No final do artigo da semana passada, afirmei que o fundamento do Gnosticismo é uma concepção particular de conhecimento, compreendido como meio de salvação. Como prometido, falarei mais sobre a questão no artigo de hoje.
Antes de tudo, convém notar que o conhecimento gnóstico (gnōsis) não se confunde com um conhecimento de tipo intelectual ou teorético (episteme) característico da filosofia grega ou da ciência moderna. Gnose significa, em última instância, conhecimento de Deus, a quem, por sua natureza transcendente, não se pode apreender naturalmente, ou seja, com o simples recurso à razão natural humana. O objeto da gnose inclui tudo aquilo que pertence à esfera divina do ser: a ordem e a história dos mundos superiores, o destino do homem, e os meios de sua salvação. Portanto, a atitude mental subjacente a essa espécie de conhecimento é bem distinta da cognição racional ordinária.
Por um lado, a gnose apresenta-se como experiência de revelação, de modo que a recepção da verdade, via erudição secreta ou iluminação interior, substitui argumentos racionais e teoréticos. Por outro, o conhecimento gnóstico não é apenas informação sobre a realidade, mas, porque transforma a condição humana, exerce uma função no processo de salvação. Daí que a gnose possua um sentido eminentemente prático. O objeto último da gnose é Deus, e sua presença na alma transforma o conhecedor (isto é, o gnóstico), tornando-o parte da existência divina. Há, na gnose, algo como uma confusão entre o sujeito e o objeto de conhecimento.
Como escreve Hans Jonas: “O conhecimento e a conquista do conhecido pela alma são tidos por coincidentes – esse, aliás, o argumento de todo verdadeiro misticismo. Também é, decerto, o argumento da theoria grega, mas num sentido diverso. Aí, o objeto do conhecimento é o universal, e a relação cognitiva é ‘óptica’, isto é, um análogo da relação visual com a forma objetiva, que resta inalterada pela relação. Já o conhecimento gnóstico trata do particular (pois a divindade transcendente ainda é particular), e a relação de conhecimento é mútua, isto é, um ser conhecido ao mesmo tempo, com ativa autoindulgência por parte do conhecido. Lá, a mente é informada pelas formas que contempla, e enquanto as contempla (ou as pensa). Aqui, o sujeito é transformado (de alma para espírito) pela união com uma realidade que, de fato, é ela própria o sujeito supremo, e, falando estritamente, jamais um objeto”.
De acordo com Kurt Rudolph, o gnosticismo postula um conhecimento redentor que reúne num mesmo bloco o objeto do conhecimento (a natureza divina), os meios de conhecimento (a gnose) e o próprio conhecedor (o gnóstico). Sendo assim, a gnose diferencia-se não apenas do conhecimento teorético da filosofia (episteme), mas também da fé (pistis) no sentido cristão tradicional. Se a gnose consiste na libertação da centelha divina (pneuma, ou “Deus interior”) aprisionada dentro do homem – o que implica a ascensão do gnóstico ao princípio divino extramundano –, a fé cristã depende, ao contrário, da confiança direta no Deus que se fez carne, partilhando com os homens a condição mundana. Se, no primeiro caso, o homem quer “subir” a um reino divino totalmente alheio ao mundo (theiosis) – daí o gnóstico desprezar o mundo material e o seu próprio corpo como prisões –, no segundo, inversamente, é Deus quem “desce” ao mundo (kenosis), misturando-se a ele e andando por entre os homens. Se, pois, o sentido tradicional da fé cristã implica a humanização do Deus, a gnose promove uma desumanização (no sentido da autodivinização) do homem.
O Deus gnóstico é absolutamente transmundano, sua natureza estranha a este universo, que ele não criou e nem tampouco governa
O mito central do Gnosticismo parte de uma ideia igualmente central e básica: há, no homem, a presença de uma “centelha” divina que, oriunda do mundo superior, “caiu” neste mundo terreno – o mundo do destino –, devendo ser re-despertada por sua contraparte divina. Essa ideia sustenta-se sobre uma teologia regressiva, que concebe o divino como algo que, em certo momento, entrou em crise e começou a degenerar, tendo como efeito colateral a criação deste mundo, não por Deus, mas por um demiurgo maligno e hostil, ele próprio manifestação suprema da degeneração inicial. Não podendo deixar de se interessar pelo resultado dessa crise, o Deus extramundano procura recuperar o resquício inviolável (incorrupto pela matéria) dessa divindade decaída – a “centelha”. Tudo isso, evidentemente, compõe uma teologia, uma cosmologia, uma antropologia e uma escatologia específicas.
Um dos atributos principais do pensamento gnóstico é um dualismo radical que informa a relação de Deus com o mundo e, por derivação, do homem com o mundo. O Deus gnóstico é absolutamente transmundano, sua natureza estranha a este universo, que ele não criou e nem tampouco governa, e com o qual mantém uma relação antitética. O reino divino da luz, autocontido e distante, opõe-se ao cosmos, o domínio da escuridão. O cosmos, por sua vez, é obra de poderes (ou potestades) inferiores que, embora sejam, de forma mediada, descendentes do Deus transmundano, não mais o reconhecem e obstruem o seu conhecimento. As potestades, criaturas mesquinhas e ciumentas que criaram e governam o mundo, são frequentemente chamadas de Archons. Em alguns sistemas gnósticos, os Archons são liderados por um demiurgo, que é o verdadeiro criador do cosmos. Os Archons são também concebidos como carcereiros cósmicos, que bloqueiam a comunicação entre este mundo e o Além.
O dualismo gnóstico apresenta variações importantes conforme as diferentes escolas. Grosso modo, dizem respeito à questão da origem do mal, podendo ser agrupadas em dois grandes “tipos” de dualismo. O primeiro, observado nos sistemas que integram o Gnosticismo clássico (representados, como vimos, na Biblioteca Nag Hammadi), é chamado por Hans Jonas de “tipo Sírio-Egípcio”. Trata-se de um dualismo marcado por uma concepção monística do princípio divino – que, como vimos, gera o cosmos-prisão a partir de uma crise interna degenerativa. Intrínseca a esse “dualismo sobre fundo monístico” (como o chama Kurt Rudolph) é a doutrina gnóstica do Deus desconhecido, situado além de tudo o que é visível e sensível, e habitando um domínio transcendente chamado Pleroma, onde também vivem anjos e outros seres celestiais (sejam ideias personificadas ou hipóstases). O Pleroma opõe-se ao cosmos-prisão como a luz à escuridão, o corpo (que inclui a ‘alma’, ou psyche) ao espírito (pneuma), a gnose à ignorância.
O outro tipo de dualismo, apelidado por Hans Jonas de “Iraniano”, é ilustrado pelos sistemas gnósticos identificados como de origem persa (daí o nome), tais como o Maniqueísmo e o Mandeanismo. Há neles dois princípios básicos e opostos existindo desde sempre, descritos mitologicamente como o reino da luz e o reino da escuridão, ou o Bem e o Mal. São herdeiros de uma antiga metafísica persa, cujo representante mais notável é o pensamento dualista do profeta Zoroastro (ou Zaratustra). Se, para o dualismo “Sírio-Egípcio”, o Mal corresponde a um nível decaído do Ser, um elemento degradado da divindade, para o dualismo “Iraniano”, ele é um princípio permanente.
De todo modo, apesar de suas diferenças, há algo de comum nos dualismos gnósticos que os distinguem de outros sistemas dualistas tradicionais, incluindo o próprio Zoroastrismo. Segundo este, a oposição entre Bem e Mal não coincide com uma dicotomia entre espiritual e corporal (ou material), uma vez que os polos opostos se acham misturados no mundo material e corpóreo. Não há uma disjunção absoluta entre o Bem e o mundo. Da mesma forma, no dualismo platônico entre o mundo das ideias e o mundo sensível, não encontramos nada parecido com a hostilidade gnóstica à realidade mundana. Como mostra Voegelin em Science, Politics and Gnosticism, o mundo de Platão era um cosmos bem-ordenado, onde o homem helênico sentia-se em casa. Assim também, o dualismo judaico-cristão entre Bem e Mal, ou entre Deus e Diabo, não implica nenhuma associação inequívoca do mundo (ou do corpo) com o Mal. Ao contrário, o mundo judaico-cristão é aquele que, como diz o Gênese, Deus criou e achou bom.
Diferente dos anteriores, o dualismo gnóstico tem como característica predominante um radical anticosmismo, ou seja, uma avaliação radicalmente negativa do mundo visível e de seu criador, agrupados, ambos, num campo semântico que inclui noções como as de “escuridão”, “crueldade”, “ignorância”, “envenenamento”, esquecimento”, “desespero”, “solidão”. O mundo criado pelo demiurgo maligno é completamente apartado do “verdadeiro” Deus.
Esse desprezo gnóstico pelo mundo, decorrente da associação do material com o maligno, chamou a atenção de Plotino, filósofo neoplatônico que notou aí uma deturpação das ideias originais de Platão. Em seu tratado contra os Gnósticos – ou “aqueles que afirmam que o Criador do Cosmos e o próprio Cosmos são malignos” (Enéadas II, 9) –, o filósofo elabora uma crítica contundente ao anticosmismo, afirmando que a gradação descendente da ordem do Ser (das formas puras às coisas sensíveis) não justificaria em hipótese alguma a rejeição dos níveis ontológicos inferiores. Em suas palavras: “Os que reprovam a constituição do cosmos não compreendem o que fazem, ou para onde os levará a sua audácia. Não entendem haver uma ordem sucessiva de primários, secundários, terciários, e assim continuamente até as origens. Não percebem que nada pode receber a culpa de ser inferior aos fundamentos primeiros; que só podemos aceitar, humildemente, a constituição do todo, e seguir o melhor possível até a causa primeira, recusando o espetáculo trágico, tal como os gnósticos o enxergam, das esferas cósmicas – que, na verdade, são em tudo suaves e graciosas. E o que, afinal, há de tão terrível nessas esferas a ponto de assustar pessoas pouco acostumadas a pensar?... Não temos o direito de pedir que todos os homens sejam bons, ou lamentar que essa virtude universal seja impossível: isso seria repetir o erro de confundir a nossa esfera de existência com o Ser Supremo, e tratar o mal como uma espécie de fracasso do conhecimento”.
Plotino faz aí um alerta prévio contra a imaginação utópica. Sua polêmica com os gnósticos é tão mais significativa na medida em que os elementos da cosmologia gnóstica são muito semelhantes à nova cosmologia platônica, esboçada no Timeu, e mais tarde desenvolvida por Ptolomeu em Almagesto. Trata-se do famoso modelo geocêntrico – mais tarde superado pelo heliocentrismo copernicano – que colocava a Terra no centro do universo, sendo circundada por sete esferas, ocupadas por Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno (daí a alusão de Plotino ao mencionar o terror que elas infligiam aos gnósticos). Acima da sétima esfera, havia ainda uma oitava, a das estrelas fixas. Foi sobre esse fundo cosmológico comum a toda a antiguidade pré-copernicana que os gnósticos propuseram a sua interpretação particular.
Na visão tradicional de Platão, o cosmos era uma totalidade perfeitamente ordenada. Segundo a célebre expressão de Leibniz – que, nesse aspecto, escrevendo séculos mais tarde, manteve-se fiel ao espírito platônico –, o cosmos atual seria “o melhor dos mundos possíveis”. Para os gnósticos, ao contrário, as esferas planetárias são habitadas por criaturas demoníacas (os Archons), que, governando o cosmos de forma tirânica, impediriam a sua transição para o domínio supracósmico e divino (o Pleroma). O universo gnóstico, o domínio dos Archons, é concebido como uma vasta prisão, cuja masmorra central é a Terra, cenário onde se desenrola o drama da existência humana. Nesse esquema, portanto, o homem vê-se encarcerado no mais profundo interior do cosmos. Ao redor e acima da Terra estão as esferas cósmicas, dispostas em círculos concêntricos cada vez mais inclusivos.
Usualmente, como dito acima, as esferas são em número de oito (os sete planetas do sistema solar (hebdomas) mais a camada das estrelas fixas), mas em muitos sistemas gnósticos há uma tendência a multiplicar essa estrutura, fazendo o esquema expandir-se notavelmente, até o ponto em que as esferas, ou “céus”, são contados em centenas. Independentemente do número de esferas, todavia, o panorama geral é a de uma imensa vastidão que separa o homem do Outro Mundo e de sua verdadeira natureza divina. Essa vastidão não se mede apenas por uma distância espacial, mas, sobretudo, pela atuação constante de forças demoníacas. A vastidão e a multiplicidade do sistema cósmico expressam o quão distante de Deus, e de sua própria essência, está o homem. Daí decorre toda uma antropologia filosófica e um sistema moral que merecem ser mais bem examinados no próximo artigo.
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