“A reação de um negro de não querer conviver com um branco, eu acho uma reação natural. Quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou” (Matilde Ribeiro, ex-ministra da Secretaria Especial de Política da Promoção da Igualdade Racial do governo Lula, março de 2007)
Peço a atenção do leitor para as duas frases a seguir:
“[A ‘raça’ X] é a mais degenerada das raças humanas, cuja forma se aproxima da do animal e cuja inteligência nunca é suficientemente grande para chegar a estabelecer um governo regular”.
“[Os indivíduos da ‘raça’ Y] são menos humanos. Graças a uma deficiência [natural], só conseguem agir de maneira cruel. Por não terem o que nós temos [uma determinada característica morfológica], são necessariamente selvagens e bárbaros. Só conseguem agir como animais. De fato, são eles que estão mais próximos dos animais. São eles os verdadeiros selvagens”.
Em comum entre as duas afirmações há, evidentemente, o conteúdo racista. O que as distingue, no entanto, é o intervalo de mais de 200 anos que as separa no tempo.
A primeira frase foi escrita em 1812 por Georges Cuvier, um dos pais fundadores da paleontologia, no livro Investigações Sobre Ossadas Fósseis. A que eu glosei como ‘raça’ X era a dos “negros africanos”, numa época em que opiniões cientificamente racistas como as do naturalista francês eram quase consensuais entre os membros das elites intelectuais europeias.
A segunda foi dita há alguns dias pelo rapper americano Nick Cannon, em entrevista para um Podcast no YouTube, ocasião em que apresentou a sua teoria sobre a diferença essencial entre negros e brancos.
Para Cannon, que também é militante do Black Lives Matter (BLM), a presença de melanina no organismo é responsável pela capacidade humana de desenvolver compaixão pelo próximo. Sendo assim, por carecerem de melanina (a tal “deficiência”), os brancos ou caucasianos (que glosei como indivíduos da ‘raça’ Y) seriam menos humanos que os negros (ou “melaninados”), restando mais próximos dos animais selvagens.
Se manifesta por um indivíduo “branco” sobre um indivíduo “negro” nos dias de hoje, uma declaração racista como a de Cuvier causaria escândalo de grandes proporções, e decerto seria considerada criminosa. Em compensação, uma fala como a de Cannon, conquanto tenha sido criticada, não acarreta grandes consequências nem gera comoção universal.
Longe, aliás, de idiossincrasia pessoal, a visão do militante BLM parece estar se tornando cada vez mais naturalizada na América contemporânea, sobretudo para as facções mais radicas da esquerda, que enxergam o racismo de “negros” (ou de seus autoproclamados representantes) contra “brancos” como o exercício de um direito, a cobrança de uma dívida histórica.
Em artigo intitulado “The War Against White People”, o antropólogo Philip Carl Salzman, professor emérito da McGill University, registra manifestações no país desse racismo socialmente permitido. Cita, por exemplo, algumas opiniões da jornalista Sarah Jeong, especializada em informática, e, desde setembro de 2018, membro do conselho editorial do The New York Times (NYT).
Entre 2013 e 2017, a jornalista de ascendência coreana publicou em suas redes sociais comentários como os seguintes: “Brancos desgraçados, marcando a internet com suas opiniões tal como cães urinando em hidrantes”. Ou: “Seriam os brancos geneticamente predispostos a queimar no sol, e portanto logicamente aptos a viver apenas no subterrâneo, tal como Goblins rastejantes?”. Ou ainda: “O mundo seria bem melhor sem pessoas brancas”.
Reveladas as postagens racistas, o The New York Times tratou de botar panos quentes, afirmando que Jeong não quis dizer exatamente o que disse, e que se expressava de maneira satírica. Por ter sofrido ofensas de teor racista na internet, a jornalista estaria apenas parodiando a retórica dos ofensores. Outros jornalistas, como Reihan Salam, da The Atlantic, e Zack Beauchamp, do portal Vox, saíram em defesa aberta da colega. De acordo com o segundo, a mídia conservadora estaria forçando a barra ao chamar de “racistas” os ataques racistas de Jeong.
Mais uma vez, o discurso de ódio racial da conselheira editorial do NYT está longe de ser fenômeno isolado. No seio da esquerda americana, muitos são os brancos racialmente culpados que, em exibições de autoflagelo moral, esperam expiar a maldição intrínseca à sua cor de pele. Por exemplo, o professor de história James Livingston, da Rutgers University, postou em seu perfil no Facebook: “Ok, agora é oficial: eu odeio gente branca. Sou branco, meu deus do céu, mas será que não podemos manter essa gente – ou seja, nós – longe da vizinhança?” Depois de descrever a desagradável experiência de frequentar uma lanchonete abarrotada de adolescentes brancos mal-educados, o professor desabafou: “De agora em diante, abdico da minha raça. Que se danem essas pessoas”.
Outro professor, da Drexel University (Filadélfia), resolveu aproveitar o período natalino para pedir no Twitter: “Tudo o que desejo de presente de Natal é um genocídio branco”. Em novo tuíte, achou por bem reafirmar a sua posição: “Para esclarecer: quando os brancos foram massacrados durante a Revolução Haitiana, isso foi uma coisa boa”.
Na Geórgia, um doutorando em filosofia e professor assistente declarou num de seus vídeos no YouTube: “Alguns brancos talvez tenham que morrer para que as comunidades negras triunfem em sua luta pela liberdade”.
Os exemplos multiplicam-se ao infinito. Como sintetiza Salzman no artigo citado: “O ódio contra os brancos tornou-se mainstream na cultura americana”. E, como veremos no próximo artigo, esse ódio racial socialmente permitido tem frequentemente transbordado do discurso para a prática, encetando episódios de violência que, ao contrário de casos como os de George Floyd, jamais ganham destaque no noticiário.
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