“Um mundo que confia seu futuro ao discernimento dos jovens é um mundo velho e cansado, que já não tem futuro algum.” (Olavo de Carvalho, O Imbecil Juvenil)
Vi recentemente o documentário Desastre Total: Woodstock 99, disponível na Netflix. Um filme interessante, porém, erigido sobre uma premissa fundamentalmente errada. Em 1999, a tentativa de reedição do icônico evento dos anos 1960, que completaria 30 anos, resultou num caos de vandalismo e destruição. Após três dias sofrendo com problemas de organização e logística (tal como falta d’água e vazamento dos banheiros químicos, resultando num imenso lamaçal de fezes), e estimulada por bandas adeptas de uma retórica agressiva e niilista de revolta, uma parte numerosa do público – formada majoritariamente por jovens hedonistas e educados para a “crítica radical de tudo o que está aí” – resolveu dar início ao seu próprio festival, dessa vez de destruição, violência (inclusive sexual) e incêndio, este facilitado pelas velas distribuídas pela produção com o propósito de incentivar uma demonstração coletiva de “paz e amor”. Uma das últimas atrações do evento foi a banda Red Hot Chili Peppers, cuja brilhante ideia de executar a canção Fire (“poor choice of words”) acabou fornecendo a trilha sonora para o fogaréu assustador que lambeu o local, dando muito trabalho às equipes de bombeiros. O saldo final foram três pessoas mortas, milhares de feridos e um prejuízo milionário.
A premissa errada à qual me referi – adotada tanto pelos personagens entrevistados quanto pelos produtores do documentário – é a de que 1999 “traiu” 1969, ou seja, de que o resultado catastrófico dos anos 1990 foi o oposto do espírito de “música, paz e amor” dos 1960. Ocorre que “música, paz e amor” nunca foi mais que um slogan, e não se pode trair um reles slogan. Enfeitiçados, contudo, pelo slogan – e consumidores passivos da ideia nele propagandeada –, alguns personagens do documentário culpam os produtores Michael Lang (idealizador e realizador do festival original) e John Scher (CEO da Metropolitan Entertainment e figurão da indústria da música) por terem sido mercenários e contrários ao idealismo de outrora. Por sua vez, Lang e Scher – dois típicos baby boomers, nascidos e criados nos prósperos anos 1950 – responsabilizam o público por sua alienação, agressividade e carência do mesmo idealismo de outrora.
Grande parte do que hoje se chama de “direitos sociais”, “direitos das minorias” ou “direitos sexuais e reprodutivos”, numa tentativa de se imantar na aura das campanhas pelos direitos civis, não passa de um anseio de retorno ao princípio do prazer
E qual era o idealismo de outrora? A ideologia do poder jovem, que tomava conta do planeta, e que teve em Woodstock – e também no Maio de 1968 parisiense – um de seus grandes emblemas. Ocorre que, ao contrário da vulgata romântica que retrata os jovens como criaturas independentes e ansiosas por autonomia, a verdade é que eles costumam ser gregários e ansiosos pela aceitação alheia. Por esse motivo também, mostram-se mais suscetíveis aos apelos de ideologias e projetos para mudar o mundo. Como sói acontecer em todo movimento de caráter revolucionário, os jovens – nos quais um senso de inadiabilidade e um senso de tédio estão naturalmente à flor da pele – são sempre mais propensos à ação, à execução prática do conhecimento adquirido através de guias espirituais (ou culturais). Não por acaso, quase toda revolução tem nos jovens sua principal força motriz, ainda que, normalmente, sejam homens mais velhos (ainda que eternamente infantilizados, como o próprio Michael Lang) que os incitem e comandem. Dmitri Pisarev, teórico revolucionário do século 19 e um dos guias espirituais de Lênin, já constatara que “os maiores fanáticos são as crianças e os jovens”. Lição que, na China da Revolução Cultural, Mao Tse-tung levou ao limite.
Um bom exemplo desta dinâmica é também o movimento de contracultura nos EUA, com sua revolução sexual, o movimento hippie, o experimentalismo com drogas lisérgicas, religiões orientais e vida comunitária. Embora ele seja usualmente retratado como uma iniciativa espontânea de jovens rebeldes em busca de autonomia, o movimento seria inconcebível sem a influência de livros como Eros e a Civilização, de Herbert Marcuse, que obteve êxito em transformar o pensamento de um autor conservador como Freud em uma ferramenta revolucionária para a liberalização dos costumes. Marcuse é, sem sombra de dúvida, o grande guia cultural de Woodstock 1969, e seu objetivo era, no fim das contas, o controle político de tipo neomarxista, jamais a autonomia individual. Arrisco-me a dizer que sem a sua obra não teria havido contracultura ou, ao menos, o movimento teria sido algo inteiramente diverso.
O impacto do freudomarxismo marcuseano sobre a esquerda mundial foi tamanho que, hoje, a agenda desta consiste quase exclusivamente na busca por satisfação imediata das pulsões e apetites, ou, em outros termos, naquilo que, em A Corrupção da Inteligência, propus que se chamasse de luta pelos direitos do baixo-ventre. Marcuse foi o pai de gerações e gerações de filhos bastardos, pessoas mimadas, imaturas, que parecem de fato ter regredido a um estágio puramente libidinal do desenvolvimento ontogenético humano, anterior à emergência do princípio de realidade.
Com efeito, grande parte do que hoje se chama de “direitos sociais”, “direitos das minorias” ou “direitos sexuais e reprodutivos”, numa tentativa de se imantar na aura das campanhas pelos direitos civis, não passa de um anseio de retorno ao princípio do prazer, um clamor por eternamente mamar, gozar, receber, fruir. E nada poderia ensinar mais sobre a natureza dos fins do que a mera observação dos meios pelos quais a esquerda marcusiana os tem exigido: vômito, cuspe, excreção, defecação, inserções anais e vaginais... Eis algumas das formas contemporâneas de protesto, bem condizentes com as demandas, sugerindo uma regressão às fases iniciais (oral, anal e fálica) do desenvolvimento infantil. Se a utopia de Marcuse era uma nova civilização erótica, tudo o que conseguiu promover foi uma nova barbárie escatológica.