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Flavio Gordon

Flavio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

O que é o gnosticismo? (parte final)

O julgamento final, por Fra Angelico. (Foto: Wikimedia Commons)

“Falei abertamente ao mundo; sempre ensinei nas sinagogas e no templo, onde todos os judeus se reúnem. Nada disse em segredo” (João 18:20)

Terminamos o artigo da semana passada apontando para o caráter essencialmente elitista e antropocêntrico da soteriologia (isto é, a doutrina da salvação) gnóstica, uma característica que, de alguma maneira, foi herdada pelo milenarismo medieval e, mais tarde, secularizada, pelas religiões políticas revolucionárias da modernidade. Trata-se de uma soteriologia fundamentalmente distinta da tradicional doutrina cristã da salvação, essencialmente teofânica e universalista. Como explica, em obra clássica, o historiador judeu J. L. Talmon: “Neste respeito, todas as tendências messiânicas consideraram o cristianismo, e por vezes a religião como tal, mas sempre a forma histórica do cristianismo, como seu arqui-inimigo. De fato, sempre se proclamaram seus substitutos. Suas próprias mensagens de salvação eram agudamente incompatíveis com a doutrina básica cristã, a do pecado original, com sua visão da História como a história da queda e a negação do poder humano de obter salvação por seu próprio esforço”.

A diferença entre o conhecimento (gnosis) e a fé (pistis), que havíamos visto de passagem anteriormente, ajuda-nos a perceber a distinção. A gnosis é sempre um conhecimento iniciático, secreto, restrito a um grupo seleto de pessoas: os gnósticos, ou pneumáticos. A pistis, ao contrário, representa a experiência do senso comum, a fé na verdade revelada, em forma carnal, aos homens de “todas as nações, tribos, povos e línguas” (Apocalipse 7:9).

Comentando sobre a oposição, oriunda dos primórdios do cristianismo, quando a nova religião começava a se definir doutrinariamente, o filósofo Jerry S. Clegg explica: “Todos os participantes nas disputas teológicas nos primeiros séculos da era cristã concordavam sobre quem era Jesus… Não concordavam, todavia, sobre o modo como a salvação seria alcançada. Com efeito, o debate da época girava em torno da questão sobre que tipo de religião era o cristianismo. O caminho percorrido pelo cristão devoto seria o dá fé (pistis) ou o do conhecimento (gnosis)? No primeiro caso, o cristão teria de ser um bom crente – alguém convicto de que a lealdade devocional a uma divindade pessoal capaz de responder à prece, ouvir a confissão e garantir o perdão dos pecados é a chave para a salvação. No segundo, o cristão deveria ser um bom conhecedor – alguém com a fórmula correta de como salvar a si mesmo. Naquele, é Jesus quem salva. Neste, é o conhecimento da verdade”.

A negação da fé em nome de um conhecimento de Deus que se confunde, no fim das contas, com um autoconhecimento (afinal, no gnosticismo, se autoconhecer é descobrir a existência de um Deus interior, a “centelha” ou pneuma) constitui o trajeto que liga, num primeiro momento, o gnosticismo ascético ao gnosticismo político e, num segundo momento, o gnosticismo como um todo aos milenarismos medieval e moderno. E é justo essa negação que diferencia o gnosticismo e o milenarismo do cristianismo, do qual são, no sentido mais técnico do termo, heresias.

Ao contrário do dualismo gnóstico-milenarista-revolucionário, o dualismo cristão não é radical, mas, por assim dizer, paradoxal

A disjunção absoluta entre a imanência e a transcendência, entre o tempo e a eternidade (tal como proposta pelos sistemas gnósticos mais radicalmente dualistas), é a contrapartida da conjunção absoluta entre o tempo e a eternidade (tal como proposta pelo milenarismo). Ambos os casos representam extremos opostos à escatologia cristã, que, nesse sentido, propõe uma tensão permanente entre o tempo e a eternidade, mantendo a matéria e o espírito, por assim dizer, a uma boa distância: nem irremediavelmente apartados, nem absolutamente confundidos. O cristianismo não propõe uma fuga do tempo em direção à eternidade, nem tampouco uma realização da eternidade no tempo. Em lugar disso, sugere uma relativização do tempo a partir da eternidade. Como na célebre fórmula latina, trata-se de encarar o tempo sub specie aeternitatis, ou da perspectiva da eternidade.

Ao contrário do dualismo gnóstico-milenarista-revolucionário, o dualismo cristão não é radical, mas, por assim dizer, paradoxal. A antropologia daí resultante é realista, não utópica. A encarnação de Cristo é a materialização dessa tensão cristã entre a transcendência e a imanência. Como explica o teólogo Joe E. Morris: “A heresia implica uma falta de tensão dialética. O dualismo, ou heresia, destrói a tensão. Nesse sentido, é irrealista e dado à fantasia. O dualismo reflete uma simplificação extrema da realidade. Fala do bem sem falar do mal, do divino sem falar do humano, da alma sem o corpo, do espírito sem a matéria. A encarnação significa, e mantém, a tensão dialética. Rejeita a fantasia, o sentimentalismo, a superficialidade e o wishful thinking. Aceitar a encarnação significa deixar de ver o mundo como gostaríamos que fosse, e passar e vê-lo como é.  Significa ser capaz de balancear ou pesar o bem e o mal, o espírito e a carne, a luz e a escuridão, a alma e o corpo. Com a encarnação, podemos falar das polaridades normais da vida, porque fazem parte do todo. A demanda definitiva dessa unidade de contrários, o desafio último da fé, é o Deus feito homem, Jesus Cristo. Porque se baseia no conhecimento e na ausência de tensão dialética, o dualismo não requer um salto de fé. Já a encarnação, sim. Com ela, já não temos respostas claras. Eis a demanda e o desafio da encarnação, da fé. É uma aventura arriscada, uma peregrinação pelo mundo, cuja única garantia é Emanuel, Deus conosco. Trata-se de um envolvimento com o mundo, e não de uma fuga fantasmagórica do mundo”.

Como nota Norman Cohn em obra já citada por mim, o milenarismo pode assumir as mais diferentes feições, que variam do ascetismo pacifista e absolutamente espiritualizado ao militantismo mais agressivo e materialista. A despeito de suas diferenças, contudo, todas estão enraizadas numa percepção essencialmente negativa do mundo e, consequentemente, num conceito particular de salvação. Segundo Cohn, a salvação milenarista deve ser: 1) coletiva, destinada à comunidade dos “eleitos” ou “ungidos”; 2) mundana, prevista para se realizar neste mundo, e não no outro; 3) iminente, uma vez que se dará num tempo próximo e de forma súbita; 4) total, na medida em que promoverá uma transformação completa da vida na terra, visando não apenas ao aperfeiçoamento do presente, mas nada menos que à própria perfeição; e, por último, 5) miraculosa, no sentido de ser realizada com o auxílio de agentes sobrenaturais.

Segundo Eric Voegelin, uma tensão entre duas visões antagônicas surge já nos primórdios do cristianismo, ainda indefinido entre uma nova religião e um movimento messiânico judeu. As primeiras comunidades cristãs oscilavam entre a expectativa escatológica da Parousia – a “segunda vinda de Cristo”, que instauraria o Reino de Deus na terra – e a concepção da Igreja como a realização histórica do Apocalipse. Uma vez que a Parousia não ocorreu naquele momento, a Igreja evoluiu de uma escatologia do Reino de Deus na história para uma escatologia fundamentalmente transmundana e trans-histórica. Para Voegelin, essa evolução significou a separação entre a essência religiosa do cristianismo e a sua origem histórica

O grande problema do cristianismo primitivo foi o de como conciliar os movimentos quiliastas com a ideia de uma existência permanente da Igreja. Afinal, se o cristianismo fosse assentado sobre o desejo de libertação desse mundo, se os cristãos vivessem na expectativa constante do fim da história e da instauração iminente do Reino de Deus sobre a terra, a Igreja estaria reduzida a uma comunidade efêmera de homens eternamente à espera, aguardando ansiosos que o grande evento pudesse ocorrer durante o curso de suas vidas.

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A principal solução teórica para a questão foi proposta por Santo Agostinho em A Cidade de Deus, obra que representa um verdadeiro tour de force na história da exegese cristã. No capítulo 7 do Livro 20, Agostinho escreve sobre as “duas ressurreições” referidas nas Sagradas Escrituras: a da alma, que tem lugar no tempo histórico; e a do corpo, que ocorrerá no Fim dos Tempos, com o Juízo Final. Diz o filho de Santa Mônica: “No livro do Apocalipse, João, o evangelista, também falava dessas duas ressurreições; mas falava de tal modo que a primeira delas foi mal compreendida por algumas pessoas, sendo, ademais, convertida em fábulas ridículas…  A partir dessa passagem, alguns entenderam que a primeira seria uma ressurreição corporal. Ficaram particularmente excitados, entre outras razões, pela referência aos mil anos”.

Agostinho tinha em mente a passagem no livro do Apocalipse em que o apóstolo João cita os homens (em especial, os mártires) cujas almas reinariam com Jesus “durante mil anos”. O bispo de Hipona propõe, então, uma interpretação perspicaz para o sentido da expressão “mil anos”. Agostinho sugere que o número deve ser entendido como representando a totalidade do tempo histórico, simbolizada, como é usual nas Sagradas Escrituras, por um número inteiro. Portanto, ao falar em “mil anos”, João estaria se referindo ao reino de Cristo em sua Igreja no presente saeculum, que duraria até o Juízo Final.

Agostinho formulava o sentido especificamente cristão da relação entre tempo e eternidade, pois, ao contrário do que postula a escatologia gnóstico-milenarista-revolucionária, o Juízo Final cristão não é concebido como um evento do tempo histórico, mas como a contemplação da temporalidade inteira (os “mil anos”) pela Eternidade. Mais tarde, no século 4, essa interpretação seria elaborada por Boécio, que definiu a eternidade como “a posse plena e simultânea de todos os momentos do tempo”. Ou seja, a eternidade é a estrutura da possibilidade universal do tempo. Quando São Paulo diz que “n’Ele vivemos, nos movemos e somos” (Atos, 17: 28), está descrevendo precisamente a relação metafísica entre tempo e eternidade, na qual Deus aparece como moldura das ações humanas na história.

Diante disso, percebe-se o quão distante a escatologia cristã está das heresias que o parasitaram, cujas manifestações intelectuais modernas são exemplificadas pelas mais variadas filosofias da história – seja a de Hegel, a de Comte, a de Marx, ou a de Fukuyama –, que, independente de suas orientações ideológicas e teóricas específicas, buscam apreender um sentido da história imanente a essa mesma história. Mas como uma criatura histórica, para quem a história é totalmente aberta e indefinida, poderia apreender, de dentro dela, o seu sentido integral? A única resposta possível é: projetando uma Utopia e julgando-a mais real do que a realidade atual. Nada mais gnóstico: incerteza e angústia em relação ao estado presente de coisas, convicção e júbilo em relação ao outro mundo, seja ele metafísico e permanente (como nos dualismos gnósticos clássicos), ou localizado num futuro histórico iminente (como nas utopias milenaristas e revolucionárias).

Se o Juízo Final bíblico sinaliza a passagem do tempo à Eternidade, o Apocalipse revolucionário é descrito como um momento do tempo histórico, momento singular, sem dúvida, pois considerado o ponto culminante de toda a história passada. Se, na escatologia cristã tradicional, os homens são iguais nesse mundo e serão separados apenas na Eternidade, na escatologia gnóstico-milenarista-revolucionária, os homens são separados aqui e agora, pois os “eleitos” agem de antemão como juízes da história, em razão de terem vislumbrado, por sobre os ombros do restante da humanidade impura, a luz que vem de Utopia.

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