| Foto: Jenny W./Free Images

Fico sempre impressionado ao constatar o quão rápida e profundamente a lógica da balcanização racial fincou raízes no Brasil. Num processo artificialmente imposto por uma classe falante pernóstica e culturalmente desenraizada, seus pressupostos contrariam toda a nossa formação histórica e antropológica, fruto de cinco séculos de colonização portuguesa. Pois, com sua ênfase no ideal de assimilação e miscigenação (o que não exclui a violência e o racismo, bem entendido), o estilo colonial português contrasta fortemente com o paradigma segregacionista e multiculturalista em vigor nos países de colonização britânica, que teve no apartheid sul-africano a sua versão mais radical, e que, nas últimas duas ou três décadas, a intelligentsia tupiniquim achou por bem adotar como modelo alternativo para as nossas relações raciais. Sob o pretexto de combater o racismo, reifica-se perturbadoramente o conceito de raça e, pior ainda, reintroduz-se no debate público um vínculo entre raça e cultura que há muito se imaginava sepultado.

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A guerra de propaganda movida por essa intelligentsia não cessa de retratar o Brasil como uma sociedade racialmente dividida entre “negros” e “brancos”, duas categorias que, adaptadas do paradigma marxista das classes sociais, viveriam em oposição vital e irreconciliável. Para espalhar essa narrativa divisionista e odiosa, nossos bem-pensantes sempre pressupõem o racismo ali onde ele deveria ser demonstrado.

Basta abrir os jornais, ligar a televisão ou o rádio para topar com exemplos variados dessa abordagem. No último dia 28 de novembro, por exemplo, o jornal O Globo publicou uma matéria com o seguinte título: “No Brasil, apenas 3 surfistas profissionais são negras. Como combater o racismo na elite do esporte? Elas respondem”.

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Alguma mulher negra que queira praticar o surfe é impedida por ser negra ou mulher? Em caso afirmativo, impedida por quem?

Diante de uma chamada tão acusatória e alarmista, fui, é claro, conferir o corpo da matéria em busca de argumentos que pudessem haver permitido à autora estabelecer uma relação de causa e efeito entre um dado objetivamente mensurável – o baixo número de atletas negras no surfe profissional brasileiro – e o racismo. Porque, afinal, apenas constatar aquele fato estatístico não é o mesmo que descobrir a sua causa. Não se pode, por exemplo, extrair do fato de haver poucas mulheres encanadoras, eletricistas ou desentupidoras de fossa a conclusão de que isso se deve ao machismo. O mais provável é que seja resultado do pouco interesse das mulheres em geral por essas profissões.

O mesmo vale para o racismo e o surfe. Para dizer que, no Brasil, o racismo é a causa do baixo número de surfistas negras, seria preciso demonstrar, primeiro, a existência de um grande número de mulheres negras interessadas pelo surfe; e, segundo, que essas mulheres são impedidas – ou, no mínimo, desestimuladas – de praticar o esporte por causa da discriminação racial, ainda que velada. É esse tipo de demonstração que deveria constar em uma matéria que afirma tão categoricamente a existência de racismo na elite do surfe profissional brasileiro. Mas o leitor procurará em vão por ela. O que vai encontrar, em vez disso, são lugares comuns da retórica progressista e reafirmações da premissa inicial à guisa de conclusão.

“A popularização do surfe aconteceu, de fato, na Califórnia a partir de 1900. Com isso, acredita-se que um padrão foi criado, e os surfistas negros foram esquecidos no decorrer do tempo”, escreve a redatora de maneira propositadamente vaga e sentimental, sem se dar ao trabalho de explicar: 1. Quem é que acredita que “um padrão foi criado”? 2. Que padrão é esse? 3. O que significa exatamente dizer que “os surfistas negros foram esquecidos”?

A matéria prossegue: “Além disso, enquanto durou a segregação racial nos EUA, os negros eram proibidos de surfar em praias limpas e com ondas boas”. Eis aí, finalmente, uma demonstração objetiva da relação entre racismo e surfe. Seu único problema é concernir aos EUA da primeira metade do século 20, não ao Brasil, e muito menos ao Brasil contemporâneo. Logo, esquivando-se da tarefa de citar exemplos minimamente similares de discriminação racial no nosso país (negros proibidos de frequentar determinadas praias, por exemplo), a autora deixa solta no texto a referência à segregação racial americana, pois, antes que informar o leitor sobre algum problema real, seu objetivo é causar nele certa impressão subliminar, de modo a emplacar uma narrativa politicamente correta previamente definida.

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Em certa altura, o texto faz referência a um evento criado com o objetivo de discutir o racismo e o machismo no surfe, o 1.º Encontro Nacional de Surfistas Negras e Nordestinas, realizado na praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. A idealizadora foi a jornalista e ex-surfista profissional Érica Prado, que, na reportagem, aparece questionando a ausência de representatividade das mulheres negras no surfe profissional, tendo em vista que, segundo o IBGE, 55,8% da população se autodeclara negra e cerca de 26% são mulheres. Se os números são altos, onde estão esses atletas na elite do surfe, sobretudo as mulheres negras?, indaga Érica, em pergunta retórica que carrega a resposta embutida: essas mulheres são vítimas de racismo. “Não tem nenhuma negra na elite mundial. O universo do surfe é um reflexo da nossa sociedade racista e não existe equidade quando se trata de surfistas negras e nordestinas. Criou-se um modelo californiano de surfista ideal e mulheres fora desse padrão imposto pelo sistema são invisibilizadas”.

A guerra de propaganda não cessa de retratar o Brasil como uma sociedade racialmente dividida entre “negros” e “brancos”, duas categorias que viveriam em oposição vital e irreconciliável

Mais uma vez, ficamos sem qualquer informação sobre como opera esse “sistema” que impõe um “modelo californiano de surfista ideal”. Por exemplo, de que forma as mulheres fora desse padrão seriam “invisibilizadas”? E qual o significado preciso desse maneirismo em sociologuês, a propósito? Alguma mulher negra que queira praticar o surfe é impedida por ser negra ou mulher? Em caso afirmativo, impedida por quem? Há alguém que, em determinado momento, chegue para a mulher negra e diga: “Não, você não. Daqui você não passa”? Se a discriminação racial ou sexual é tipificada como crime no país, há alguma denúncia formal contra quem, em hipótese, a está cometendo? Se não, por que? Se, por outra, a tal “invisibilização” das surfistas negras é fruto de racismo velado, quais são as maneiras pelas quais esse racismo se impõe e se efetiva?

Eis apenas algumas das questões que uma matéria jornalística autêntica sobre a eventual ocorrência de racismo no surfe nacional deveria se preocupar em investigar. Ocorre que não estamos falando de jornalismo, mas de ativismo. Portanto, em lugar de descrever a ocorrência do racismo no esporte, trata-se aí de inventá-lo ex nihilo, de modo a jogar mais água no moinho do discurso neo-segregacionista cada vez mais hegemônico e inquestionável entre os nossos bem pensantes e falantes.