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“Deus criou o mundo e viu que era bom” (Gênesis 1, 31)
“Quem me lançou no sofrimento deste mundo? Quem me transportou para esta cruel escuridão? Pesar e angústia sofro neste corpo-vestimenta no qual me enfiaram e abandonaram” (extraído do Ginza Rabba, escrituras gnósticas mandeanas)
Em dezembro de 1945, nas redondezas da aldeia de Nag Hammadi, um grupo de camponeses egípcios amarrou seus camelos aos pés do Jabal al-Tarif, conjunto de falésias localizadas ao longo do Nilo, em busca de sabakh, um fertilizante natural abundante na região. Ao cavar o solo, Abu al-Magd, o mais jovem dentre os felás, encontrou uma jarra de aparência arcaica, com a boca selada. Imediatamente, chamou Muhammad Ali, seu irmão mais velho, e lhe mostrou o objeto desenterrado. Mesmo receoso de que a jarra pudesse conter um jinni (um gênio maligno), mas versado em histórias de tesouros escondidos nos desertos do Egito, Muhammad não resistiu à tentação. Quebrando a jarra com o seu sacho, liberou fragmentos que, embora de coloração dourada, parecessem brilhar à luz do sol, não eram feitos de ouro, mas de papiro.
Em busca de adubo para suas plantações, o que Muhammad, Abu e seus companheiros haviam acabado de desencavar era nada menos que uma das descobertas arqueológicas mais importantes do século 20, que rivalizava em valor com os Manuscritos do Mar Morto, encontrados poucos anos antes: a assim chamada Biblioteca de Nag Hammadi, hoje abrigada no Museu Copta da cidade do Cairo. Composta por treze códices de papiro envoltos em couro, totalizava 52 escritos originais, incluindo textos do Corpus Hermeticum, uma tradução de A República de Platão, e – o que aqui nos interessa – vários textos gnósticos datados aproximadamente do século 3.
Escritos em copta (língua egípcia que utiliza formas alteradas do alfabeto grego e incorpora em seu vocabulário grande número de palavras gregas), estima-se que os manuscritos sejam traduções de versões originais em grego, para sempre perdidas. A descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi fez com que, de maneira inédita, se tornassem acessíveis em primeira mão os textos de uma das mais influentes heresias cristãs da Antiguidade, o Gnosticismo, o qual, até então, só se conhecia indiretamente, por meio da obra dos primeiros grandes heresiólogos da Igreja, como Santo Irineu de Lyon, Hipólito de Roma, Eusébio de Cesareia, entre outros.
Em 1977, uma equipe de pesquisadores do Instituto de Antiguidade e Cristianismo da Universidade de Claremont (Califórnia) concluiu uma tradução para o inglês de todos os manuscritos. Posteriormente revisada e acrescida de análises, notas e comentários, a Biblioteca de Nag Hammadi está hoje disponível ao público não especializado, reunida num único volume. Trata-se de um documento fundamental para quem quer compreender melhor as disputas religiosas do mundo antigo, tendo o Cristianismo como contexto principal. E, sobretudo, para quem quer conhecer as raízes espirituais das ideologias revolucionárias modernas.
Noutra ocasião, apontei uma semelhança formal entre o Gnosticismo e um dado ativismo, baseando-me na comum interdição do exame de suas premissas. Chamei a isto, evocando o filósofo Eric Voegelin, de “proibição de perguntar”. O que pretendo fazer hoje é mostrar que há também uma afinidade substancial entre a antiga heresia cristã e essa nova religião política “progressista”.
Já tendo escrito uma série detalhada sobre o gnosticismo aqui nesta Gazeta (ver Parte 1, Parte 2, Parte 3 e Parte Final), permito-me a autocitação de dois trechos que resumem as ideias centrais dessa antiga heresia:
“O Deus gnóstico é absolutamente transmundano, sua natureza estranha a este universo, que ele não criou e nem tampouco governa, e com o qual mantém uma relação antitética. O reino divino da luz, autocontido e distante, opõe-se ao cosmos, o domínio da escuridão. O cosmos, por sua vez, é obra de poderes (ou potestades) inferiores, que, embora sejam, de forma mediada, descendentes do Deus transmundano, não mais o reconhecem e obstruem o seu conhecimento. As potestades, criaturas mesquinhas e ciumentas que criaram e governam o mundo, são frequentemente chamadas de Archons. Em alguns sistemas gnósticos, os Archons são liderados por um demiurgo, que é o verdadeiro criador do cosmos. Os Archons são também concebidos como carcereiros cósmicos, que bloqueiam a comunicação entre este mundo e o Além (...) O dualismo gnóstico tem como característica predominante um radical anticosmismo, ou seja, uma avaliação radicalmente negativa do mundo visível e de seu criador, agrupados, ambos, num campo semântico que inclui noções como as de ‘escuridão’, ‘crueldade’, ‘ignorância’, ‘envenenamento’, ‘esquecimento’, ‘desespero’, ‘solidão’. O mundo criado pelo demiurgo maligno é completamente apartado do ‘verdadeiro’ Deus”.
Com sua separação radical entre um eu essencial de tipo “espiritual” (ou mental, ou psicológico, ou afetivo) e um corpo material espúrio que o aprisiona e constrange, hoje existe um novo ativismo que reproduz com notável fidelidade a antropologia gnóstica, que podemos descrever como um dualismo eu/corpo
Da cosmologia gnóstica (antimosaica por excelência, no sentido de rejeitar a Criação como algo bom) deriva uma antropologia específica, segundo a qual o homem é essencialmente um prisioneiro, primeiro do mundo, mas também do seu próprio corpo:
“Segundo essa antropologia, o homem é feito de carne/matéria corporal (hyle), alma (psyche) e espírito (pneuma). As suas carne e alma respondem por sua natureza mundana, enquanto o seu espírito é um resquício de sua origem extramundana, ou, mais precisamente, divina. Assim, tanto o corpo quanto a alma são tidos por frutos decaídos das potestades cósmicas. E é graças a eles, corpo e alma, que o homem se mantém preso ao mundo, restando sujeito às forças imprevisíveis do destino. Encapsulado no corpo e na alma está o espírito, também chamado de “centelha” – uma porção da substância divina que, originária do além, despencou no mundo atual. Foi para nele manter aprisionada a centelha divina que os Archons criaram o homem. Se, no plano macrocósmico, o homem acha-se enclausurado pelas esferas celestes, no plano microcósmico, o pneuma está encarcerado dentro do corpo e da alma humanos. Em seu estado não-redimido, o pneuma está imerso na alma e na carne, inconsciente de si próprio, amortecido, adormecido ou intoxicado pelo veneno do mundo – em suma, ignorante. O seu despertar e a sua redenção dependem da gnose, pois o gnóstico só se liberta do cosmos-prisão quando compreende o pneuma como a essência do seu verdadeiro ser”.
Quem tiver curiosidade em consultar os textos originais de Nag Hammadi topará com inúmeras referências a essa ideia do corpo como prisão, um dualismo radical que identifica a matéria com o mal e o espírito com o bem. Eis, apenas a título de ilustração, um trecho do texto conhecido como Evangelho Secreto de João (códices II e IV da Biblioteca de Nag Hammadi): “Adentrei a prisão, que é a prisão do corpo”.
Para libertar-se da prisão que é o corpo e o cosmos, o gnóstico dispensa a fé em Cristo em favor de um conhecimento iniciático (gnose) do Deus extramundano. A gnose confunde-se com um autoconhecimento, porque, no Gnosticismo, autoconhecer-se é descobrir a existência de um “Deus interior”, a “centelha”, a verdadeira essência do homem. Equipado com essa gnose, o espírito inicia sua ascensão, deixando para trás, a cada esfera cósmica ultrapassada, as “vestimentas” corpóreas e psíquicas responsáveis por seu aprisionamento. Com isso, despido de todas as suas amarras mundanas, o pneuma alcança o Deus transmundano, reunindo-se novamente à substância divina original, o Pleroma. Este se opõe ao cosmos-prisão como a luz à escuridão, o corpo – que inclui a “alma” (psyche) – ao espírito (pneuma), a gnose à ignorância. De um ponto de vista teológico, o movimento ascensional é descrito como restauração de uma plenitude divina perdida.
O leitor atento terá percebido o quanto a separação radical entre matéria e espírito contraria a doutrina cristã da Encarnação, doutrina que, não por acaso, rejeitou o dualismo gnóstico. Como explica o teólogo Joe E. Morris num livro significativamente intitulado Revival of the Gnostic Heresy:
“A heresia implica uma falta de tensão dialética. O dualismo, ou heresia, destrói a tensão. Nesse sentido, é irrealista e dado à fantasia. O dualismo reflete uma simplificação extrema da realidade. Fala do bem sem falar do mal, do divino sem falar do humano, da alma sem o corpo, do espírito sem a matéria. A encarnação significa, e mantém, a tensão dialética. Rejeita a fantasia, o sentimentalismo, a superficialidade e o wishful thinking. Aceitar a encarnação significa deixar de ver o mundo como gostaríamos que fosse, e passar e vê-lo como é. Significa ser capaz de balancear ou pesar o bem e o mal, o espírito e a carne, a luz e a escuridão, a alma e o corpo. Com a encarnação, podemos falar das polaridades normais da vida, porque fazem parte do todo. A demanda definitiva dessa unidade de contrários, o desafio último da fé, é o Deus feito homem, Jesus Cristo. Porque se baseia no conhecimento e na ausência de tensão dialética, o dualismo não requer um salto de fé. Já a encarnação, sim. Com ela, já não temos respostas claras. Eis a demanda e o desafio da encarnação, da fé. É uma aventura arriscada, uma peregrinação pelo mundo, cuja única garantia é Emanuel, Deus conosco. Trata-se de um envolvimento com o mundo, e não de uma fuga fantasmagórica do mundo”.
E aqui chegamos ao ponto principal. Com sua separação radical entre um eu essencial de tipo “espiritual” (ou mental, ou psicológico, ou afetivo) e um corpo material espúrio que o aprisiona e constrange, hoje existe um novo ativismo que reproduz com notável fidelidade a antropologia gnóstica, que podemos descrever como um dualismo eu/corpo. Para os gnósticos, o verdadeiro eu está no espírito (pneuma), que se opõe absolutamente ao corpo, o qual, nesse sentido, é um completo outro. De acordo com os novos ativistas, analogamente, o verdadeiro gênero acha-se na mente da pessoa, não no seu corpo natural, encarado como totalmente alheio à sua identidade pessoal. Para a nova ideologia, o corpo é concebido como mero invólucro ou veículo para uma essência imaterial. Os seres humanos seriam pessoas não-corpóreas habitando corpos não-pessoais. E isso na melhor das hipóteses, pois o mais frequente, como já dissemos, é que o corpo seja mesmo considerado uma prisão. “Sou uma tal coisa presa num corpo de homem” ou “sou tal outra coisa presa num corpo de mulher” – eis um tópos tipicamente gnóstico, onipresente no novo discurso ativista.
Contrariamente à antropologia gnóstica, a antropologia judaico-cristã tradicional concebe o homem como um composto dinâmico formado por corpo e espírito, um corpo pessoal + um eu corpóreo. A ressurreição de Cristo foi também corpórea. Aqui, o corpo não é somente uma ferramenta extrínseca do eu, mas uma parte integral da identidade pessoal do ser humano. Nós não simplesmente habitamos (ou somos encarcerados por) nosso corpo. Nosso espírito é a forma substancial do corpo, e não apenas um “fantasma na máquina”. E isso faz toda a diferença.
Se somos apenas “mentes” habitando um corpo-continente impessoal e quase maquinal, o respeito à pessoa humana dispensa o respeito pelo corpo, que pode então ser submetido a mil procedimentos cirúrgicos e medicamentosos
Rejeitando a antropologia judaico-cristã, os gnósticos contemporâneos naturalmente se opõem também à ética sexual e à concepção de relação dela advindas, notadamente à ideia tradicional do casamento como união carnal entre homem e mulher, tendo por finalidade a procriação e a constituição da família, uma realidade que transcende o casal. Ora, se o corpo é percebido como mero instrumento ou invólucro da pessoa, a ser usado para satisfazer vontades subjetivas, esse conceito de relação marital perde o sentido. Sendo o corpo de tal forma apartado da pessoa (que é apenas “espírito”), não há nenhum valor moral intrínseco ou qualquer relevância social na ideia de união carnal entre um homem (um macho adulto da espécie Homo sapiens) e uma mulher (uma fêmea adulta da mesma espécie), união que então é reduzida ao estatuto de mera associação biológica.
Mas, se a antropologia gnóstica implica a formação de uma ética sexual inteiramente nova, o novo ativismo mostra que ela vai além, ao pretender sustentar uma excêntrica ontologia. Porque, se somos apenas “espíritos” ou “mentes” habitando um corpo-continente impessoal e quase maquinal (“máquinas desejantes”, como diriam os soixante-huitards Gilles Deleuze e Félix Guattari), o respeito à pessoa humana dispensa o respeito pelo corpo, que pode então ser submetido a mil procedimentos cirúrgicos e medicamentosos até se transformar noutra coisa. Se os órgãos humanos são apenas uma parte do corpo-invólucro extrínseco à pessoa, por que não alterá-los a fim de corresponder a como a pessoa se sente?
Parece-me claro, por fim, que a rejeição ativista da própria realidade corpórea e material, essa sensação de estar num corpo “errado”, é uma atualização do horror gnóstico à Criação, observado já nos primeiros séculos da Era Cristã. O mundo que o gnóstico vê é radicalmente maligno, dominado por forças perversas e desconhecidas. Em consequência, sua condição humana presente é, para ele, não somente intolerável como anormal. O gnóstico considera-se vítima temporária de uma catástrofe cósmica: a queda que originou o mundo e perverteu todas as coisas. Segundo essa percepção gnóstica da realidade, o corpo foi mal criado, tanto quanto o mundo como um todo. Antes que dom de um Deus amoroso, o corpo original é aí encarado como uma maldição, assim como toda a realidade criada, obra hostil de um demiurgo maligno. Comprando o conselho da Serpente – “Sereis como deuses!” –, o homem gnóstico acredita que só ele pode criar a si próprio, incluindo seu próprio corpo, de maneira perfeita.
Eis por que uma certa religião política ativista (que é hoje praticamente a religião oficial de Estado em certos lugares pretensamente civilizados) tenha o Cristianismo por arqui-inimigo, e dispute ferozmente com ele a prevalência sobre as mentes e os corações dos homens. Nisso, aliás, não se distingue de outras religiões políticas surgidas ao longo da história, cujo fundamento existencial é aquilo que, em O Homem Revoltado, Albert Camus bem definiu como revolta metafísica, uma revolta contra Deus e a criação. Pois a verdade é que, para citar o próprio Camus, “só pode haver para a mente humana dois universos possíveis: o do sagrado (ou, em linguagem cristã, o da graça) e o da revolta”.
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Conteúdo editado por: Bruna Frascolla