse algo pode ser definido muito simplesmente nestes termos: depois de décadas em que o nosso imaginário foi formatado por uma intelligentsia delirante, os brasileiros tornamo-nos imunes à experiência, insensíveis aos erros pretéritos, que varremos para baixo do tapete, nalgum canto do sótão embolorado de nossa inconsciência coletiva. A reação de surpresa em face do empate com a Suíça parece comprová-lo. O resultado foi tido por coisa antinatural. E, claro, culpa do juiz.
Sim, a comissão técnica atual não é a mesma da Copa passada. Sim, houve a entrada de vários novos (e bons!) jogadores. Sim, temos Neymar, indiscutivelmente um craque. E, sim, o novo técnico realizou um bom trabalho, dando padrão de jogo ao time e tornando-o competitivo, por aliar criatividade e consistência tática. Tudo isso é verdade. Mas é preciso lembrar que as eliminatórias sul-americanas têm um grau de dificuldade bem mais baixo que as europeias. E que, além disso, os amistosos de preparação, nos quais a seleção brasileira saiu-se muito bem, não servem de parâmetro, sobretudo porque a maioria das seleções europeias não parece levá-los assim tão a sério quanto o fazemos.
Portanto, todo o sucesso recente e o bom futebol jogado durante a fase de preparação não bastam para mudar a seguinte realidade: a seleção que entrou em campo no último domingo é a mesma, a Canarinho, que levou nada menos que dez gols nos últimos dois jogos disputados na Copa anterior (se incluirmos os três do jogo contra a Holanda na disputa pelo terceiro lugar). Não é saudável que o tenhamos esquecido tão rapidamente. Bem como a derrota de 1950, o trauma do 7 a 1 deveria ter servido para nos amadurecer futebolisticamente. Lamentavelmente, não parece ter sido o caso.
Qual, afinal, deveria ser o espírito do torcedor brasileiro (incluindo aí jornalistas e comentaristas profissionais de futebol) ao pôr os pés na Rússia? Penso que o de total e irrestrita humildade. Tínhamos de entrar na competição discreta e parcimoniosamente, sem o peito estufado dos favoritos, cientes da necessidade de muito trabalho, planejamento e esforço, como se fôssemos uma equipe estreante, que, para triunfar, tivesse de vencer obstáculos hercúleos. Mas a nossa curta memória nos traiu. Eternamente presos em nosso ouroboros identitário, chegamos embalados pelos estereótipos autolisonjeiros de sempre: “o país do futebol”, “o futebol-arte”, “o melhor futebol do mundo”, “a ginga do jogador brasileiro”, entre outros.
Em nenhum outro lugar a influência do romantismo de matriz francesa em nossa cultura se faz tão presente quanto no futebol. Valorizamos a espontaneidade contra o esforço, o sentimento contra a razão, o improviso contra o planejamento, o instinto contra a norma, a natureza contra a cultura. Para nós, o futebol é um dom natural, matéria bruta e insubmissa aos rigores da forma, torrente vital que uma disciplina excessiva só poderia desnaturar. É como se brotasse tal qual as nascentes dos rios amazônicos, ou com a mesma exuberância de nossas matas. Na imaginação pátria, o jogador brasileiro é o bom selvagem de chuteiras.
Não é por acaso que, se ninguém questiona o posto de Pelé como maior jogador de todos os tempos, reverenciado como tal no mundo todo, o xodó da intelligentsia futebolística brasileira é, todavia, Mané Garrincha, figura romântica que encarna a quintessência do nosso futebol-arte, em contraste com o futebol-ciência praticado pelos “gringos”. O instintivo e dionisíaco nativo de Pau Grande demolindo a rigidez formal e a disciplina apolínea dos “Joões” estrangeiros: eis a cena primordial, a imagem mítica do nosso futebol, gravada na alma dos torcedores, reproduzida periodicamente na fala dos locutores, no texto dos cronistas e nas campanhas dos publicitários.
Tão arraigada é aquela autoimagem que, ao longo da história, jogadores e treinadores tidos por incompatíveis com ela acabaram estigmatizados como traidores do futebol brasileiro, sendo o caso mais emblemático o de Dunga, alvo de uma implacável perseguição midiática que o transformou no bode expiatório responsável pela baixa qualidade do futebol praticado pela seleção, eliminada pela Argentina na Copa de 1990. Para a nossa classe falante futebolística, Dunga era o anti-Garrincha, e a famigerada “era Dunga”, um período inautêntico e tenebroso, em que o nosso futebol teria violentado a própria essência, catequizando e domando o craque silvícola, versão esportiva do homem natural rousseauniano.
É a utopia do eterno retorno de uma “era Garrincha” o que, de maneira cíclica, anima e renova o nosso espírito a cada quatro anos, quando chegamos à Copa da vez imaginando poder vencer a engessada civilização dos “Joões” com a energia vital de nossa natureza indomável, simbolizada por um drible do Mané. Se, contudo, essa cultura futebolística tem relação com alguns de nossos melhores momentos, também foi responsável por nossos mais estrepitosos fracassos. Numa fase em que o futebol torna-se cada vez mais competitivo, mais exigente em termos físicos e táticos, e em que a arte não pode prescindir da ciência, cabe à comissão técnica atual blindar o espírito dos jogadores contra o romantismo atávico de nossa cultura futebolística, e encarar a Copa à luz fria do 7 a 1, não aos embalos do som esganiçado da voz de Galvão Bueno ou do batuque do Olodum. Não é hora de apostar imprudentemente no poder criativo da natureza, mas de lembrar que ele também pode ser destrutivo. Sobretudo no Brasil, onde, como nos ensinou o filósofo Vilém Flusser (o mais brasileiro dos tchecos), a natureza é “pérfida e madrasta”, exigindo cuidado e disciplina constantes para que as raízes não rachem o solo, as trepadeiras não cubram as paredes e as térmitas não corroam as estruturas da casa.