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A dissolução, primeiro da família, e em seguida de todos os demais laços comunitários tradicionais mantidos pelo indivíduo, foi sempre o objetivo número um de qualquer projeto político revolucionário. A ideia aí é acabar com todas as mediações próximas, e estabelecer o aparato burocrático-repressor do Estado (aparelhado pelo partido ou pelo movimento revolucionário) como único intermediário de toda e qualquer relação social. Esse era, por exemplo, o modus operandi de Adolf Hitler. O sociólogo Karl Mannheim descreve-o com maestria no livro Diagnóstico do Nosso Tempo, de 1944, em capítulo intitulado “Estratégia do Grupo Nazista”. Segue um trecho:
“Hitler inventou um novo método a que se pode dar o nome de estratégia do grupo nazista. O ponto capital da estratégia psicológica de Hitler é jamais encarar o indivíduo como pessoa, mas sempre como membro de um grupo social... Hitler sabia instintivamente que, enquanto as pessoas se sentem abrigadas em seus próprios grupos sociais, ficam imunes à influência dele. O artifício oculto da estratégia de Hitler, por conseguinte, consiste em romper a resistência do espírito individual por meio da desorganização dos grupos aos quais esses indivíduos pertencem. Ele sabe que um homem sem laços com o grupo é como um caranguejo sem a carapaça... Assim, há duas fases principais na estratégia do grupo de Hitler: a decomposição dos grupos tradicionais da sociedade civilizada e uma rápida reconstrução baseada em um padrão de grupos inteiramente novo”.
Sim, temos aí o distanciamento social como estratégia de controle político. Mannheim sublinha que, embora Hitler tenha introduzido adaptações particulares na técnica, ela não tinha nada de especificamente nazista, tendo sido adotada, com variações de estilo, por outros projetos totalitários, a começar pelos de orientação marxista. Continua o sociólogo:
“São diversos os métodos de que [Hitler] dispõe para lidar com a família, a Igreja, os partidos políticos e as nações. Os elementos dessa técnica ele os aprendeu com os comunistas, mas os pormenores foram por ele elaborados durante sua própria luta na selva política da Alemanha da década de 1920.”
Desconfiando da capacidade de auto-organização dos cidadãos, os movimentos revolucionários veem-se como seus tutores. E, numa profecia autorrealizável, terminam efetivamente por gerar multidões de indivíduos infantilizados, medrosos e moralmente irresponsáveis
Há também um procedimento complementar por meio do qual os regimes coletivistas e revolucionários buscam modelar a sociedade conforme a sua ideologia. Se, por exemplo, começam quase sempre forçando uma oposição e um distanciamento social entre pais e filhos – estes, adulados como representantes do progresso; aqueles, estigmatizados como símbolos do atraso –, é apenas porque, no processo, desejam finalmente poder vir a tratar os pais como se fossem, eles próprios, filhos do Estado, num indecente mecanismo de infantilização da sociedade. Desconfiando da capacidade de auto-organização dos cidadãos, os movimentos revolucionários veem-se como seus tutores. E, numa profecia autorrealizável, terminam efetivamente por gerar multidões de indivíduos infantilizados, medrosos e moralmente irresponsáveis. Nas palavras de Mannheim:
“Nessa fase, a desmoralização e a decomposição dos grupos sociais principiam a produzir efeitos no indivíduo. E, o que é pior, em vastos números de indivíduos simultaneamente. A explicação psicológica desse fato é simplesmente a seguinte: o homem entregue a si mesmo não pode oferecer resistência. Como os vínculos com seu grupo é que lhe dão apoio, segurança e reconhecimento, para nada dizer dos valiosos laços de amizade e confiança, sua dissolução deixa-o inerme. Ele se comporta como uma criança que se extraviou ou que perdeu a pessoa amada; por isso sente-se inseguro, disposto a apegar-se a quem quer que se apresente... O fato é que a desintegração do grupo tende a ser seguida dum colapso da consciência moral do indivíduo. Ele se vê tentado a pensar mais ou menos assim: ‘Afinal de contas, tudo em que eu acreditava até agora talvez estivesse errado... A escolha que tenho é entre tornar-me um mártir ou aderir à nova ordem; quiçá eu possa chegar a ser um membro destacado dela. Ademais, se eu não aderir hoje, amanhã talvez seja demasiado tarde’”.
Em A Crise na Educação, publicado originalmente em 1957, Hannah Arendt também acusa a estratégia de infantilização e ruptura social inerente aos projetos totalitários que assolaram o continente europeu desde o início do século 20. Descrevendo o que entendia como uma perniciosa mistura entre política e educação, escreve a filósofa:
“O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas, desde a Antiguidade até os nossos dias, mostra bem como pode parecer natural querer começar um mundo novo com aqueles que são novos por nascimento e por natureza. No que diz respeito à política há aqui, obviamente, uma grave incompreensão: em vez de um indivíduo se juntar aos seus semelhantes assumindo o esforço de os persuadir e correndo o risco de falhar, opta por uma intervenção ditatorial, baseada na superioridade do adulto, procurando produzir o novo como um fait accompli, quer dizer, como se o novo já existisse... É por esta razão que, na Europa, a crença de que é necessário começar pelas crianças se se pretende produzir novas condições tem sido monopólio principalmente dos movimentos revolucionários com tendências tirânicas, movimentos esses que, quando chegam ao poder, retiram os filhos aos pais e, muito simplesmente, tratam de os endoutrinar. Ora, a educação não pode desempenhar nenhum papel na política porque na política se lida sempre com pessoas já educadas. Aqueles que se propõem educar adultos, o que realmente pretendem é agir como seus guardiões e afastá-los da atividade política. Como não é possível educar adultos, a palavra ‘educação’ tem uma ressonância perversa em política – há uma pretensão de educação quando, afinal, o propósito real é a coerção sem uso da força”.
A pandemia do coronavírus forneceu o pretexto ideal para os novos portadores dessa mentalidade totalitária. Mas os totalitários de hoje já não se vexam nem mesmo de propor coerção com uso da força – censura escancarada e orgulhosa de vozes contraditórias, soldagem de estabelecimentos comerciais, espancamento de banhistas e pracistas etc. – contra quem quer que não se curve ao seu projeto de distanciamento social forçado, atomização da sociedade e desumanização dos indivíduos, reduzidos hoje – menos pela pandemia em si do que por sua exploração político-ideológica – a criaturas amedrontadas e inseguras, mascaradas e desconectadas umas das outras, arrancadas de seu cosmos íntimo habitual como caranguejos de sua carapaça.
A pandemia do coronavírus forneceu o pretexto ideal para os totalitários de hoje, que já não se vexam nem mesmo de propor coerção com uso da força contra quem quer que não se curve ao seu projeto de distanciamento social forçado, atomização da sociedade e desumanização dos indivíduos
Enquanto a maioria de nós é obrigada a pôr as máscaras, outros as vêm retirando. É o caso, por exemplo, do palpiteiro Átila Iamarino, que uma imprensa corrupta e intelectualmente incapaz achou por bem transformar na suprema autoridade científica da República. Pois não é que o autoproclamado “explicador do mundo” (como se o mundo exterior pudesse corresponder ao atormentado mundo interior de um pandeminion) acreditou nos mimos e paparicos da imprensa? Tendo o fracasso lhe subido à cabeça – como diria Millôr Fernandes –, o sujeito resolveu cometer na Folha de S.Paulo (onde mais?) um texto intitulado “Autoritarismo necessário”, no qual começa aplaudindo a censura sofrida pelo presidente americano Donald Trump nas redes sociais – tomando-a como modelo para lidar com os críticos da vacina chinesa no Brasil –, e conclui de maneira peremptória: “ou será preciso calar as vozes antivacina ou tornar a vacina compulsória”.
Sim, chegamos a esse ponto, em que um fanático qualquer, incensado por um punhado de outros fanáticos e irresponsáveis, faz em alto em bom som (no jornal que publica torcida aberta pela morte de chefes de Estado, naturalmente) a defesa do autoritarismo e da censura – “do bem”, é claro. No Twitter, o rapaz ainda apresentou o próprio texto com as seguintes palavras: “sobre notícias falsas e onde a liberdade total de expressão é perigosa”. A única liberdade total de expressão não perigosa é, por suposto, a dele próprio, mesmo quando prega abertamente o autoritarismo. Em outra postagem, sentenciou, com ares de bedel: “Sobre a eficácia: o foco não é a proteção individual. Vacina não vai te liberar de distanciamento e máscara. Vacinação, por enquanto, é pra (sic) diminuir o número de doentes e internados e não deixar o sistema de saúde colapsar. E não para eliminar o vírus e poder ir pro (sic) bar”.
Nessa simples mensagem, revela-se o que, de fato, cala fundo na alma do sujeito, uma preocupação exasperante em torno da qual se ergue um cipoal de pretextos e racionalizações autolisonjeiras. O que lhe incomoda, no fundo, é o fato de as pessoas quererem ir para o bar. O problema, vejam bem, não é nem efetivamente ir ao bar, mas o mero querer ir ao bar. O que o perturba de modo lancinante é a perspectiva de retorno à normalidade e o fim da pandemia, que, como sugere o título de seu livro recém-lançado, ele tanto “explorou”. Parodiando Kaváfis sobre os bárbaros: sem a pandemia, o que seria de tipos como Átila Iamarino? Ah, ela era uma solução...
Mas engana-se quem pensa que o abominável homem sem orelhas (e o quão simbólica passa a ser essa característica física em alguém cujo sonho é falar sem nunca ouvir) é um tirano propriamente dito. Em verdade, o infeliz não parece acalentar nenhum projeto discernível de poder total, nem, imagina-se, pretende instituir um regime totalitário stricto sensu, nos moldes nazista ou comunista. O que sente é um desejo irresistível de controle e vingança. Ressentido qual um Raskolnikóv dos trópicos, viu na pandemia uma chance de dotar de alta dignidade e excelsa virtude o cubículo mofado no qual passa os dias. Com possível déficit de sociabilidade, imaginou poder realmente “explicar” (no sentido etimológico original de desdobrar) o mundo – o seu próprio mundo. Quis universalizar o distanciamento social pois, provavelmente, distanciar-se socialmente foi sempre o seu cotidiano. Rogou a todos que ficassem em casa porque ficar em casa, defronte ao computador, tem sido o seu modus vivendi.
Com a pandemia, de súbito a sua existência medíocre tornou-se um modelo a ser seguido. E a sua insociabilidade, motivo de loas e aplausos. Como bom fanático – segundo a definição de Emil Cioran –, ele “não perdoa que vivamos aquém de suas verdades e de seus arrebatamentos; quer fazer-nos compartilhar de sua histeria, de seu bem, impô-la a nós e desfigurar-nos”. E, com nosso pânico e nossas máscaras, o quanto já não teremos sido desfigurados por tipos como ele? Mas não, Átila Iamarino não é, definitivamente, um tirano clássico, do tipo durão e implacável. Sob certos aspectos, pode ser até pior do que isso. Afinal, como escreveu Jordan Peterson em 12 Regras para a Vida: Um antídoto para o caos: “Se você acha que os homens durões são perigosos, espere até ver do que são capazes os homens fracos”.
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Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos