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“Já vimos o melhor de nosso tempo: maquinações, imposturas, traições e toda sorte de desordens ruinosas nos acompanham sem sossego até à sepultura” (William Shakespeare, Rei Lear, Ato I, Cena 2)
No último dia 18, circulou amplamente pela internet um trecho do depoimento do general Gustavo Henrique Dutra, ex-chefe do Comando Militar do Planalto, acerca dos atos do 8 de janeiro. Explicando, na CPI da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o adiamento em um dia da prisão dos manifestantes acampados em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília, Dutra narrou com as seguintes palavras o seu diálogo com o novo mandatário do país:
No telefonema descrito pelo militar, Lula dizia-lhe abertamente querer prender indiscriminadamente seus opositores políticos. Para o referido mandatário, o crime ali considerado era obviamente o de “bolsonarismo”, um crime político.
“Para mim, foi uma surpresa. Eu nunca imaginei falar com o presidente da República naquele momento. E falei exatamente assim: ‘Presidente, boa noite. Aqui é o general Dutra, presidente militar do Planalto’. Ele falou: ‘General, são criminosos, têm que ser todos presos’. Eu dizia: ‘presidente, ninguém tem dúvida disso, estamos todos indignados. Serão presos. Estamos todos no mesmo passo’ (...) O presidente Lula, eu tenho uma admiração pela inteligência emocional dele (...) Isolamos a praça, e aí acontece um fato interessante, porque havia, em algumas pessoas, um nível de fanatismo, um nível, não entendo, de transe, que quando nós isolamos as praças, e dá para ver no primeiro vídeo que o senhor mostrou, dá para a linha de soldados lá isolando as praças, e quando nós isolamos as praças as pessoas estavam achando lá que estávamos isolando as praças para protegê-las, e foram dormir”.
Reagindo ao depoimento em minhas redes sociais, um adjetivo que logo me veio à mente foi “pérfido”, seguido de “covarde” e “indecente”. Chamou-me atenção a pressa do general em atender às vontades de um político, ele sim, notoriamente antidemocrático, aliado histórico das mais sanguinárias ditaduras comunistas do continente, incluindo a nicaraguense, recentemente condenada na ONU, mas não pelo governo brasileiro. Pois, no telefonema descrito pelo militar, esse político dizia-lhe abertamente querer prender indiscriminadamente seus opositores políticos, sem que fosse preciso proceder a uma adequada individualização de condutas e apuração da autoria dos crimes efetivamente cometidos naquele dia. Para o referido mandatário, o crime ali considerado era obviamente o de “bolsonarismo”, um crime político. Diagnóstico que, ao falar genericamente em “fanatismo” e “transe” – sem, curiosamente, nada mencionar sobre o fanatismo, o transe e o radicalismo político-ideológico dos atuais ocupantes do poder –, o general subscreveu.
Mas, pior que a subserviência foi o tom de escárnio com que Dutra tratou todos aqueles que, embora decerto equivocados em sua interpretação do quadro político, depositaram nas Forças Armadas uma última esperança de preservação da ordem institucional. À luz dos acontecimentos recentes, talvez chegue mesmo a ser tentador, para muitos, debochar dos que nutriram essa delirante esperança. Convém lembrar, todavia, que o processo eleitoral fora conduzido por autoridades eleitorais parciais, que, ademais de se imiscuir indevidamente na decisão legislativa quanto aos mecanismos de auditabilidade do voto, e manifestarem abertamente o seu desejo pela vitória de um dos candidatos, perseguiram ostensivamente todos os que seguiram os trâmites institucionais legítimos para questionar o resultado, incluindo o partido político do presidente que tentara a reeleição. E que, ao contrário do que disseram à época o presidente do TSE e sua imprensa amestrada, o relatório das Forças Armadas sobre a segurança do processo eleitoral não excluiu a possibilidade de fraude ou inconsistência as urnas eletrônicas (ver a própria nota de esclarecimento do Ministério da Defesa publicada em 10/11/2022).
Foi graças a isso, ao comportamento indevido dos responsáveis por administrar um processo eleitoral que não lhes pertence, e cujo vitorioso pareciam ansiosos por proclamar de antemão, que boa parte do eleitorado desconfiou e desconfia até hoje do resultado das urnas. Dessa parte, alguns milhares decidiram, sem saber muito bem por que, ir para a frente dos quartéis, convictos de que a ninguém mais podiam recorrer, e de que, tal como torcedores rivais triunfantes, as autoridades os tratavam com total desprezo e escárnio – como no célebre “Perdeu, mané!”, proferido por Luís Roberto Barroso. Assim desesperados, sentindo-se lançados num estado de força bruta, e já não mais num Estado de Direito, não é difícil compreender que tenham tido a má ideia de apelar aos titulares naturais do uso da força, a qual, ao fim e ao cabo, usaram contra os próprios demandantes.
Com efeito, aqueles que o mandatário socialista queria ver indiscriminadamente presos, assim o foram em seguida, como se alvoroçou em cumprir o general, recorrendo à primeira pessoa do plural em sinal de sua lealdade: “Prendemos mais de mil pessoas na praça”. Esses mais de mil, dentre os quais crianças e idosos, foram conduzidos em ônibus a um ginásio da polícia, e ali mantidos por horas a fio, com acesso escasso a banheiros e alimentação. Acusados coletivamente por Alexandre de Moraes, os suspeitos foram obrigados a assinar uma “nota de culpa” confessando ter cometido atos terroristas (segundo os artigos 2º, 3º, 5º e 6º da Lei 13.260 de 2016) e crimes de associação criminosa e tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (artigos 288 e 359-L do Código Penal).
Obviamente sem se importar com quem tinha ou não cometido tal e qual crime (afinal, atos muito piores de depredação e vandalismo já haviam sido cometidos ali mesmo na Praça dos Três Poderes por seus aliados radicais do MST), o líder político mais ressentido da histórica republicana – coisa que até um jornal atucanado como o Estadão recém admitiu em editorial –, obtinha seu início de vingança. Uma vingança com requintes de crueldade, como quando, após ser perguntada se era ela a pessoa passando mal durante a detenção ainda no Planalto, pois parecia andar com dificuldade, uma “fascista, golpista e terrorista” (como a imprensa servil ao novo regime fazia questão de descrever genericamente todo apoiador de Bolsonaro, justificando absolutamente qualquer violência contra eles) recebeu, sem reagir, uma rasteira de um policial, que a derrubou violentamente no chão e a algemou. Estava aberta a temporada de prisões em massa, cujo objetivo era menos o de punir as pessoas pelo que efetivamente tivessem feito, e mais por aquilo que eram, representantes de uma cosmovisão, valores e inclinação política cuja existência o velho sistema neorrepublicano da assim chamada “redemocratização” (quanta ironia!) decidira, a partir de então, proibir definitivamente no Brasil. Para o general Dutra, todavia, do outro lado da linha estava apenas alguém digno de admiração por sua “inteligência emocional”. E, dormindo no acampamento em frente ao quartel, apenas fanáticos desprezíveis, merecedores de toda humilhação.
De início, confesso ter recorrido ao adjetivo “pérfido” de maneira genérica, talvez vaga... Mas, em seguida, descobri que, analisando a fala do general Dutra e a postura das Forças Armadas relativa ao 8 de janeiro, um coronel da PM do estado de Sergipe, Henrique Alves da Rocha, aludiu à perfídia em seu sentido particularmente militar. Em artigo publicado no Jornal da Cidade Online, Rocha referiu-se às conhecidas Convenções de Genebra e seus protocolos adicionais, conjunto de normas internacionais relativas a conflitos armados, segundo as quais nem mesmo numa guerra tudo é permitido.
Definida nos dicionários como sinônimo de deslealdade, falsidade e traição, a “perfídia” significa, no contexto da guerra, o ato de trair e enganar o inimigo. O autor cita o artigo 37 do Protocolo 1, de 10 de junho de 1977, feito em emenda à Quarta Convenção, de 12 de agosto de 1949. O documento trata especificamente da proibição da perfídia, e nele se lê o seguinte:
“É proibido matar, ferir ou capturar um adversário valendo-se de meios pérfidos. Constituirão perfídia os atos que, apelando para a boa fé de um adversário e com a intenção de atraiçoá-lo, deem a entender a este que tem direito à proteção, ou que se está obrigado a concedê-la, em conformidade com as normas do Direito Internacional aplicáveis nos conflitos armados. São exemplos de perfídia os seguintes atos: simular a intenção de negociar sob uma bandeira de armistício ou de rendição; simular incapacidade por ferimentos ou enfermidades; simular a condição de pessoa civil, não combatente; e simular que possui condição de proteção, pelo uso de sinais, emblemas ou uniformes das Nações Unidas ou de Estados neutros”.
Após condenar a ação dos que cometeram vandalismo e depredação, como qualquer pessoa de bom senso, o coronel da PM reflete sobre a possibilidade de perfídia por parte dos militares envolvidos na repressão ao movimento. Em suas palavras: “Existem informações que as famílias acampadas, e que não participaram dos atos de vandalismos, foram orientadas por militares a entrarem nos ônibus, pois seriam conduzidas a um lugar mais seguro. Em sendo verdade, não há como não vincular esta ação à perfídia, ação vil, condenada e proibida até na guerra. Isso ainda se agrava levando em consideração que aquelas pessoas não são inimigas, são pais e mães, crianças e idosos, não são criminosos tampouco terroristas, e que de boa fé, acreditaram estar sendo protegidas”.
Com efeito, diversos vídeos publicados nas redes sociais por manifestantes acampados em frente a quartéis por todo o Brasil, mostram, desde que o movimento teve início ao fim da eleição, um ambiente de total cordialidade entre as centenas de milhares de manifestantes e os habitantes da caserna, por vezes até com acenos de concordância com os protestos por parte de militares em contato com o público. Em 11 de novembro de 2022, recorde-se, as Forças Armadas chegaram a publicar uma nota defendendo abertamente o direito à livre manifestação, desde que pacificamente e dentro da lei, numa crítica direta ao que, naquele momento, atores políticos como Alexandre de Moraes já tratavam a priori – sem que nada parecido com a violência do dia 8 tivesse ocorrido – por “atos antidemocráticos” e, portanto, criminosos. Em 14 de dezembro, aliás, quase um mês antes do dia fatídico, o mesmo Moraes, quase salivando, já manifestara incontido júbilo com a possibilidade de “ainda ter muita gente para prender e muita multa para aplicar”. Àquela altura, todavia, os manifestantes pacíficos acreditavam-se ainda minimamente respaldados pela Constituição, e confiavam ao menos numa instituição nacional.
Além do coronel da PM, notei também a manifestação de outro militar perplexo com a fala do general Dutra. Refiro-me agora ao coronel da reserva Gerson Gomes, ex-comentarista do programa Pingo nos Is, da Jovem Pan. No dia 19 de maio, ele afirmou em sua rede social não entender por que Dutra desvirtuara os fatos ocorridos naqueles dias, e disse querer vê-lo na CPMI do 8 de janeiro. De acordo com Gomes, a versão apresentada pelo ex-chefe do Comando Militar do Planalto “lançou o Exército Brasileiro na ignomínia do dia 09 de janeiro, que passará à história como o ‘Dia da Perfídia’”.
De acordo com as informações do coronel, o interventor Ricardo Cappelli, por ordem do comunista Flávio Dino, queria entrar com o pé na porta do acampamento da Praça dos Cristais (em frente ao quartel-general do Exército) para efetuar prisões já durante a noite do dia 8, no que, em uma tensa negociação, foi impedido pelo então comandante do Exército, o general Arruda. Os militares conheciam bem o perfil ordeiro da grande maioria dos acampados há 70 dias no local, amparados por autorização do ex-comandante, general Freire Gomes, e depois mantida por seu sucessor Arruda (o que lhe valeu posterior exoneração).
É difícil compreender o mecanismo psicopolítico que motivou essa possível perfídia contra uma parcela da sociedade brasileira que, até então, sempre tivera o Exército em alta conta, defendendo sua honra quando preciso.
“Familiares de militares, e até do atual ministro da Defesa, frequentaram os acampamentos espalhados pacificamente pelo país” – tuitou Gomes. “A ordem judicial de desmontagem do acampamento foi cumprida no dia 09, mediante acordo que contemplava a condução dos manifestantes para um local seguro (foi mencionada a Granja do Torto), onde seriam todos ouvidos e identificados”. Ao contrário do que pretendiam os vingativos petistas e seus apparatchiks, só os participantes dos atos de vandalismo do dia 08 deveriam ser presos. Mas, como bem observa o coronel: “O resto da infame história todos conhecemos bem”.
Sim, conhecemos. O que não torna menos difícil compreender o mecanismo psicopolítico que motivou essa possível perfídia contra uma parcela da sociedade brasileira que, até então, sempre tivera o Exército em alta conta, defendendo sua honra quando preciso. Difícil, sobretudo, porque a logística das detenções em massa terá sido feita em favor de atores políticos que, ao contrário dos primeiros, sempre desprezaram, perseguiram e criminalizaram os militares brasileiros, condenados ao fogo eterno por seu pecado original: o “golpe de 1964”.
Sem saber como solucionar o mistério, só consigo pensar numa hipótese: que as décadas de chantagem psicológica, guerra informacional e campanha sistemática de desmoralização movidas pela esquerda contra o Exército, talvez tenham feito com que a instituição fosse afligida por uma espécie de Síndrome de Estocolmo, desenvolvendo estranha ternura, e possivelmente neurótico desejo de aprovação, por aqueles que sempre os agrediram. Nesse sentido, é simbólico o telefonema entre, de um lado, o mandatário socialista que admite não confiar nos militares e, de outro, um general do Exército que parece disposto a tudo – inclusive tecer elogios os mais extemporâneos – para lhe provar ser digno de confiança, perdão e, se possível, afeto.