“Mas a Liga das Nações, mesmo sob uma forma imperfeita, era algo de durável; era o começo de um novo modo de governo do mundo” (John Maynard Keynes, As Consequências Econômicas da Paz, 1920)
“Num mundo cada vez mais interdependente, as antigas noções de territorialidade, independência e não intervenção perdem uma parte de seus significados. As fronteiras nacionais são cada vez mais permeáveis... As nações devem cada vez mais aceitar que, em certos domínios, e particularmente no domínio dos bens comuns globais, a soberania deve ser exercida coletivamente... Por todas essas razões, o princípio de soberania e as normas que dela derivam devem ser adaptadas às realidades em mudança... No entanto, certos governos relutam em aceitar a divisão da soberania nacional necessária ao bom funcionamento de poderosas regras e instituições multilaterais.” (Nossa Comunidade Global, relatório da Comissão Sobre Governança Global, 1995)
Depois da pandemia do coronavírus, só continua sem entender o que é globalismo quem quer.
Aos que, todavia, insistem em tratá-lo como mera teoria da conspiração, gostaria de recordar algumas propostas recentes de reestruturação das relações internacionais e da ordem política global, sugestões que, seguindo um antigo topos da ideologia mundialista, utilizam a atual crise epidemiológica como pretexto para a concentração de poder nas mãos das organizações internacionais e a erosão das soberanias nacionais.
A primeira proposta é da lavra de Gordon Brown, ex-primeiro ministro britânico. Em face da pandemia, Brown apelou para que os líderes mundiais criassem alguma forma temporária de “governo global”, uma espécie de força-tarefa com poderes executivos para coordenar, em nível mundial, o enfrentamento à doença. O político globalista não foi claro sobre quais os limites (se é que os há) desses poderes executivos. Nem, tampouco, precisou o significado de “temporário” – algo decerto preocupante, sobretudo se lembramos de conhecida boutade de Milton Friedman, segundo a qual “nada é tão permanente quanto um programa temporário de governo”.
Depois da pandemia do coronavírus, só continua sem entender o que é globalismo quem quer
A segunda proposta vem de um grupo de filósofos e ativistas progressistas, e consiste na elaboração de uma Constituição Mundial. “Frente ao reflexo nacional, a imaginação cosmopolita quer avançar na globalização do direito” – diz o texto apologético de matéria do El País, para o qual a proposta é de um ineditismo acachapante.
A reportagem dá voz a um dos proponentes da ideia, o ex-juiz e filósofo do direito italiano Luigi Ferrajoli: “Não é uma hipótese utópica. Pelo contrário, é a única resposta racional e realista ao mesmo dilema que Thomas Hobbes enfrentou há quatro séculos: a insegurança geral da liberdade selvagem e o pacto de coexistência pacífica sobre a base da proibição da guerra e a garantia da vida”.
A referência ao Leviatã é bastante sugestiva, muito embora o filósofo trate de nos tranquilizar a todos: o que se está propondo não é um Estado absolutista em nível global. “A Constituição do mundo não é o Governo do mundo, e sim a regra de compromisso e a bússola de todos os Governos para o bom governo do mundo”. Em tese, incidiria apenas sobre direitos fundamentais ou, nas palavras de Ferrajoli, direitos que pertençam à esfera “do que não se pode decidir” – e que, portanto, não podem estar sujeitos às leis soberanas dos Estados-nação.
“Cada país deverá poder continuar decidindo sobre o que se pode decidir” – conclui, cheio de condescendência, o pretendente a constituinte global, talvez incluindo, entre aquilo que os países poderão continuar decidindo de maneira soberana, não mais que as cores da bandeiras e o tom dos hinos nacionais.
A terceira proposta foi vocalizada pela militante desarmamentista Ilona Szabó, uma das principais representantes brasileiras do ideário antissoberanista da fundação Open Society, do filantropo húngaro George Soros. Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, intitulado “O mundo pós-Covid-19”, Szabó roga que “as lições ‘certas’ sejam aprendidas e transmitidas sobre a pandemia”. Dentre as lições certas, estão: a) em momentos de crise, a iniciativa privada deve recuar em favor do Estado; b) é preciso reforçar o multilateralismo; c) ao lado das mudanças climáticas, a desigualdade social é o maior problema do mundo contemporâneo; d) é preciso renovar a confiança no sistema das Nações Unidas; e) governos soberanistas (ela usa a pecha “populistas”) como os de Trump e Bolsonaro, entre outros, devem ser substituídos por governos “abertos”, no sentido popper-sorosiano do termo – ou seja, governos que cedam o máximo de sua obscura soberania às luzes das organizações internacionais. Ao fim, Szabó afirma que a pandemia representa “uma segunda chance de organizar a governança global” (um eufemismo tipicamente globalista para governo mundial).
Os argumentos de Szabó são quase uma cópia daqueles que o velho Mikhail Gorbachev – o líder que, com a perestroika, e ao contrário do que diz a historiografia oficial, conseguiu salvar, repaginar e difundir como nunca antes o internacionalismo comunista, enxertando-o na cosmovisão globalista do sistema-ONU – expôs em artigo na revista Time.
A atual crise epidemiológica é usada como pretexto para defender a concentração de poder nas mãos das organizações internacionais e a erosão das soberanias nacionais
Afirmando que, após a pandemia, o mundo não será o mesmo, e que a feição do novo mundo dependerá de como as lições forem apreendidas (palavras que, uma semana depois, Szabó repetiria na Folha), Gorbachev desfiou o rosário de lugares-comuns do globalismo: a pobreza, a desigualdade, a degradação do meio ambiente, a crise migratória, e agora a pandemia do coronavírus... tudo isso revelaria um mundo profundamente – eis a palavra mágica da retórica globalista – interdependente. Daí que a resposta a esses desafios não pode ser nacional, tendo de ser enfrentada conjuntamente por toda a comunidade internacional (leia-se: pela vasta rede de organizações supranacionais que orbitam ao redor do sistema ONU).
Reproduzindo o ideário kantiano da “paz perpétua” – que está no cerne da visão de mundo globalista –, Gorbachev termina com uma de suas obsessões: a proposta de uma desmilitarização geral dos assuntos internacionais, com cortes de até 15% do orçamento militar dos Estados-nação. “Isso é o mínimo que os países deveriam fazer agora, como um primeiro passo rumo a uma nova consciência e a uma nova civilização” – conclui, quase poeticamente, a velha raposa política russa.
O leitor deve ter em mente que nada disso é novidade. O objetivo dos globalistas – manifesto em centenas de documentos oficiais ou acessórios – sempre foi encontrar, amplificar ou simplesmente inventar o que chamam de “problemas globais e sistêmicos” (que envolvem todas as esferas da vida social, e abarcam todo o planeta), de modo a justificar a existência das organizações internacionais e a expansão ilimitada do seu poder. Vejamos alguns exemplos.
Já em 1922, o diplomata britânico Philip Kerr (que depois seria embaixador nos EUA) escrevia na Foreign Affairs – a revista do Council of Foreign Relations (CFR), um dos mais importantes think thanks globalistas, que já forneceu inúmeros quadros a postos de comando em organismos supranacionais como ONU, OCDE, Unesco, OMS etc.: “Não haverá progresso civilizacional ou autogoverno entre os povos atrasados até que seja criado algum tipo de sistema mundial que possa pôr fim às disputas diplomáticas em torno da segurança das nações… A grande questão hoje é a do governo mundial”.
No mesmo ano e na mesma revista, lia-se em outro artigo: “Obviamente, não haverá paz ou prosperidade para a espécie humana enquanto ela estiver dividida em 50 ou 60 Estados-nação independentes”.
Em 1940, no livro The New World Order, o romancista H.G. Wells – membro notável da Fabian Society, e que já descrevera o projeto de governo mundial em seu The Open Conspiracy (1928) – denunciou o “individualismo nacionalista” como a “maior doença do mundo”, propondo como alternativa um “estado mundial coletivista”. Em suas palavras: “Essas duas coisas, a necessidade manifesta de algum controle mundial coletivo para eliminar a guerra, e a menos admitida necessidade de um controle coletivo da vida econômica e biológica da humanidade, são aspectos de um único e mesmo processo”.
O objetivo dos globalistas sempre foi encontrar, amplificar ou simplesmente inventar o que chamam de “problemas globais e sistêmicos” de modo a justificar a existência das organizações internacionais e a expansão ilimitada do seu poder
Em 1944, o CFR publicou um documento intitulado American Public Opinion and Postwar Security Commitments, no qual se criticava o “fetiche soberanista” do povo americano. Lia-se aí: “O fetiche soberanista é tão forte na imaginação das pessoas, que parece haver pouca chance de convencê-las de que a América deve integrar-se a alguma forma de organização supranacional. Tudo dependerá do tipo de abordagem que será feita na educação popular daqui em diante”.
No outono de 1945, logo após a conferência de fundação da ONU ocorrida em São Francisco, um grupo de importantes intelectuais e educadores americanos, com financiamento da Fundação Rockefeller, reuniu-se na Universidade de Chicago para propor a criação de um Instituto para o Governo Mundial. A proposta resultou num Comitê de Elaboração de Uma Constituição Mundial, sob a direção do então reitor Robert Maynard Hutchins. Três anos mais tarde, o Comitê lançava o seu Esboço Preliminar de uma Constituição Mundial, publicado pela editora da Universidade de Chicago. A autoria principal do documento coube ao secretário-geral do comitê, o intelectual italiano Giuseppe Antonio Borgese. No ano seguinte, o senador progressista Glen Taylor apresentou ao Senado americano uma resolução propondo que “a presente Carta da ONU deve ser alterada de modo a servir de verdadeira Constituição para o governo mundial”.
Em 1950, o então Secretário de Estado americano, John Foster Dulles (um dos membros fundadores do CFR), publicou o seu livro War or Peace, no qual afirmava: “As Nações Unidas não representam o estágio final no desenvolvimento da ordem mundial, mas apenas um primeiro passo”. Em outra ocasião, o braço-direito do presidente Eisenhower já havia declarado que “um mundo de soberanias nacionais irrestritas, irresponsáveis e em competição é um mundo de anarquia internacional. Portanto, elas devem dar lugar a uma autoridade mais elevada e inclusiva”.
Naquele mesmo ano, um outro membro do CFR, o financista James P. Warburg, assessor próximo do presidente Franklin Delano Roosevelt, declarou à Subcomissão de Relações Internacionais do Senado americano: “Devemos ter um governo mundial gostemos ou não. A única questão é se ele será instaurado via consenso ou conquista”. Mais tarde, o mesmo Warburg escreveria no livro The West in Crisis (1959): “Uma ordem mundial sem uma lei mundial é um anacronismo… dado que, hoje, a guerra é sinônimo de extinção da civilização, um mundo que fracasse na imposição do Estado de Direito aos Estados-nações não pode subsistir. Vivemos um período arriscado de transição: da era do Estado-nação soberano à era do governo mundial”.
Em 1953, o já citado G. A. Borgese lançou o seu livro Foundations of the World Republic. No material de divulgação do livro, a editora (de novo, a University of Chicago Press) escreveu: “O governo mundial, diz o sr. Borgese, é inevitável. Ele será gestado de um ou outro modo. Pode vir na forma de um império mundial, com escravização em massa imposta pelos vitoriosos da Terceira Guerra Mundial; ou pode surgir na forma de uma República Federativa Mundial, estabelecida via integração gradual nas Nações Unidas”.
Em 1970, o jornalista Norman Cousins, intelectual orgânico do movimento globalista, declarou no Dia da Terra: “A humanidade precisa de uma ordem mundial. O Estado-nação plenamente soberano é incapaz de lidar com o envenenamento do meio ambiente… Portanto, o manejo do planeta – quer estejamos falando da necessidade de evitar a guerra, ou da necessidade de evitar a degradação das condições mais básicas de vida – requer governo mundial”.
“Devemos ter um governo mundial gostemos ou não. A única questão é se ele será instaurado via consenso ou conquista”
James P. Warburg, financista e assessor do presidente Franklin Delano Roosevelt, declarou à Subcomissão de Relações Internacionais do Senado americano
E os exemplos se multiplicam ao infinito. Um documento importante da tradição globalista intitula-se Nossa Comunidade Global, um relatório da Comissão sobre Governança Global. Publicado em 1995 pela editora da Universidade de Oxford, ele é especialmente importante por reunir uma série de temas que estão dispersos em inúmeros textos globalistas ao longo da história. Nele, encontramos trechos como: “A Comissão Mundial sobre a Governança Global lamenta que certos governos sejam pouco dispostos a aceitar a partilha da soberania nacional necessária ao bom funcionamento das regras e das instituições multilaterais”. E, graças a esse empecilho, o documento sustenta ainda que “um sistema de governança global” deveria “instalar-se suavemente, pouco a pouco, sem fazer barulho”.
Esse último trecho é bastante significativo, lembrando, aliás, uma declaração de Jean-Claude Juncker, ex-presidente do Conselho Europeu e atual presidente da Comissão Europeia. Falando sobre integração e poder supranacional, o entusiasta do projeto comum europeu declarou certa vez ao jornal alemão Der Spiegel: “Nós primeiro decidimos algo, e então lançamos a ideia, aguardando um pouco para ver o que acontece. Se não houver grandes rebeliões e gritos de protesto, porque a maioria das pessoas nem sequer entendeu o que foi decidido, nós vamos em frente – passo a passo, até não haver mais volta”.
Para os globalistas, a pandemia do coronavírus tem sido a chance de dar não um passo, mas um verdadeiro salto em direção ao seu velho e acalentado projeto.
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