“A soteriologia gnóstica é elitista: ela presume que a salvação só está disponível a um segmento privilegiado da humanidade” (Luciano Pellicani, Revolutionary Apocalypse: Ideological Roots of Terrorism)
Vimos, no artigo anterior, que a antiga cosmologia gnóstica era geocêntrica, concebendo a Terra como o centro do universo, rodeada por esferas governadas pelos Archons – potestades mesquinhas e ciumentas que criaram e governam o mundo. Ao fim do artigo, prometemos extrair as consequências antropológicas e morais dessa cosmologia, e é o que faremos a seguir.
As esferas são, portanto, os tronos dos Archons, que dominam o mundo de forma coletiva (e cada um, individualmente, em sua própria esfera), atuando como carcereiros cósmicos. Seu regime tirânico (e, por vezes, o cosmos-prisão como um todo) é frequentemente designado como heimarmenē, palavra grega para “destino”, compreendido especificamente como sujeição humana a forças incontroláveis e caprichosas. Na condição de guardião de sua esfera, cada Archon bloqueia a passagem da alma que procura ascender após a morte, assim evitando a sua fuga do mundo, e o consequente retorno a Deus.
Os Archons são também os criadores do mundo, ainda que, em algumas correntes do gnosticismo, essa prerrogativa seja reservada a uma liderança única, o demiurgo – artífice do universo, segundo o Timeu de Platão. No gnosticismo clássico, o demiurgo costuma ser retratado de forma negativa, com as características pretensamente implacáveis de Javé, o Deus do Antigo Testamento, com quem os homens mantêm uma relação de rivalidade e hostilidade.
A cosmologia gnóstica é inseparável de uma antropologia para a qual o homem é um prisioneiro por excelência, primeiro do cosmos, mas também do seu próprio corpo. Segundo essa antropologia, o homem é feito de carne/matéria corporal (hyle), alma (psyche) e espírito (pneuma). As suas carne e alma respondem por sua natureza mundana, enquanto o seu espírito é um resquício de sua origem extramundana, ou, mais precisamente, divina. Assim, tanto o corpo quanto a alma são tidos por frutos decaídos das potestades cósmicas. E é graças a eles, corpo e alma, que o homem se mantém preso ao mundo, restando sujeito às forças imprevisíveis do destino.
Encapsulado no corpo e na alma está o espírito (pneuma), também chamado de “centelha” – uma porção da substância divina que, originária do além, despencou no mundo atual. Foi para nele manter aprisionada a centelha divina que os Archons criaram o homem. Se, no plano macrocósmico, o homem acha-se enclausurado pelas esferas celestes, no plano microcósmico, o pneuma está encarcerado dentro do corpo e alma humanos. Em seu estado não-redimido, o pneuma está imerso na alma e na carne, inconsciente de si próprio, amortecido, adormecido ou intoxicado pelo veneno do mundo – em suma, ignorante. O seu despertar e a sua redenção dependem da gnose, pois o gnóstico só se liberta do cosmos-prisão quando compreende o pneuma como a essência do seu verdadeiro ser.
A formação de vanguardas é, precisamente, um fenômeno típico dos movimentos revolucionários, tanto medievais quanto modernos
A natureza radical do dualismo gnóstico também determina a sua escatologia. Se o Deus transcendente é estranho a este mundo, o pneuma também o é, e todo o esforço gnóstico consiste em libertar a essência humana das grades do mundo hostil, fazendo-a retornar ao reino originário da luz. A condição necessária para tanto é que o gnóstico adquira conhecimento do Deus transmundano e da sua própria situação. O que impede essa tomada de consciência – ou insight gnóstico – é a ignorância (agnoia), a essência mesma da existência mundana. O Deus transcendente é desconhecido neste mundo, sendo impossível conhecê-lo por meio deste. Exige-se, para tanto, alguma forma de revelação, necessidade fundada na própria condição humana perante o cosmos. A revelação altera essa situação em seu aspecto central – a ignorância. Portanto, já é, ela mesma, parte decisiva no processo de salvação.
Quem carrega a mensagem de salvação é um mensageiro do reino transcendente da luz, que atravessa as esferas cósmicas, sobrepuja os Archons, desperta o pneuma de sua letargia mundana e lhe transmite a gnose sobre o caminho de volta a Deus. Equipada com essa gnose esotérica, e após a extinção da carne, a alma inicia a sua ascensão, deixando para trás, a cada esfera cósmica ultrapassada, as “vestimentas” psíquicas responsáveis por seu aprisionamento. Com isso, despido de todas as amarras mundanas, o pneuma alcança o Deus transmundano, reunindo-se novamente à substância divina original. De um ponto de vista teológico, o processo faz parte da restauração de uma totalidade divina perdida, e é a fim de recuperar a “centelha divina” decaída que os mensageiros supracósmicos intervêm na história.
Como nota Hans Jonas, a cosmovisão gnóstica tem implicações profundas sobre o campo da moralidade. Em sua vida mundana, o pneumático (ou seja, o portador da gnose) vê-se como um ser apartado do conjunto da humanidade. A moralidade gnóstica é marcada pela hostilidade ao mundo, bem como por um profundo desprezo por todo vínculo mundano. Desse princípio geral costumam derivar duas atitudes existenciais opostas, mas no fundo complementares: o ascetismo e a permissividade.
O gnóstico ascético deduz da posse da gnose a necessidade de evitar a contaminação pelo mundo, procurando reduzir ao mínimo o seu contato com a realidade atual. Do mesmo princípio, o gnóstico permissivo deriva o privilégio autoconcedido da liberdade absoluta. Não é mero acaso que, no decorrer da história, diversas correntes gnósticas tenham lançado ataques frontais aos mandamentos mosaicos, com suas conhecidas fórmulas imperativas do tipo “Farás” e “Não farás”, compreendidas, nessa perspectiva, como manifestações da tirania cósmica. Para o gnóstico, as sanções associadas à transgressão desses mandamentos só podem afetar o corpo e a alma, ou seja, os elementos mundanos da natureza humana. Todavia, uma vez que o pneumático não está submetido ao heimarmenē (o “destino”), ele se sente liberto do jugo da lei moral. A ele, diria Dostoievski, tudo é permitido, pois o pneuma desperto torna-o imune aos cruéis desígnios dos Archons.
É o tipo permissivo, mais que o ascético, quem revela com nitidez o aspecto niilístico presente na negação gnóstica do mundo. De todo modo, ascese e permissividade são duas faces de uma mesma moeda, cunhada na forja do anticosmismo. Odiando o mundo atual, o ascético pretende fugir para um outro; odiando-o não menos, o permissivo só é mais impaciente, pretendendo transformá-lo por completo, à imagem de uma realidade futura que ele imaginar conhecer, e à qual crê pertencer de antemão.
Em The Pursuit of the Millennium, Norman Cohn – que não trata diretamente do gnosticismo, mas do milenarismo medieval – parece dar razão a Hans Jonas. Escrevendo sobre uma heresia cristã dos séculos 13 e 14 conhecida como “Espírito Livre”, o autor ressalta o seu caráter gnóstico, conferindo-lhe um lugar de destaque no conjunto das escatologias revolucionárias que, dali em diante, viriam a se alastrar por toda a Europa.
Os heréticos do “Espírito Livre” eram místicos anárquicos, propondo uma afirmação tão impetuosa da liberdade que, nas palavras de Cohn, acabou resultando na “negação total de qualquer tipo de comedimento ou limitação”. De certa forma, podem ser considerados precursores remotos de Bakunin e Nietzsche. Nas palavras de Cohn: “Individualistas extremos como esses podem facilmente se converter em revolucionários sociais – e assaz efetivos – quando em face de uma situação potencialmente revolucionária. O Super-Homem de Nietzsche, não importa o quão vulgarizado, certamente povoou a imaginação de muitos dos ‘boêmios armados’ que fizeram a revolução nacional-socialista; e vários dos expoentes da revolução mundial contemporânea devem mais a Bakunin do que a Marx. Na baixa Idade Média, foram os adeptos do Espírito Livre que conservaram, como parte de seu credo na emancipação total, a única doutrina revolucionária então existente. E foi a partir de suas ideias que surgiram doutrinários para inspirar a tentativa mais ambiciosa de revolução social que a Europa medieval já havia testemunhado”.
A descrição dos livre-espiritualistas oferecida por Cohn ilustra exemplarmente o tipo permissivo de gnóstico descrito por Jonas. Os adeptos do “Espírito Livre” eram extremamente subjetivistas, não reconhecendo outra autoridade que não a de suas próprias experiências pessoais. Em sua visão, a Igreja era um obstáculo à salvação, quando não um inimigo tirânico, instituição ultrapassada que deveria ser substituída por uma comunidade dos “santos”, concebida como um vaso ou receptáculo para o Espírito Santo.
Observando a autoimagem dos livre-espiritualistas, é possível compreender melhor a persona do moderno revolucionário ocidental. Como explica Cohn: “O núcleo da heresia do Espírito Livre está na atitude do adepto para consigo mesmo: ele acredita ter alcançado um estado tão absoluto de perfeição que passa a se ver como incapaz de pecar. Embora as consequências práticas dessa crença possam variar, uma delas é certamente o antinomianismo ou o repúdio a normas morais. O ‘homem perfeito’ pode sempre concluir que lhe é permitido, ou mesmo mandatório, fazer tudo aquilo comumente proibido aos demais”.
Cohn nota ainda que, para os heréticos do “Livre Espírito”, não há realmente uma oposição entre ascese e permissividade, já que ambas as atitudes constituem etapas diferentes de um contínuo progresso espiritual: a ascese prepara o caminho para a mais completa permissividade moral. Para os livre-espiritualistas, a fase final de desenvolvimento do espírito era a união completa do homem com Deus, sendo que, a partir de então, os seus atos estariam acima de todo juízo humano, tidos por manifestações diretas do princípio divino. Como escreve o autor: “Essa deificação da alma é possível porque a alma existiu em Deus por toda a eternidade. A alma é indistinta de Deus, assim como a chama, do fogo. Ela provém de Deus, e a ele retorna como uma gota d’água vem e retorna ao mar. Com efeito, Deus é tudo o que há. Assim, ao ser aniquilada em Deus, a alma é reintegrada ao seu ser verdadeiro e originário”.
A formulação de Cohn sobre os livre-espiritualistas corresponde também à criação dostoievskiana do “homem-ideia”, pela qual o romancista russo buscava descrever a autopermissividade dos niilistas e revolucionários do século 19. E remete também, é claro, àquela sensação quase auto-hipnótica conferida pela posse do pneuma, sobre a qual falava Hans Jonas ao escrever sobre a moralidade gnóstica.
Uma consequência importante dessa percepção gnóstica deve ser destacada. Como nota Jonas, há no gnosticismo a ideia de um insight que separa o seu portador (ou portadores) do resto da humanidade. Trata-se, portanto, de uma percepção da realidade que conduz à formação de elites ou vanguardas revolucionárias, abrangendo todos os porta-vozes do futuro transfigurado. A formação de vanguardas é, precisamente, um fenômeno típico dos movimentos revolucionários, tanto medievais quanto modernos. E, como veremos no próximo artigo, reside aí a diferença crucial entre a mística gnóstico-milenarista-revolucionária e a doutrina cristã, que rasgou o véu do templo, desafiou o farisaísmo e rejeitou o tipo de soteriologia elitista característica do gnosticismo.
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