Luís Roberto Barroso, presidente do STF, na sessão de 11 de dezembro.| Foto: Antonio Augusto/STF
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Refletindo sobre o colapso da democracia representativa no Brasil, manifesto sobretudo na hipertrofia do Judiciário (um poder não democrático por definição), o jurista Ricardo Peake Braga escreve em Juristocracia e o Fim da Democracia: Como uma Tecnocracia Jurídica Assumiu o Poder:

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“Há uma percepção de que se está diante de uma mudança de paradigmas, de um novo Zeitgeist quanto às ideias clássicas de separação de poderes, liberdade de opinião e expressão, democracia. Essa mudança de mentalidade ressoa na fundamentação das decisões proferidas pelos integrantes da suprema corte brasileira e em suas frequentes declarações à imprensa. Declaram-se os editores de um país inteiro, de uma nação inteira, de um povo inteiro, iluministas em uma missão civilizatória, interpretam críticas que lhes são dirigidas como ofensas à própria Constituição e à democracia e não hesitam em se valer de medidas coercitivas para punir os mais estridentes. Nesse cenário, é evidente que a democracia e o Estado de Direito, ao menos em suas concepções tradicionais, sofreram profundos golpes e estão sendo substituídos por um novo sistema, em que o poder real está na corte suprema e no estamento jurídico. A isso se dá o nome de juristocracia.”

O autor mostra como, apesar de o fenômeno ter atingido o paroxismo junto às esvoaçantes togas nacionais, o fundamento ideológico por detrás da juristocracia não é novo, nem tampouco exclusividade brasileira. O exercício da juristocracia fundamenta-se sobre a ideia de panconstitucionalismo, uma ampliação desmedida do alcance da Constituição para abarcar virtualmente todos os aspectos da vida individual e coletiva, fazendo das cortes constitucionais uma espécie de poder constituinte permanente, e conferindo aos intérpretes da lei maior um poder extraordinário de tutela social e moral.

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Imaginem uma nação condenada a viver sob o modelo de sociedade parido de mentalidades tão tacanhas, provincianas e arrogantes como as dos nossos ativistas de toga... Bem, o leitor não precisa imaginar

Ainda de acordo com Peake Braga, o panconstitucionalismo é como que um corolário lógico do assim chamado neoconstitucionalismo, doutrina jurídica idealista, utópica e revolucionária surgida em meados do século 20, cuja principal afirmação é a da prevalência dos princípios sobre as regras, em vistas de uma concepção subjetiva e ideológica de “sociedade mais justa”. Nesse sentido, as constituições nacionais particulares passam a ser vistas como a mera realização de um programa paraconstitucional obrigatório, que consiste no conjunto de ideias, valores e visões de mundo de juristas-demiurgos. No Brasil contemporâneo, Luís Roberto Barroso – a quem, parodiando o título de um conhecido livro infantil, eu costumo chamar de “o magistrado que tinha ideias” – talvez seja a expressão paradigmática da pretensão neoconstitucionalista, ao pretender fazer de sua posição de juiz da suprema corte um meio para a realização imediata (não democrática e não representativa) de seu modelo ideal de sociedade.

Nas palavras de Peake Braga:

“Essa corrente radicaliza a ideia de supremacia da Constituição, o que resulta na chamada constitucionalização do Direito, e esvazia o campo da discricionariedade e decisão dos poderes Legislativo e Executivo. Essa visão de mundo, de característica racionalista-utópica, torna-se então, para muitos juristas, ‘a utopia que nos restou. Uma fé racional que ajuda a acreditar no bem e na justiça, ainda que não estejam ao alcance dos olhos’ [o autor cita aqui um trecho do discurso com que Barroso costuma encerrar o seu curso de Direito Constitucional Contemporâneo].”

Diz ainda o autor sobre o panconstitucionalismo:

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“Em coerência com a visão neoconstitucionalista, os tribunais em geral (nos sistemas que admitem o controle difuso de constitucionalidade) e, especialmente, as cortes constitucionais rapidamente assumiram posição de supremacia, entendendo que, se a Constituição é suprema, supremo também será quem tem o poder de dizer seu alcance e significado. Na prática, em muitos países, entre eles o Brasil, deixou de haver ‘limitações extrajurídicas à atuação dos magistrados, que somente estariam atrelados aos seus fins de concretização da ordem jurídica, sem qualquer tipo de pressão externa’.”

A perversão panconstitucionalista caracteriza-se, portanto, pela húbris de querer aplicar uma filosofia política particular a toda a organização da sociedade, de modo que nada se lhe escape, e sem que essa sociedade possa participar de seu próprio destino, uma vez que terá sido reduzida à condição do bárbaro ignaro sendo civilizado pelo juiz-filósofo. O panconstitucionalismo é, portanto, inerentemente danoso em matéria de democracia representativa, mesmo no caso ideal em que os juízes fossem, de fato, homens sábios.

Imaginem, então, uma situação de juristocracia em que os juízes são o exato oposto de sábios, ou nem sequer excelsos em seu ramo especializado de saber, tendo chegado às suas respectivas posições de poder não por grandes feitos intelectuais ou virtudes humanas acima da média, mas simplesmente por terem frequentado os eventos políticos oportunos e se aproximado dos poderosos certos. Imaginem que níveis de degradação civilizacional pode atingir um país em que o panconstitucionalismo é aplicado pelas figuras que hoje ocupam os nossos tribunais superiores, nos quais, como afirmou há alguns anos Francisco Rezek, ex-ministro do STF e juiz da Corte Internacional de Justiça, “há um excesso de autoridade convivendo com a escassez de leitura”. Imaginem uma nação condenada a viver sob o modelo de sociedade parido de mentalidades tão tacanhas, provincianas e arrogantes como as dos nossos ativistas de toga... Bem, o leitor não precisa imaginar. Basta olhar ao redor e contemplar o espetáculo dantesco da utopia panconstitucionalista realizada, na qual seria um alívio a mera permanência na juristocracia, pois que já se terá degenerado em caquistocracia – o governo dos piores.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]