A informação consta do extraordinário Hugo Chávez, o Espectro: como o presidente venezuelano alimentou o narcotráfico, financiou o terrorismo e promoveu a desordem global, do jornalista Leonardo Coutinho. Em fevereiro de 2011, confiante por haver feito praticamente sozinho a sua improvável sucessora na presidência do país, o ex-presidente Luís Inácio Lula convocou o então embaixador da Venezuela no Brasil, o chavista Maximilien Arveláiz, para uma conversa privada. Nela, disse ao venezuelano o seguinte: “Eu durmo tranquilo porque sei que Chávez está ali [na presidência], mas também, às vezes, perco o sono pensando que Chávez poderia perder as eleições de dezembro de 2012. Uma derrota de Chávez em 2012 seria igual ou pior que a queda do Muro de Berlim”.
Uma fala altamente significativa. Em primeiro lugar, por revelar de passagem que, em perfeita sintonia com o movimento comunista internacional (e contrariando a visão da maior parte dos analistas políticos midiáticos no Brasil, para quem o lulopetismo nada tem a ver com comunismo), Lula vê com pesar a queda do Muro de Berlim. E, em segundo, por mostrar a que ponto os partidos e organizações membros do Foro de São Paulo (criado em 1990 por Lula e Fidel para, justamente, salvar o movimento comunista internacional, que ruía no Leste Europeu) mantinham uma relação de interdependência, imiscuindo-se desavergonhadamente nos assuntos internos uns dos outros, e submetendo os interesses nacionais dos países em que chegaram ao poder às exigências estratégicas daquela entidade política supranacional, que tinha entre seus membros grupos terroristas e narcotraficantes, a exemplo das Farc.
Lula não ficou só nas palavras, evidentemente. A fim de evitar o que via como uma catástrofe política, sugeriu a criação no Brasil de um comando para a campanha chavista, que ele próprio coordenaria junto com José Dirceu. Surgiu daí a ideia de enviar o publicitário João Santana para assinar a campanha de marketing chavista, em operação cujos detalhes seriam, mais tarde, revelados pela Lava Jato.
Recorde-se que, em sua delação premiada, Mônica Moura, mulher de João Santana, revelou ter sido Lula o grande responsável por intermediar a relação do casal de publicitários com a cúpula chavista, na época representada na figura do então candidato a vice-presidente Nicolás Maduro. A negociação envolveu o pagamento, via caixa dois, de 35 milhões de dólares pela campanha publicitária, parte dos quais bancada pela Odebrecht e pela Andrade Gutierrez, empreiteiras com contratos para obras na Venezuela. Mônica Moura contou à justiça brasileira que chegou a receber maletas com dinheiro vivo das mãos de Nicolás Maduro em pessoa, inclusive dentro do Palácio Miraflores.
Eis aí um exemplo das relações promíscuas mantidas pelos membros do Foro, que abre hoje o seu 25.º encontro anual. Em 2005, em discurso oficial de celebração dos 15 anos da entidade (e, como sempre, pouco repercutido na imprensa), o próprio Lula explicitou os termos daquelas relações, que envolviam decisões importantes de política externa e interna dos países membros, decisões tomadas às sombras, em ações entre amigos, quase sempre envolvendo algum tipo de atividade criminosa (com o destaque para o narcotráfico, usado especialmente por Hugo Chávez como arma política), evidentemente, sem passar pelo escrutínio público e pelo esperado aval dos poderes Legislativo e Judiciário desses países (aliás, frequentemente comprados e submissos ao Executivo). Nas palavras de Lula, o “réu confesso” (como Olavo de Carvalho o chamou à época):
“E eu queria começar com uma visão que eu tenho do Foro de São Paulo. Eu que, junto com alguns companheiros e companheiras aqui, fundei esta instância de participação democrática da esquerda da América Latina, precisei chegar à Presidência da República para descobrir o quanto foi importante termos criado o Foro de São Paulo… Foi assim que nós, em janeiro de 2003, propusemos ao nosso companheiro, presidente Chávez, a criação do Grupo de Amigos para encontrar uma solução tranquila que, graças a Deus, aconteceu na Venezuela. E só foi possível graças a uma ação política de companheiros. Não era uma ação política de um Estado com outro Estado, ou de um presidente com outro presidente. Quem está lembrado, o Chávez participou de um dos foros que fizemos em Havana. E graças a essa relação foi possível construirmos, com muitas divergências políticas, a consolidação do que aconteceu na Venezuela, com o referendo que consagrou o Chávez como presidente da Venezuela. Foi assim que nós pudemos atuar junto a outros países com os nossos companheiros do movimento social, dos partidos daqueles países, do movimento sindical, sempre utilizando a relação construída no Foro de São Paulo para que pudéssemos conversar sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem qualquer interferência política”.
A fala é muito clara, e mostra que as razões e necessidades dos membros do Foro, discutidas interna e sigilosamente, se sobrepunham aos interesses nacionais que presidentes eleitos como Lula, Chávez, Morales et caterva deveriam representar. Esses e demais “companheiros” estiveram sempre a serviço do projeto de poder do Foro, valendo-se do cargo que ocupavam de modo a dispor dos recursos de seus países para esse fim. E, como sugerem as revelações sobre a caixa preta do BNDES, que Palocci começou a abrir, a Lula e ao PT cabia especificamente o papel de caixa eletrônico do Foro.
Diante do que hoje se sabe, é sempre interessante observar a reação da imprensa brasileira. Lembremos que, no início, o Foro de São Paulo era tido por coisa inexistente entre os jornalistas brasileiros, que debochavam dele mais ou menos como debocharam da famigerada “Ursal”, mencionada pelo candidato Cabo Daciolo num dos debates presidenciais no ano passado.
Em 2002, por exemplo, perguntado sobre o Foro de São Paulo numa conferência no Council of Foreign Relations, o historiador Luiz Felipe Alencastro, então colunista da Veja, deu a seguinte resposta: “É interessante. Veja só, porque eu vivo, digo, agora eu vivo na França. Vivi no Brasil por 12 anos. Nós nunca ouvimos falar desse Foro de São Paulo no Brasil. Não sabemos nada a respeito, e é engraçado como a coisa cresceu. Há um jornalista conhecido por ser um cara muito conservador [referindo-se a Olavo de Carvalho], da extrema-direita, que escreve semanalmente no Rio, e que começou com essa coisa. Nós nunca ouvimos falar disso” (BRAZIL: Political and Economic Challenges Facing the President elect and the Implications for U.S. Policy in Latin America. Conferência realizada no Council of Foreign Relations em 30 de outubro de 2002).
Na época em que foi proferida essa opinião mui conveniente para uma entidade cujo sucesso dependeu sempre da discrição – opinião que, compartilhada, veio a se tornar uma espécie de norma tácita dentro das redações brasileiras –, o Foro completava doze anos de existência. Por meio de suas ações entre amigos, a entidade já havia conseguido levar vários “companheiros” às presidências de seus respectivos países, sempre, é claro, agindo “sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem qualquer interferência política”. Hoje, quando a existência do Foro já não pode ser simplesmente negada – pois, afinal, os próprios Lula e Zé Dirceu não cansam de se gabar de sua importância estratégica –, a maior parte da imprensa insiste em lhe atribuir o estatuto de um inocente foro de debates. Numa de suas manchetes, o jornal O Globo chegou ao cúmulo de retratá-lo na posição de vítima do “ataque de integrantes do governo Bolsonaro”. Em suma: antes o Foro não existia. Depois, passou a existir na forma de um inocente encontro de debates. E, agora, já se tornou vítima do governo Bolsonaro. É ou não é um extraordinário enigma midiático?