Manifestação de Sete de Setembro na Avenida Paulista, em São Paulo.| Foto: Fernando Bizerra/ EFE
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“Os gulags não foram construídos para encarcerar pessoas pelo que fizeram, mas pelo que eram.” (Anne Applebaum, Gulag: uma história dos campos de prisioneiros soviéticos)

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Os gregos criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais indicativos de algo mau ou extraordinário no estatuto moral de uma pessoa. Impressos na pele mediante cortes ou queimaduras, os sinais apontavam o estigmatizado como uma pessoa de má reputação – escravo, criminoso ou traidor. O portador do estigma, ritualmente poluído, era assim fisicamente marcado para que os demais membros da comunidade fossem capazes de evitar a sua presença contagiosa. Originalmente relativa a esses sinais corporais exteriores, infligidos ou inatos (a exemplo de deformações físicas e defeitos congênitos), a noção de estigma foi progressivamente ampliada para denotar falhas individuais relativas a hábitos, vícios, gostos e comportamentos particulares. Mais tarde, passou a abranger também culpas coletivas, associadas ao pertencimento a determinada nação, religião, “raça”, família, tribo ou corporação de ofício.

Num livro clássico, o sociólogo canadense Erving Goffman definiu estigma como um símbolo da “identidade deteriorada” de indivíduos ou grupos objeto de um processo de desumanização. Partindo dessa definição, os psicólogos sociais Bruce G. Link e Jo C. Phelan descreveram a formação do estigma como uma sequência de “rotulagem, estereotipagem, separação, perda de status e discriminação”, ao fim da qual temos a criação de uma nova realidade social na qual o indivíduo ou grupo estigmatizado é transformado em “outro” absoluto. A sequência estigmatizadora afeta o portador do estigma sobretudo porque ele passa a ser encarado não mais como indivíduo, mas como membro substituível de uma coletividade X ou Y. Assim, um conjunto de estereótipos atribuídos à coletividade como um todo é metonimicamente imputado aos seus elementos individuais, que passam a ser vistos como idênticos e intercambiáveis. O contrário também se verifica, uma vez que características negativas atribuídas a um membro podem ser generalizadas de modo a descrever o grupo como um todo.

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Goffman destacou a importância da linguagem na criação do estigma, mostrando como a identidade deteriorada é sempre precedida pelo emprego de uma retórica degradante. Essa retórica opera na formação de um imaginário que dê respaldo à discriminação contra o estigmatizado. Constantemente repetido na linguagem pública, inserido num esquema automático de associação de ideias, o estigma acaba assimilado como um dado da natureza, uma moldura interpretativa a orientar toda a opinião pública sobre o indivíduo desacreditado, vítima, portanto, de um implacável viés de confirmação.

Todas as interações do estigmatizado ocorrem sob a égide da identidade desacreditada, e tudo o que diga ou faça só serve para corroborar os estereótipos de que é alvo

O estigma torna-se particularmente devastador ao se transformar naquilo que Goffman chamou de “status dominante”, quando passa a englobar toda a identidade social de um indivíduo ou grupo, independentemente de quaisquer outros de seus traços distintivos. Nesse estágio, o estigmatizado já não é avaliado negativamente sob circunstâncias particulares ou em aspectos específicos de sua existência social. Agora, todas as suas interações ocorrem sob a égide da identidade desacreditada, e tudo o que diga ou faça só serve para corroborar os estereótipos de que é alvo. É geralmente na forma de status dominante que o estigma adentra o campo político, circunscrevendo e excluindo determinados grupos marcados como socialmente nocivos, contra os quais passam a ser toleradas doses escalares de repressão e violência política. Nos casos extremos, o processo de estigmatização pode culminar no assassinato em massa, como ocorreu nas situações emblemáticas do Holocausto e do genocídio ruandês.

Como se sabe, o extermínio nazista dos judeus foi precedido por uma vasta campanha de desumanização antissemita veiculada pelo Ministério da Propaganda de Goebbels, que controlava a imprensa e as editoras, representando as futuras vítimas do massacre em termos tais como “vermes”, “ratos” e “porcos”. No livro A Linguagem do Terceiro Reich, de 1947, o filólogo judeu Victor Klemperer, na condição simultânea de estudioso e vítima, registrou a corrupção da língua alemã promovida pelo regime nazista: “O nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio de palavras, expressões ou frases, impostas pela repetição, milhares de vezes, e aceitas mecanicamente”. Ainda segundo Klemperer, as palavras podiam ser “como minúsculas doses de arsênico” que, engolidas de maneira despercebida, aparentavam ser inofensivas até que, tempos depois, o efeito do veneno se fizesse sentir. Na Alemanha, a dessensibilização moral provocada pela linguagem nazista foi a antessala do genocídio.

No caso de Ruanda, é bem conhecido o papel desempenhado por veículos de imprensa como a Radio Télévision Libre des Mille Collines (RTLM) no fomento à carnificina, mediante a estigmatização reiterada dos tutsis, sistematicamente desumanizados e apelidados de “baratas” (inyenzi). No livro Uma Temporada de Facões: relatos do genocídio em Ruanda, de 2005, o jornalista e correspondente de guerra Jean Hatzfeld produziu um monumento de perturbadora vivacidade sobre o que se passou naquele pequeno país africano entre abril e julho de 1994, quando aproximadamente 800 mil tutsis foram retalhados até a morte por seus vizinhos hutus.

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No relato de um dos genocidas hutus entrevistados pelo autor, podemos discernir com nitidez o sucesso da campanha midiática de desumanização dos tutsis. Sobre sua primeira vítima, observa o assassino: “Ele já não era propriamente uma pessoa comum, quer dizer, como essas que a gente encontra todo dia. Suas feições eram bem parecidas com as da pessoa que eu conhecia, mas nada me lembrava com nitidez que eu vivia a seu lado desde muito tempo. Não sei se o senhor consegue me entender bem. Era um reconhecimento, sem o conhecimento”. De maneira similar, um outro assassino confessa: “Quando descobríamos uns tutsis nos charcos, deixávamos de vê-los como humanos. Quer dizer, com gente parecida conosco, dividindo um pensamento e sentimentos semelhantes. A caçada era selvagem, os caçadores eram selvagens, as presas eram selvagens, a selvageria enfeitiçava os espíritos”. Em Ruanda, a selvageria da matança começou na selvageria da linguagem radiofônica.

No Brasil, não existe obviamente algo similar a esses casos extremos de violência política. No entanto, na esfera da linguagem, já se observa há algum tempo um mecanismo cada vez mais virulento de estigmatização, processo que tem como alvos o presidente Jair Bolsonaro, seus apoiadores e qualquer um que, apenas por não aderir irrestritamente à agenda da oposição, venha a ser marcado com o estigma do bolsonarismo. São recorrentes os exemplos de linguagem estigmatizadora e desumanizadora, utilizada com cada vez menos cerimônia.

Um ex-jogador de futebol chama o governo de “covarde, mentiroso, perverso e muito cruel”. Um comediante define o presidente como “um cara abjeto, que não tem humanidade... Isso não é gente, é rato, é verme”. Uma atriz manifesta livremente seu desejo de esfregar a cara de Bolsonaro no asfalto. No 7 de setembro, o maior jornal televisivo do país recorre ao estigma para tratar quase como terroristas domésticos as centenas de milhares de cidadãos que, pacífica e legitimamente, saíram às ruas para apoiar o governo e exigir respeito à Constituição e à agenda eleitoralmente vitoriosa. Um ministro do Supremo chama os bolsonaristas de “imbecis”. Um outro os acusa de integrar “guetos pré-iluministas”. Um terceiro reproduz a linguagem militante que caracteriza Bolsonaro como genocida. E assim prossegue o rotineiro bruaá antibolsonarista.

Fulano é bolsonarista, logo, contra ele tudo é permitido – eis o silogismo consagrado nas redações, nos estúdios, nos palcos e nos tribunais do Brasil de nossos dias

Na grande imprensa, o estigma bolsonarista – estampado em pessoas como o cantor Sérgio Reis, a médica Nise Yamaguchi, o empresário Luciano Hang, o jornalista Allan dos Santos e de tantos outros – serve para definir os alvos da perseguição estatal e, em seguida, para legitimar essa perseguição. Vitimados por uma lógica tipicamente stalinista – “deem-me um nome que eu arrumo um caso” –, os estigmatizados são previamente culpados do crime de... bolsonarismo. Sim, um jornalista chegou a descrever uma participante do BBB como “suspeita de bolsonarismo”.

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Se, afora a facada desferida por Adélio Bispo, a selvagem retórica antibolsonarista da imprensa, de personalidades do show business, de parlamentares e de ministros da suprema corte ainda não desaguou em violência física em larga escala (conquanto tenha dado azo a simulações “artísticas” ou “simbólicas” dessa violência), o fato é que ela já produz efeitos em termos de uma identidade deteriorada e perda de status social, uma vez que, no âmbito de inquéritos inconstitucionais que lembram os famigerados Processos de Moscou, os assim chamados “bolsonaristas” viraram alvo de uma série de perseguições político-jurídicas e sofreram toda sorte de violação a direitos individuais elementares.

Na realidade social criada por essa espécie de adelismo linguístico, tudo se passa como se o estigma bolsonarista indicasse a presença de uma impureza ou pecado irredimível, bastando para que o seu portador seja ostracizado, tratado como pária, e privado das garantias formalmente previstas num estado de direito. Fulano é bolsonarista, logo, contra ele tudo é permitido – eis, enfim, o silogismo consagrado nas redações, nos estúdios, nos palcos e nos tribunais do Brasil de nossos dias.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]