Relendo por esses dias o famoso debate entre Olavo de Carvalho, o filósofo, e Alexander Dugin, o sofista, voltei a topar com o nome de Karl Popper, uma figura intelectual cuja influência sobre as elites políticas do Ocidente (e não sobre a nação americana, como afirma equivocadamente o ideólogo do eurasianismo) não cansa de me atormentar. E o tormento vem, sobretudo, do fato de que essa influência não tem por base o ramo em que Popper mostrou excelência, a filosofia da ciência, mas aquele em que o autor foi um fiasco, a teoria política. Com efeito, o seu livro mais falado entre aqueles que mandam no mundo não é A lógica da pesquisa científica – no qual propõe o conceito de falseabilidade –, mas A sociedade aberta e seus inimigos, obra que tanto influenciou um de seus alunos, George Soros, que acabou indo parar no nome de sua famigerada fundação, a Open Society.
Quando digo que Popper foi um fiasco na teoria política, penso sobretudo em sua excêntrica análise de A República de Platão, pensador por ele tido como o pai fundador do totalitarismo moderno – e, portanto, ao lado de Heráclito, Aristóteles, São Tomás de Aquino etc., um inimigo da “sociedade aberta” –, algo que contraria frontalmente as interpretações clássicas sobre o pensamento do filósofo grego, que tendem a enfatizar as sutilezas expressivas da obra e as intenções alegóricas (e mesmo humorísticas) do autor. Ao contrário dessas, a leitura de Popper é rasa, extemporânea e de uma literalidade assustadora, como se A República fosse um guia prático para o exercício do poder. Em suma, Popper parecia achar que Platão fosse um idiota. Mas, entre os filósofos políticos fiéis à tradição clássica, houve quem pensasse que o idiota era Popper. Entre esses estão Leo Strauss e Eric Voegelin, cuja avaliação sobre Popper mencionei passageiramente no meu debate com Bruna Frascolla, mas que agora vale a pena aprofundar.
Popper parecia achar que Platão fosse um idiota. Mas, entre os filósofos políticos fiéis à tradição clássica, houve quem pensasse que o idiota era Popper
Em 1950, Karl Popper esteve na Universidade de Chicago para dar uma palestra sobre o seu célebre livro de teoria política. Seu propósito último era conquistar uma vaga de professor na instituição, perspectiva que muito alarmou Leo Strauss, que se estabelecera em Chicago como professor um ano antes. Strauss escreveu, então, ao amigo Eric Voegelin, à época professor na Lousiana State University, para conhecer-lhe o juízo sobre Popper. Segundo Strauss, a palestra do convidado sobre “filosofia social” fora “abaixo da crítica”. Nas palavras de Strauss: “Foi um positivismo deslavado e inerte, tentando sibilar na obscuridade, acompanhado de uma completa inabilidade em pensar racionalmente, embora se fizesse passar por racionalismo – em suma, algo muito ruim. Não consigo imaginar que esse homem possa ter escrito algo digno de leitura, e, todavia, parece ter se tornado um dever profissional familiarizar-se com a sua produção”. Voegelin respondeu oito dias depois, em 18 de abril de 1950, numa carta que se pode considerar o equivalente a um nocaute acadêmico:
“A oportunidade de dizer algumas palavras sentidas sobre Karl Popper a uma alma afim é demasiado preciosa para desperdiçar. Por anos, esse Popper tem sido não exatamente um pedregulho no qual se tropeça, mas uma irritante pedrinha que preciso a todo instante afastar do caminho, constantemente lançada por pessoas insistentes em afirmar que o seu livro sobre ‘a sociedade aberta e seus inimigos’ é uma das obras-primas das ciências sociais em nosso tempo. Essa insistência convenceu-me a ler o livro, que de outro modo restaria intocado. Você tem toda razão em dizer tratar-se de um dever profissional familiarizar-se com as ideias de uma obra que mente em nosso metiê; eu acrescentaria a esse um outro dever profissional, o de não escrever e publicar uma tal obra. Nela, Popper viola esse dever elementar e rouba horas da minha vida, após as quais, tendo-me dedicado ao cumprimento do primeiro dever professional, sinto-me justificado em dizer sem meias palavras que o livro é descarado, um lixo diletante. Cada frase é um escândalo, mas é possível ainda listar outros aborrecimentos.”
E Voegelin não se furta à tarefa – que, imagino, deve ter-lhe propiciado algum prazer sádico –, acrescentando que “Popper é inculto filosoficamente, um completo e primitivo ideólogo intratável, inapto sequer a reproduzir corretamente o conteúdo de uma única página de Platão (...) Resumidamente: o livro de Popper é um escândalo sem circunstâncias atenuantes; sua atitude intelectual é o típico produto de um intelectual fracassado; moralmente poderia se usar expressões como patifaria, impertinência, grosseria; em termos de competência técnica, como amostra na história do pensamento, é diletantismo e o resultado é desprezível”.
Meses depois, em 8 de agosto do mesmo ano, Strauss responde agradecendo a Voegelin pela carta, contando tê-la mostrado a um proeminente colega. O colega era o filósofo e diplomata Kurt Riezler, que, segundo Strauss, “foi encorajado a usar a sua influência contra a nomeação de Popper aqui para Chicago. Portanto, você ajudou a prevenir um escândalo”. Eis por que, provavelmente, o autor de A sociedade aberta e seus inimigos não tenha ido ensinar na Universidade de Chicago, cujos alunos foram poupados de suas incompreensões sobre Platão.
Com efeito, como dissemos, Popper parece não ter captado certas sutilezas da prosa platônica. Caso contrário, jamais o teria qualificado como apóstolo do totalitarismo. De acordo com Platão, existe no homem uma única força psicológica capaz de atraí-lo tanto para a filosofia quanto para o seu oposto, a tirania. Essa força é Eros (o amor). Há, por exemplo, no diálogo Fedro, a famosa alegoria sobre a alma humana, representada como uma biga puxada por dois cavalos alados: o primeiro deles é nobre e domesticado, e, sem necessidade de chicote, tende naturalmente na direção das coisas belas e verdadeiras; o segundo, bruto e selvagem, faz força rumo às regiões mais baixas da psique, e busca a concupiscência como se fora um feixe de feno. O movimento da alma – presa ao chão ou elevada aos céus – varia conforme a prevalência de um ou outro cavalo.
Em Platão, portanto, Eros é uma e a única força capaz de rumar em sentidos opostos. Sócrates chega a caracterizá-lo como uma espécie de loucura prazerosa difícil de controlar. E a diferença entre o filósofo e o tirano consiste justamente na maior ou menor capacidade de autocontrole erótico. Se o filósofo é o homem cujo amor à sabedoria nunca chega ao ponto de corromper-lhe a alma, o tirano, ao contrário, tem pelo poder um amor incontrolável e avassalador. Para Platão, o filósofo é aquele que sabe domar o tirano interior. Como extrair dessa antropologia o germe do totalitarismo é algo que nos escapa...
É por enxergar em Platão um idealizador da figura do “rei-filósofo” que os adeptos da teoria política popperiana passaram a descrevê-lo como um patriarca do totalitarismo moderno. Segundo essa interpretação, as viagens que Platão fez a Siracusa a fim de orientar os tiranos Dionísio I e Dionísio II teriam sido a tentativa de concretização do projeto político de A República. Por conta desse episódio histórico, a cidade siciliana foi convertida em símbolo da sujeição intelectual à política. Diz-se por exemplo que, ao retornar às aulas após o seu infame mandato como reitor nazista na Universidade de Freiburg, o filósofo Martin Heidegger teve de ouvir comentários maliciosos: “De volta de Siracusa?”.
São justamente alguns discípulos de Popper – não os de Platão – os que, no mundo contemporâneo, parecem divisar a utopia totalitária de um governo dos que sabem, a epistocracia
Mas é tosca a leitura que Popper faz do envolvimento de Platão com os políticos de Siracusa. Basta ler a sua Carta Sétima para notar que a decepção do filósofo com a política acometera-o ainda jovem, inicialmente por conta do governo tirânico dos Trinta de Atenas (404-403 a.C.), e, em seguida, pelo regime democrático que o sucedeu, responsável pela morte de seu mestre Sócrates. Platão era cético em relação à política, julgando degradante a cultura de Siracusa, que conhecera já em sua primeira viagem, ao tempo de Dionísio I. Sempre reticente, foi apenas por insistência de seu discípulo Díon, de quem ouvira louvores ao espírito filosófico do novo tirano, Dionísio II, que Platão concordou em retornar à cidade outras duas vezes, concluindo finalmente pela impossibilidade de incutir a verdadeira filosofia naquele sujeito vão e pretensioso, que da vida intelectual absorvera apenas um “verniz de opiniões superficiais”, e que tentara cooptar o filósofo “por meio de distinções e presentes de dinheiro”.
Contrariamente à interpretação popperiana, a ideia do “rei-filósofo” nunca foi um projeto político. Em Platão, ele foi sempre algo como um tipo ideal no sentido weberiano, uma reductio ad absurdum, jamais uma utopia totalitária. Com seu híbrido conceitual, Platão pretendeu incitar os interlocutores a imaginar a dissolução dos termos componentes – rei e filósofo –, que se seguiria necessariamente à sua fusão. Porque, se essa coisa pudesse existir, um rei-filósofo não seria plenamente nem um nem outro. Platão não desejava uma identificação completa do político (o rei) com o intelectual (o filósofo), nem, tampouco, a sua disjunção absoluta. Antes, propunha uma correspondência entre a ordem interna da alma, a especialidade do filósofo, e a boa ordem da sociedade, a missão do governante justo.
Ora, são justamente alguns discípulos de Popper – não os de Platão – os que, no mundo contemporâneo, parecem divisar a utopia totalitária de um governo dos que sabem, a epistocracia. Mas isso é Jason Brennan, é George Soros, é Klaus Schwab e que tais. Não Platão.
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