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Ao fim da Segunda Guerra Mundial, os vitoriosos Aliados instituíram tribunais militares para julgar os indivíduos responsáveis pelas atrocidades cometidas durante o regime de Hitler. Como se sabe, o primeiro e mais famosos desses tribunais foi o de Nuremberg, conhecido oficialmente como Tribunal Militar Internacional, no qual líderes nazistas de alta patente, sobreviventes do conflito, foram julgados por conspiração, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Dos 23 réus em Nuremberg, 19 foram considerados culpados. E, desses 19, a corte condenou 11 à morte.
O Tribunal de Nuremberg foi juridicamente chancelado pelo Acordo de Londres, que dava aos Aliados o poder de julgar apenas os “grandes criminosos de guerra”. Para contemplar criminosos de guerra menos gabaritados, a Carta do Acordo estipulava que “em caso de necessidade, e dependendo do número de casos em julgamento, outros tribunais podem ser criados, e cujas instauração, funções e procedimentos devem ser idênticos aos do Tribunal Militar Internacional, guiados por esta Carta”. Com esse objetivo, a autoridade da Alemanha ocupada, o Conselho Aliado de Controle, lançou em 20 de dezembro de 1945 a Lei 10, visando ao “Julgamento de criminosos de guerras e outros elementos agressores não contemplados pelo Tribunal Militar Internacional”.
A Lei 10 conferia a cada autoridade militar das quatro zonas de ocupação da Alemanha (soviética, francesa, britânica e americana) a prerrogativa de criar os seus próprios tribunais militares. Foi assim que, em 2 de novembro de 1946, a autoridade militar da zona americana instituiu o Tribunal Militar Americano, que, entre outros casos, conduziu aquele que ficou conhecido como “O Julgamento dos Médicos”, em que 23 médicos nazistas foram condenados pelos terríveis experimentos científicos realizados com prisioneiros dos campos de concentração.
O decreto carioca sobre obrigatoriedade de vacinação não é publicamente justificado, como deveria, com base em argumentos e evidências científicos acerca dos benefícios da vacina
Dentre os experimentos médicos nazistas, os que mais fizeram vítimas foram aqueles relacionados ao controle de epidemias. Temendo que um evento similar à dizimação das tropas francesas pelo tifo durante a campanha de 1812 na Rússia pudesse se repetir no decorrer da campanha alemã, os alemães se empenharam ao máximo em descobrir meios de conter eventuais surtos epidêmicos entre os soldados.
Em fins de 1941, de fato, o tifo alastrou-se pelas tropas, deixando um grande número de mortos. Nesse contexto, médicos e cientistas nazistas desenvolveram uma série de estudos não apenas sobre o tifo, mas também sobre a influenza, a febre tifoide, a icterícia, a febre amarela, a malária, a tuberculose e a hepatite. Laboratórios foram montados em Buchenwald, Natzweiler, Dachau e Sachsenhausen. Naturalmente, os riscos dos experimentos eram ocultados dos prisioneiros. De início, alguns deles chegaram a se voluntariar, acreditando na promessa de receber maiores porções de comida. Centenas de cobaias foram injetadas com vírus cultivados ou com o sangue de detentos infectados, sendo depois inoculadas com diferentes vacinas em fase de teste. Os integrantes do grupo-controle não recebiam a vacina.
Nas experiências conduzidas em Buchenwald, sede do principal laboratório nazista de produção de vacinas, a taxa de letalidade entre os presos inoculados chegava a 15%. A devastação era ainda maior dentro dos grupos-controle, em que a maior parte das cobaias humanas morriam. Em cada grupo, os nazistas deixavam ainda de três a cinco pessoas sem tratamento, para que servissem de fonte de sangue altamente infectado. Quase todas morriam.
Em Dachau, 30 pessoas morreram vítimas de experiências com malária entre os anos de 1942 e 1945. Elas foram expostas a mosquitos infectados com o protozoário, ou inoculadas com o extrato das glândulas do inseto. Experimentos semelhantes foram conduzidos em Sachsenhausen e Natzweiler com a icterícia. Essas pesquisas duraram até os últimos dias da guerra. Meses antes do fim do conflito, médicos nazistas ainda testavam teorias epidemiológicas frágeis, como a de que uma maior carga bacteriana produziria uma melhor resposta imunológica contra a tuberculose. Por conta disso, centenas de prisioneiros de Neungamme, por exemplo, foram inoculados com o bacilo de Koch. Muitos morreram. A última série de experiências com 20 crianças judias foi abruptamente interrompida pelo avanço dos soldados aliados. Mas, antes que pudessem ser salvas, as crianças foram mortas no último minuto, num provável gesto de queima de arquivo.
O desdobramento mais importante do Julgamento dos Médicos foi a consolidação do documento que ficou conhecido como “Código de Nuremberg”, o primeiro protocolo universal de ética em pesquisas científicas, que instituía uma série de salvaguardas para a pessoa humana submetida a experimentos médicos, sendo a mais importante delas a exigência de permissão consensual e voluntária ao longo de todo o desenrolar da pesquisa. Não por acaso, o primeiro dos dez artigos do Código afirma o seguinte:
“O consenso voluntário do indivíduo é absolutamente essencial. Isso significa que a pessoa envolvida deve gozar de capacidade legal para consentir; estar em condições plenas de exercício do livre direito à escolha, sem a intervenção de qualquer elemento de força, fraude, mentira, manipulação, excesso, ou quaisquer formas ulteriores de constrangimento e coação; ter conhecimento e compreensão suficientes dos processos concernentes, de modo a tomar uma decisão esclarecida e consciente. Este último ponto requer que, antes de o sujeito participante do experimento poder dar o seu consentimento final, deve-se lhe informar a natureza, a duração e o propósito da experiência; os métodos e os meios pelos quais será concluída; todos os possíveis inconvenientes e riscos esperados; e os efeitos sobre a saúde que podem advir de sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento cabem aos indivíduos diretamente responsáveis por iniciar, autorizar ou conduzir o experimento. Trata-se de um dever e de uma responsabilidade pessoal, que não pode ser delegada a outrem impunemente”.
Indivíduos que, respaldados pelo Código de Nuremberg, optam por não tomar uma vacina ainda em fase experimental são tratados como cidadãos de segunda classe, cujas vidas devem ser dificultadas por ordem estatal
Lembrei-me desse documento histórico, lançado em agosto de 1947, ao ter notícia do Decreto 49.335, assinado pelo lastimável prefeito da minha cidade, Eduardo Paes. O decreto estabelece a exigência do comprovante de vacinação contra a Covid-19 para a entrada e a permanência em academias, estádios, cinemas e pontos turísticos, bem como para a realização de cirurgias eletivas em unidades de saúde públicas e privadas do município. De modo a justificar a obrigatoriedade da vacina, o prefeito declarou: “O nosso objetivo é criar um ambiente difícil para aqueles que não querem se vacinar”.
Não é preciso grande perspicácia para notar que Eduardo Paes não é um sujeito sério. Como tudo o mais na ópera bufa que caracteriza a sua carreira política, também esse decreto não é publicamente justificado, como deveria, com base em argumentos e evidências científicos acerca dos benefícios da vacina. Tal como no caso do fechamento das praias ocorrido em março – medida que, como o próprio Paes admitiu à época, era apenas “simbólica” (ou, em outras palavras, de fachada), pois a transmissão nesses locais era significativamente menor do que em locais fechados –, também aqui a coisa é feita com muita fanfarra e pouca racionalidade. Feita, em suma, para inglês ver. Resta que, nessa política do espetáculo e da fanfarronice, quem paga o pato são os indivíduos que, pesando riscos e benefícios, e respaldados historicamente pelo Código de Nuremberg, optam por não tomar uma vacina ainda em fase experimental. A esses, o prefeito trata como cidadãos de segunda classe, cujas vidas devem ser dificultadas por ordem estatal. E há quem chame isso de política pública de saúde.
De que as vacinas ainda são experimentais parece não haver mais dúvidas. É o que sugere, por exemplo, o livro As Bases Farmacológicas da Terapêutica, de Alfred Goodman e E. Lee Gilman, por muitos considerado a bíblia da farmacologia. Na tabela em que estabelecem as características típicas das quatro principais fases dos ensaios clínicos necessários para a comercialização de novos fármacos (ver abaixo), os autores localizam na Fase II (fase ainda precoce, que varia de um a dois anos após os inícios dos testes) o momento em que a dosagem eficaz está sendo testada. É exatamente a fase em que se encontram as vacinas contra a Covid, uma vez que as autoridades batem cabeça em relação ao número de doses suficientes para imunizar, e que, mesmo contra orientação expressa da OMS (há pouco proclamada como autoridade máxima nesses assuntos), muitas autorizaram a aplicação de uma terceira dose, sendo que alguns países, como a Turquia, já começam a testar até mesmo uma quarta...
Recomenda-se também a leitura atenta das bulas das principais vacinas contra a Covid oferecidas no país, disponíveis no site do Ministério da Saúde. Sobre a dosagem, a bula da Coronavac, por exemplo, indica a aplicação de duas doses de 0,5 ml com intervalo de duas a quatro semanas, e informa que “ainda não foi determinado se doses de reforço do produto serão necessárias”. Já sobre os efeitos adversos, após listar os mais comuns constatados até o momento, a bula adverte: “Atenção: este produto é um medicamento novo e, embora as pesquisas tenham indicado eficácia e segurança aceitáveis, mesmo que indicado e utilizado corretamente (sic), podem ocorrer eventos adversos imprevisíveis ou desconhecidos”. Advertência idêntica, com as mesmas palavras, aparece nas bulas da AstraZeneca e da Pfizer.
Que a vacina seja experimental não significa, é claro, que o seu uso não seja recomendado. É perfeitamente compreensível que, diante da ameaça da Covid-19, que já matou 4,5 milhões de pessoas no mundo, a maioria das pessoas opte voluntariamente por assumir os eventuais riscos de efeitos colaterais (os quais, pelo que se sabe até o momento, são relativamente baixos) em troca de uma maior proteção contra a doença. Eu mesmo, seguindo orientações do meu médico, e pesando riscos e benefícios, tomei as duas doses da AstraZeneca.
Inaceitável é que cidadãos com avaliação distinta, e que escolham livremente não se sujeitar à experiência, tenham seus direitos civis cassados por tiranetes de toda sorte. Por isso, não hesito em afirmar: o decreto assinado pelo prefeito do Rio de Janeiro, que na prática transforma todos os cariocas em cobaias humanas, configura uma clara violação ao Código de Nuremberg, e deveria ser repudiado por todos os cidadãos de bem, que prezam verdadeiramente – e não da boca para fora – pelos direitos humanos mais elementares. E que ninguém se deixe enganar pela bufonaria a encobrir o autoritarismo. Não é menos tirano que seus pares o tirano de chapéu-panamá, samba no pé e cordialidade fingida, e cuja persona política parece encarnar todos os estereótipos regionais, tal qual um Zé Carioca de carne-e-osso.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos