Foto: Gustavo Miranda/Agência O Globo| Foto:

“Os talentos superiores não podem deixar de ser déspotas, e sempre trouxeram mais depravação do que utilidade; eles serão expulsos ou executados. A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas…” (Dostoievski, Os Demônios)

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Revi por esses dias uma entrevista do maestro João Carlos Martins no programa Roda Viva, exibida em novembro de 2012. Já lembrava de, à época, ter me sentido incomodado com a postura dos entrevistadores, incluindo a do âncora Mario Sergio Conti, jornalista que, dois anos depois, se tornaria célebre por entrevistar um sósia do técnico Felipão, e cujo semblante, de um sempiterno blasé, os cantos da boca um tanto caídos, tem algo da comicidade de uma commedia dell’arte.

Dizendo pouco ou quase nada do entrevistado, e ainda menos sobre o seu ofício e vocação, o programa não deixa de ser instrutivo quanto ao estado presente de nossa paroquial classe falante, cuja atenção é incapaz de ir além de picuinhas político-eleitorais, modismos acadêmicos e questões pecuniárias. Sempre tentando reduzir o entrevistado às dimensões de sua própria mediocridade, os entrevistadores do referido programa conseguem se expor muito mais do que quem está no centro daquela roda, da qual, ao fim e ao cabo, se pode dizer ser mais morta do que viva.

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A participação mais vexatória na bancada de entrevistadores foi, sem dúvida, a de uma professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que decidiu, em vez de entrevistar, usar o espaço como palanque para vender ao público as últimas tendências conceituais do universo da pedagogia musical, sem as quais, como se sabe, não se pode ensinar música de maneira humana e progressista. Seu alvo era a abordagem do maestro em sua relação com crianças e jovens de baixa renda, moradores de territórios tomados pela criminalidade. Proclamando-se porta-voz de “todos os educadores musicais” (sic), a educadora afirmou ser intolerável propor, como fazia Martins, que a música pudesse vencer o crime e – O horror! O horror! – resgatar as crianças de sua perigosa influência.

Adotando fisionomia estranhamente ferina, de cenho franzido e mostrando os dentes ao proferir cada um dos adjetivos seguintes (e peço que o leitor verifique se exagero), perguntou ao entrevistado: “O senhor não acha que isso é uma mentalidade salvacionista [rosnado e pausa para pensar num novo termo ainda mais monstruoso], extremamente etnocêntrica, que diz: ‘tem o mundo dos bons, o mundo europeu da música erudita, e tem a marginalidade, uma delinquência que vai ser aplacada, que vai ser domada e domesticada’?” E concluiu: “Para nós [isto é, os educadores musicais], esse emblema do ‘troque sua arma por um violino’ é a coisa mais nociva que a educação musical pode ouvir”.

Que se qualificasse o referido “emblema” de ingênuo, idealista, utópico, ou até mesmo clichê, seria aceitável. Tratá-lo por “a coisa mais nociva”, todavia, já revela toda uma noção corrompida de cultura. Nota-se, em primeiro lugar, que a professora não está preocupada em proteger as crianças contra tal nocividade. Pois a proposta do maestro não é condenada por nociva às crianças, mas à própria educação musical (“a coisa mais nociva que a educação musical pode ouvir”). Para a pedagoga – nisso apoiada pelo âncora do programa e demais entrevistadores –, seria autoritário e etnocêntrico levar a jovens de baixa renda uma forma musical alheia ao seu ambiente cultural imediato, algo que não lhes fosse plenamente familiar. Ela sugere, então, que, em lugar de violinos, fossem entregues violões àqueles jovens, um instrumento teoricamente mais nativo, mais adaptado ao seu habitat cultural. Em lugar da música erudita europeia, que se lhes incentive à permanência nas formas artísticas locais e já conhecidas (o samba, o funk, o rap etc.), para que os pobrezinhos não se sintam oprimidos e colonizados. Assim como alunos de uma universidade inglesa, sob o argumento de “descolonizar o currículo”, propuseram banir os estudos sobre filósofos brancos tais como Platão, Descartes e Kant, a acadêmica da Unesp quer descolonizar a educação musical, banindo o ensino daquela música de brancos europeus. Saem celos, violas e violinos; entram cavaquinhos, tamborins e caixinhas de fósforo. Para a nossa Policarpo Quaresma da educação musical, o aluno ideal deve se parecer com o Zé Carioca.

É essa concepção naturalista de cultura, que julga as pessoas mais pobres incapazes de transcender o seu ecossistema e assimilar novidades estéticas, como se devessem permanecer intocados em suas “reservas” culturais, que a educadora propõe como antídoto ao pretenso autoritarismo do maestro João Carlos Martins. É essa condescendência arrogante disfarçada de magnanimidade que ela apresenta como contraponto à maligna “missão civilizatória” dos que creem que Bach, Mozart, Beethoven e Wagner são um patrimônio universal da humanidade, ao qual todas as pessoas (quer sejam brancas, pretas ou amarelas; ricas ou pobres; velhas ou novas; baixas, gordas ou carecas; brasileiras, chinesas ou islandesas) merecem ter acesso. É esse demagógico relativismo estético, sem coragem de afirmar a superioridade ou inferioridade artística de nada em relação a coisa alguma, que, apenas por referendada pelo clubinho acadêmico, ela quer nos enfiar goela abaixo. Se a concepção do maestro é salvacionista, o mínimo que se pode dizer da concepção da educadora é que ela é preservacionista – os pobres são espécimes nativos, delicados, que qualquer corpo cultural estranho poderia corromper e macular. Qual uma orquídea selvagem, devem ser mantidos dentro de estufas.

A educadora parece acreditar que a relação dos pobres com sua cultura é espontânea, imediata ou irreflexiva – em suma, mais natural. A cultura dos pobres é, por assim dizer, parte de sua natureza. É algo fossilizado, a-histórico, estático. Enquanto ela, educadora, seria capaz de adotar uma posição universalista e supracultural, ocupando em relação à sua cultura, e à cultura em geral, a posição de sujeito autônomo e consciente, os jovens de baixa renda seriam como que objetos ou reféns da própria cultura, que os determinaria tal qual o instinto determina o comportamento animal. A educadora acredita manter uma relação cultural com a própria cultura, ou seja, participar do processo de sua criação; mas enxerga os pobres mantendo com a deles uma relação natural, como se, incapazes de criá-la, apenas fossem por ela criados. Se a cultura de uma é como uma amplidão de ar puro, a dos outros é como um tanque de formol. Mas arrogante, claro, é querer levar música clássica para a favela…

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Ocorre que a posição da educadora não é mera expressão de arrogância pessoal travestida de tolerância. Funda-se numa confusão lógica recorrente entre método e objeto. Qualquer estudioso que reivindique a autoridade científica de sua disciplina para negar peremptoriamente a existência de diferença valorativa entre culturas (ou elementos de uma mesma cultura) comete fraude intelectual, porque desconsiderar essa diferença é um imperativo metodológico, e nada além disso, de quem se dedica a comparações transculturais. Logo, não se pode deduzir da suspensão provisória de juízos de valor uma conclusão definitiva sobre a pertinência ou impertinência desses juízos. Se, no curso da investigação, o estudioso se furta à questão de saber se um dado fenômeno cultural é melhor ou pior, mais bonito ou mais feio, mais justo ou injusto que outro, é por haver adotado uma restrição metodológica como ponto de partida, mas não necessariamente de chegada. Afinal, se o ceticismo metodológico impõe o silêncio acerca das diferenças de valor entre culturas, o estudioso não tem como afirmá-las ou negá-las de maneira definitiva. Fazê-lo seria tão ridículo quanto, em uma análise da situação do Brasil, abster-se de investigar os fatores econômicos para, em seguida, concluir que não têm importância alguma. Seria como dizer: “Olha, eu não vou tratar dos fatores econômicos. Logo, eles não existem”.

Toda essa discussão, e a postura condescendente da educadora, nos recorda aquela esdrúxula proposta de reescrever Machado de Assis de modo a torná-lo mais palatável (leia-se “simplificado”) ao povão. Dentre as muitas críticas pertinentes ao projeto, uma das mais saborosas veio da pena do saudoso João Ubaldo Ribeiro, que o fulminou no artigo Reescrevendo a História, publicado n’O Globo em 1.º de junho de 2014, do qual cito um trecho à guisa de conclusão: “[V]amos rebaixar, vamos reduzir os textos a uma voz tatibitate, modernosa e linguisticamente irresponsável, vamos limitar o vocabulário e tomar outras medidas simplificadoras. Não se nota como essa posição — ela, sim — é presunçosa, arrogante e elitista. Não se pensa em estender a todos o que hoje é visto como das elites, pensa-se em baixar o nível e assim ser democrático, quando o que ocorre é o contrário (…) E a lição se estende da literatura às outras artes. O povo não gosta de música erudita porque são aquelas peças vagarosas e demoradas demais. De novo, a solução virá ao adaptarmos Bach a ritmos funk, fazermos arranjos de sinfonias de Beethoven em compasso de pagode e trechos de no máximo cinco minutos cada e organizarmos uma coleção axé das obras de Villa-Lobos”.