“O que se deve condenar acima de todos os conceitos é a ambígua e covarde insuficiência da religião, como a do cristianismo: mais claramente, da Igreja, a qual, em vez de encorajar à morte e ao autoaniquilamento, protege todos os falhados e doentes e faz com que eles se reproduzam.” (Friedrich Nietzsche, A Vontade de Poder, 1906)
No artigo da semana passada, vimos que a lógica sacrificial pagã, segundo a qual há vidas humanas descartáveis, persiste no raciocínio de intelectuais materialistas contemporâneos como Richard Dawkins e Steven Pinker. No de hoje, pretendo mostrar que, na realidade, o elogio do sacrifício como sinônimo de vigor espiritual e meio de fortalecimento da espécie humana – em contraste com uma alegada tibieza do cristianismo, para o qual cada vida individual é sagrada – vem sendo uma constante na imaginação ocidental moderna, desde ao menos o século 16. Com efeito, pensadores icônicos da modernidade levaram sua ojeriza ao cristianismo ao ponto de se derreterem em loas a religiões pretensamente mais “vigorosas”, incluindo aí as variantes pagãs da Antiguidade clássica e, em seguida, o próprio islã.
Nicolau Maquiavel foi, dentre eles, um dos mais diretos. Em Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, por exemplo, o filósofo florentino compara os homens da Antiguidade aos de sua época, lamentando que os primeiros amassem mais a liberdade e fossem mais robustos que os segundos, fenômeno que ele atribuía à diferença entre a religião dos antigos e a de seus contemporâneos, ou seja, o cristianismo. Fazendo uma apologia dos sacrifícios pagãos, cuja força estética o comovia, escreve Maquiavel:
“Com efeito, nossa religião, mostrando a verdade e o caminho único para a salvação, diminuiu o valor das honras deste mundo. Os pagãos, pelo contrário, que perseguiam a glória (considerada o bem supremo), empenhavam-se com dedicação em tudo que lhes permitisse alcançá-la. Vê-se indícios disto em muitas das antigas instituições, a começar pelos sacrifícios, esplendorosos em comparação com os nossos, bastante modestos, e cujo rito, mais piedoso do que brilhante, nada oferece de cruel capaz de excitar a coragem.”
O elogio do sacrifício como sinônimo de vigor espiritual e meio de fortalecimento da espécie humana – em contraste com uma alegada tibieza do cristianismo, para o qual cada vida individual é sagrada – vem sendo uma constante na imaginação ocidental moderna
Condenando abertamente o desapego cristão às glórias deste mundo, continua o ideólogo do absolutismo:
“A pompa das cerimônias antigas era igual à sua magnificência. Havia sacrifícios bárbaros e sangrentos, nos quais muitos animais eram degolados; e a visão reiterada de um espetáculo tão cruel endurecia os homens. As religiões antigas, por outro lado, só atribuíam honras divinas aos mortais tocados pela glória mundana, como os capitães famosos, ou chefes de Estado. Nossa religião, ao contrário, só santifica os humildes, os homens inclinados à contemplação, e não à vida ativa. Para ela, o bem supremo é a humildade, o desprezo pelas coisas do mundo. Já os pagãos davam a máxima importância à grandeza d’alma, ao vigor do corpo, a tudo, enfim, que contribuísse para tornar os homens robustos e corajosos. Se a nossa religião nos recomenda hoje que sejamos fortes, é para resistir aos males, e não para incitar-nos a grandes empreendimentos. Parece que esta moral nova tornou os homens mais fracos, entregando o mundo à audácia dos celerados.” (grifos meus)
O leitor perspicaz terá notado aí, em forma embrionária, o tópos da “moralidade de escravos”, com o qual, no século 19, Friedrich Nietzsche viria a caracterizar o cristianismo. Entre Maquiavel e Nietzsche, todavia, também Jean-Jacques Rousseau emitira juízo similar, mostrando não se tratar de mera idiossincrasia de tal ou qual pensador, mas de uma impressão contínua e recorrente na imaginação moderna. Em Do Contrato Social, obra publicada em 1762, lemos que:
“O cristianismo é uma religião de todo espiritual, preocupada unicamente com as coisas do céu. A pátria do cristão não é deste mundo. É certo que ele cumpre o seu dever, mas o faz com uma profunda indiferença no que concerne ao bom ou mau êxito de seus cuidados. Uma vez que nada se lhe tenha a reprovar, a ele pouco importa irem as coisas bem ou mal aqui embaixo. Se o Estado floresce, o cristão mal ousa desfrutar da felicidade pública; ele receia orgulhar-se da glória de que goza o seu país; se o Estado perece, ele abençoa a mão de Deus que se abate sobre o povo (…) O cristianismo prega unicamente servidão e dependência. Seu espírito é bastante favorável à tirania, para que esta não se sirva com frequência dele. Os verdadeiros cristãos são feitos para serem escravos; e eles o sabem e em hipótese nenhuma se amotinam; esta vida breve tem muito pouco preço aos seus olhos.”
Nota-se em todos esses pensadores uma aversão ao cristianismo justo pelo que essa religião tem de sui generis, a saber: sua capacidade de relativizar o poder político mundano (erguido em última instância sobre a lei do mais forte) e encará-lo sub specie aeternitatis, ou “da perspectiva da eternidade”. Sob essa ótica, não há exagero em dizer que o processo de secularização no Ocidente – de Maquiavel a Nietzsche, de Rousseau a Marx, passando por todos os darwinistas sociais e demais materialistas – tem consistido numa permanente tentativa de eliminar a tensão cristã entre poder espiritual e poder temporal, fazendo com que o segundo passe a englobar e absorver o primeiro. Dar o todo a César, inclusive a parte que cabe a Deus: eis, talvez, um bom resumo da história intelectual do Ocidente nos últimos cinco séculos.
O primeiro a desfazer formalmente aquela tensão, consagrada por Santo Agostinho no binômio cidade de Deus/cidade dos homens, foi Thomas Hobbes. Em sua obra magna O Leviatã, Hobbes lança um ataque frontal à distinção agostiniana, ao afirmar que “governo espiritual e temporal são apenas palavras trazidas ao mundo para confundir os homens, enganando-os quanto a seu soberano legítimo”, e que “nesta vida, o único governo existente, seja ele do Estado ou da Religião, é o governo temporal”.
Reconhecendo, neste aspecto, sua dívida intelectual para com o colega inglês, Rousseau reprova-o apenas por não ter levado o raciocínio até o fim, graças talvez a uma fé cristã que o pensador genebrino considerava residual e extemporânea. Ainda em Do Contrato Social, observa Rousseau que “de todos os autores cristãos, o filósofo Hobbes é o único a ter enxergado a doença e o remédio, o único a ter ousado propor a união das duas cabeças da águia, e de tudo remeter à unidade política, sem a qual nenhum Estado ou governo será jamais bem constituído. Mas ele deveria ter percebido que o espírito dominante do cristianismo era incompatível com o seu sistema, e que o interesse do padre seria sempre mais forte que o do Estado” (grifos meus).
Ocorre que, em se tratando da evolução da imaginação secular, a reprimenda não parece ser justa. Pois o que à época Rousseau pareceu não notar é que a religião de Hobbes já era, por assim dizer, uma versão imanentizada do cristianismo. Foi Hobbes quem, muito antes de Rousseau, apontou de modo pioneiro o estorvo que o cristianismo representava para a autoridade política terrena, bem como a imunidade desenvolvida pelos cristãos contra toda sorte de reverência mística ao Estado.
O processo de secularização no Ocidente tem consistido numa permanente tentativa de eliminar a tensão cristã entre poder espiritual e poder temporal, fazendo com que o segundo passe a englobar e absorver o primeiro
Com efeito, em Do Cidadão, obra publicada nove anos antes de O Leviatã, o autor já questionava: “O que pode ser mais pernicioso a qualquer Estado [ou commonwealth, no original] do que ter seus cidadãos impedidos de obedecerem a seus príncipes por medo de castigos eternos?”
Dois séculos mais tarde, Nietzsche generalizaria o que Hobbes diagnosticou para o domínio particular da política. Com o filósofo alemão, a relativização cristã do poder mundano – já não formulado em termos políticos, mas naturalistas – é contestada de modo implacável. Em A Vontade de Poder (livro póstumo publicado por sua irmã Elisabeth e seu amigo Peter Gast), o intelectual que, junto a Dostoievski, foi no seu tempo quem divisou com mais clareza as consequências de um mundo descristianizado, faz uma defesa apaixonada da lógica sacrificial pagã e da precedência da coletividade (no caso, a espécie) sobre o indivíduo. Que o leitor me perdoe a longa citação, todavia essencial à compreensão do problema:
“Pelo fato de que o cristianismo empurra para o primeiro plano a doutrina do desinteresse e do amor, ele ainda não postulou, de modo algum, o interesse da espécie como um valor mais alto do que o interesse individual. Seu efeito propriamente histórico, a fatalidade do efeito, permanece, ao contrário, justamente o incremento do egoísmo, do egoísmo individual até um ponto extremo (até o ponto extremo da imortalidade individual). Com o cristianismo, o indivíduo isolado foi tomado de modo tão importante, posto de modo tão absoluto, que não se podia mais sacrificá-lo: mas a espécie só existe por meio do sacrifício humano (...)Todas as ‘almas’ seriam iguais perante Deus: mas esta é justamente a mais perigosa de todas as possíveis valorações! Equiparam-se os indivíduos, e assim põe-se em dúvida a espécie, favorece-se uma práxis que chega a ser a ruína da espécie: o cristianismo é o contraprincípio oposto à seleção. Se o degenerado e doente (‘o cristão’) deve ter tanto valor quanto o saudável (‘o pagão’), ou mesmo ainda mais, segundo o parecer de Pascal sobre saúde e doença, então o curso natural de desenvolvimento acha-se invertido e a não-natureza tornou-se lei (...)Esse amor universal aos homens é, na prática, a prerrogativa de todos os sofredores, malsucedidos e degenerados: ela, de fato, arruinou e amorteceu a força, a responsabilidade, o alto dever de sacrificar homens. Segundo o esquema do critério de valor cristão, ainda restaria apenas sacrificar-se a si mesmo: mas esse resto de sacrifício humano, que o cristianismo concedeu e ele mesmo aconselhou, não tem mais nenhum sentido, do ponto de vista da cultura total. Para o crescimento da espécie é indiferente se um indivíduo isolado qualquer se sacrifica a si mesmo (seja ao modo monástico ascético ou com o auxílio de crucificações, fogueiras e cadafalsos, como ‘mártir’ do erro). A espécie tem necessidade do ocaso dos falhados, fracos e degenerados: mas o cristianismo recorre justamente a eles como potência conservadora, e esta faz aumentar ainda mais aquele instinto dos fracos, em si mesmo já tão potente, de se pouparem, se conservarem e de se manterem reciprocamente. O que é a ‘virtude’ e o ‘amor humano’ no cristianismo senão precisamente essa reciprocidade da conservação, essa solidariedade dos fracos, esse impedimento à seleção? O que é o altruísmo cristão senão o egoísmo das massas de fracos, o qual adivinha que, se todos cuidarem uns dos outros, cada um se conservará o máximo possível? (...) Se não se sente uma tal mentalidade como uma extrema imoralidade, como um crime contra a vida, é porque se pertence à parte doente e se possuem os seus instintos (...) O autêntico amor humano exige o sacrifício para o máximo bem da espécie — ele é duro, ele é uma plena autossuperação, pois precisa do sacrifício humano. E esta pseudo-humanidade, que se chama cristianismo, quer justamente conseguir que ninguém seja sacrificado.” (grifos meus)
São bem conhecidas as terríveis consequências que, dali a algumas décadas, a apologia ao sacrifício e à “vitalidade” pagã teriam na terra natal de Nietzsche. E, conquanto seja injusto atribuir ao filósofo a responsabilidade direta pelo genocídio, é inegável que esse tipo de argumentação nos ajuda a compreender o substrato filosófico da empreitada nazista. Como argumenta René Girard em Eu via Satanás cair como um relâmpago: “Se existe uma essência espiritual do movimento, ela é expressa por Nietzsche”. Seguiremos daí na semana que vem.
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